Na sua longa
viagem, Ferreira de Castro chegou ao Japão pouco depois do começo da 2.ª Guerra
Mundial (1939). Nessa altura, faltavam quase dois anos para o ataque nipónico a
Pearl Harbor, o qual traria como consequência a entrada em força dos Estados
Unidos na guerra. Mas o Japão não se achava em paz, estando empenhado, desde
Julho de 1937, na brutal invasão da China (2.º conflito sino-japonês).
Apesar disso, o
escritor pôde percorrer demoradamente várias cidades do país, legando-nos sobre
essas visitas dezenas de páginas interessantíssimas. Em Tóquio, como não podia
deixar de ser, decorreu o seu
Encontro com as
Gueixas
“Os
nossos companheiros metem-nos num dos restaurantes. Ao lado de cada um de nós
senta-se uma gueixa. Japonês saturado da mulher e do ambiente doméstico, se
pensa ir jantar fora de casa com um amigo, pensa, ao mesmo tempo, jantar com o
amigo e com duas gueixas.
Pequeno ou grande burguês, industrial, financeiro,
almirante, ministro do imperador, nenhum deles concebe banquete ou simples
colação num restaurante sem a companhia destas raparigas. Por mor disso, muitas
personagens nipónicas têm perdido a vida, porque algumas gueixas, senhoras de
segredos de Estado e de conspirações que surpreendem durante os jantares, acabam
por cometer funestas inconfidências. Mas tão arreigado está o hábito da
companhia grácil, que se, um dia, as gueixas desaparecerem da vida nacional,
haverá muitos infelizes entre os homens endinheirados do Japão…
As
gueixas não são prostitutas. O seu nome significa, em japonês, “pessoas de
arte”. Quase todas elas são vendidas, pelos pais, às donas das geishayas,
quando se encontram ainda na infância, e, depois, metidas num dos vários
colégios, destinados a educá-las, que existem em Tóquio e noutras cidades.
Ali,
até aos quinze anos, aprendem as boas maneiras e a cultura artística que devem
tornar grata a sua presença junto dos homens. Ensinam-lhes poesia, música e
danças. Ministram-lhes, ao mesmo tempo, conhecimentos sobre a história nipónica
e a geografia universal.
Ultimamente, dada a evolução do país, as gueixas
aprendem, também, assuntos militares que possam interessar, durante os
banquetes, aos ministros, aos almirantes e aos generais, pois estes preferem,
hoje, falar de canhões, de navios de guerra e de soldados do que ouvir poemas
clássicos…
Após
tão variada educação, a nova gueixa está apta a comparecer nos restaurantes.
Basta telefonar para a geishaya e ela acorre à chamada, com outras
companheiras – tantas quantos são os senhores que pretendem comer em companhia
feminina. A sua presença é paga à hora e incluída na conta do jantar, aumentada
de uma sobretaxa, porque o Estado considera actualmente as gueixas como artigo
de luxo.
O
dinheiro vai daqui para a bolsa das matronas que exploram estas raparigas. As
gueixas raramente vêem uma nota de banco. Vestidas e alimentadas pelas
geishayas, creditam-lhes a quinta parte de quanto fazem, em desconto dos yenes
que os pais receberam pela sua venda. Este dinheiro deve estar integralmente
coberto antes de a gueixa atingir 25 anos, pois, com essa idade, já a têm por
velha.
Há
gueixas que, pela sua beleza ou pelo seu espírito, criam fama semelhante à das
artistas em voga – e, para as ter à mesa de jantar, é necessário o candidato à
sua companhia inscrever-se com dias e até semanas de antecedência… Quando se
pede determinada gueixa, as matronas consideram que essa preferência vale
dinheiro e cobram o dobro do preço de uma gueixa indeterminada.
(…) Junto
dos seus clientes, as gueixas devem mostrar-se como figuras de encanto visual e
espiritual e não como cortesãs. Elas podem sorrir maliciosamente e nublarem de
voluptuosidade os seus olhos; nada mais, porém, lhes é consentido pelos
regulamentos, nem aos que elas fazem companhia é permitido solicitar mais.
Se
surgem paixões devem curar-se fora dos restaurantes, porque o contrário seria
atentado aos bons costumes. Geralmente, a dona da geishaya, uma velha gueixa
reformada, vende, por alto preço, a “primeira noite” da pupila. Depois disso, a
nova gueixa é livre de amar quem quiser, desde que o não faça nas horas
destinadas ao seu trabalho. E ela ama, quase sempre, um jovem nipónico que não
tem dinheiro para ir aos restaurantes e que detesta, como é humano, todos os
restaurantes onde a eleita vai exercer a profissão.
Das
três gueixas que, esta noite, nos fazem companhia, nenhuma conta mais de vinte
anos. Não são muito bonitas, mas são graciosas – bonecas de sorriso doce e
delicados gestos. Ajoelhadas sobre as almofadas e corpo repousando nos
calcanhares, enchem os nossos copos e dominam o riso perante a careta que nos
provoca o “saké”, bebida feita de arroz. Têm sempre à mão uma caixa de fósforos
para acender os nossos cigarros e mesmo palitos para servir os clientes…
Entendemos
ser injusto e absurdo que, estando nós a jantar, elas não jantem também. Mas as
três dizem-nos que não podem fazê-lo, por ser contra o regulamento do seu
ofício. Comeram antes de vir para aqui e comerão novamente logo que daqui
saiam. Falam inglês com uma suavidade que as próprias inglesas não conseguem
ter. Todos os seus gestos foram estudados, mas, agora, elas portam-se com tanta
naturalidade como se já tivessem nascido assim.
No
restaurante, cheio de balões japoneses, há outros grupos de comensais e de
gueixas e sente-se que, perante uma risada, uma harmonia de poema recitado, um
trecho de música, estas três raparigas desejariam voltar a cabeça e ver o que
se passa. Contudo, não o fazem. Por fim, uma delas recita, também, velhas
poesias nipónicas, que, para nós, valem apenas pela sua melodia e pelo encanto
que lhes dá a própria recitadora.
Em
seguida, a “Ritmo de Fonte”, a mais nova das três, toca o seu “shamisen” e logo
as demais dançam. Até há pouco, as danças ocidentais eram cultivadas na vida
nocturna de Tóquio e algumas das próprias gueixas as executavam.
Ultimamente,
porém, as autoridades proibiram todas as danças da Europa e da América, por as
considerarem imorais e anti-nacionalistas. Assim, estas duas gueixas dançam com
movimentos puramente nacionais – movimentos tão vagarosos e monótonos que nem
os das sagradas virgens do templo de Nara…
Quando
elas terminam, o nosso anfitrião decide ir mostrar-nos o famoso jardim de
Asakusa.”
Fonte: Ferreira de Castro - A Volta ao Mundo (3.º vol., de um total de 3) - Livraria Editora Guimarães & C.ª - Lisboa - Portugal - Ano de 1952.
Ver a postagem (1) de "A Volta ao Mundo".
Clicar em: No Cemitério dos Parsis, em Bombaim, Índia