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quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Aberturas de Grandes Livros - "A Maravilhosa Viagem" (Castro Soromenho - Portugal) - REPOSIÇÃO




(Capa da edição da Arcádia)





O navegador português Diogo Cão, a que se refere o autor,
coloca o padrão nas costas do Sul de Angola.




Casa do século XV, ainda hoje existente no centro da cidade de Vila Real (Trás-os-Montes, Portugal), onde a tradição garante ter nascido o navegador Diogo Cão.

..........


"A Maravilhosa Viagem", de Castro Soromenho (descrição das costas do Sul de Angola)


“Um mundo misterioso vem até às areias desérticas, soltas ao vento, onde se ergue negra penedia que se alonga pelo mar. 

Pequenos morros nus e escuros destacam-se aqui e ali, na costa, com pássaros marinhos ao sol. Ao redor, um mundo de areia. 

Uma asa negra de abutre ganha, ao longe, os céus do deserto. Sobranceiro ao grande mar africano, abrem-se os braços de um padrão.

Quando todo o areal luz ao sol e o céu é azul claro, sereno e límpido, enxerga-se na linha do horizonte, terras dentro, uma mancha.

Para as bandas do oceano, calmo como mar morto, é o céu sem fundo. Velhos marinheiros, que dobraram aquele Cabo Negro onde o seu descobridor plantou o padrão, assinalaram essa mancha, parada e enorme quando o céu se abre até aos confins do horizonte, mas nenhum afoitou passos para a sua descoberta.

Entre o mar e essa terra alta, estende-se o deserto de areias soltas. E os marinheiros, que outros mares do Sul iam singrar na descoberta de novas terras, não passaram das praias brancas. É dessa terra alta, como que metida no céu, que vem a noite sobre o deserto. A noite e o mistério sobre que tudo repousa.

Correndo a sua sombra no azul das águas, um pássaro apanha um peixe na ponta vermelha do bico e ganha as brisas do largo, perdendo a brancura das asas nos horizontes longínquos.
Outros seguem-lhe o voo largo e lento, de longe em longe interrompido subitamente, para em descidas vertiginosas picarem o peixe à flor da água.
E é já com as sombras da noite sobre os braços do padrão que o bando regressa, corta o céu da praia, solta gritos vibrantes e entra e perde-se no fundo da noite da terra erma.

Peixes voadores prateiam-se sobre o mar tranquilo. Nas cavernas das rochas, grilos vermelhos começam a cantar. E como que embalando o seu canto, as águas espumadas marulham nas areias ainda quentes do sol. A noite fecha-se, negra e funda, sobre o deserto e o mar. E tudo cai num grande silêncio. (…)

(…) A recordar os passos do homem por aquelas terras sem nome de gentio - pois Cabo Negro foi a legenda que lhe deu o descobridor - só existe o padrão, enegrecido por mil e mil sóis.

Ergueu-o, em 1485, Diogo Cão, na viagem em que os ventos mais longe levaram as velas da nau da Descoberta. (…)”.


A Maravilhosa Viagem - Castro Soromenho (1910-1968) - Publicado por Editora Arcádia, Lisboa, Portugal, 1961.

África Minha
(Out of Africa)
(I)

(II)


quarta-feira, 28 de julho de 2021

Angola, a UNITA e o MPLA nos "Jogos Africanos" de Jaime Nogueira Pinto (Um livro notável)

 



Embora aborde também a situação militar e política de Moçambique e da Guiné-Bissau nos derradeiros anos do domínio colonial português (que teve os dias contados após a revolução de 25 de Abril de 1974) e no período que imediatamente se lhe seguiu, Jogos Africanos, a excelente obra de Jaime Nogueira Pinto (JNP) publicada em 2008 por A Esfera dos Livros, assenta sobretudo em  dois robustos pilares narrativos:

- a forte ligação do autor a Angola, “jóia da Coroa” do império, que o levaria a participar, após a independência, como conselheiro político da UNITA (de Jonas Savimbi), na guerra civil que opôs este movimento ao MPLA (de Agostinho Neto e do sucessor deste, José Eduardo dos Santos);

- e, ponto de partida para tudo o mais, o seu fascínio por África e pela história colonial portuguesa.


Tropas portuguesas nas guerras de África.


A ligação a África de JNP começou na infância, como aconteceu a tantas crianças portuguesas da sua geração, e inaugurou-se com o acesso às histórias, reais ou imaginárias, de militares intrépidos e de heróicos exploradores dos sertões.

Num sótão convidativo da residência familiar, na cidade do Porto, descobriu o pequeno JNP um mundo até então ignorado mas de que nunca mais se conseguiria libertar. Nas suas próprias palavras:

Foi aí, entre uma série de itinerários africanos de viajantes portugueses do século XIX, que nos apareceram o Capelo e o Ivens sentados numa sanzala, de chapéu colonial, carabina, pistolão e bota alta. (…) Do mesmo armário saiu-nos o Serpa Pinto em forma de foto-desenho, de cabelo e barbas hirsutos, no seu “Como eu atravessei África” (…) E lá vinha outra vez o explorador, agora sob a legenda “Serpa Pinto e os seus moleques de confiança”, sentado, armado e ladeado por dois negros com bom aspecto, também de carabinas.


Líderes angolanos em 1975: Da esq. para a dir. - Holden Roberto (FNLA),
Jonas Savimbi (UNITA) e Agostinho Neto (MPLA)


Contributo poderoso para a construção mental e sentimental dessa África mitificada, em grande parte apenas imaginária ou já extinta, foi a posterior leitura de “As Minas de Salomão”, de Ridder Haggard, na versão de Eça de Queiroz.

Diz JNP:

Vivi a fundo, com o Eça, este mundo das raças negras guerreiras, dos regimentos zulus ou impis, das danças rituais, das batalhas da colina e de Lu, onde as armas de fogo dos europeus faziam a diferença. E vivi também a morte, sempre tão presente nesta e noutras narrativas de África. A morte à espreita no campo aberto da savana com o leão, nos rios, com o crocodilo, na selva, com as cobras. Ou a que vem dos homens, das setas envenenadas, das emboscadas, dos recontros.


Soldados da UNITA em marcha.

 

O início da guerra em Angola, no ano sangrento de 1961, trouxe a JNP uma outra África: a que, irresistivelmente impulsionada pelos “ventos da História”, caminhava em passos por vezes lentos, mas seguros e imparáveis, para a libertação dos jugos coloniais.

Daí até 1974/1975, os anos do fim colonial, foram 13 anos de guerra implacável em três frentes de combate – na Guiné-Bissau, em Moçambique e em Angola. Em nenhuma das três frentes os portugueses foram militarmente derrotados – a sua capitulação definitiva foi política, depois da revolução ocorrida em Portugal no ano de 1974.


Soldados cubanos em Angola. Ao fundo, o retrato de Agostinho Neto.

 

JNP era, e continua a ser, um homem politicamente situado à direita. Mas pertence a uma direita infelizmente hoje muito rara em Portugal: intelectualizada, reflexiva e moderada, com a qual os adversários conseguem dialogar e discutir sem se desembocar em vias de facto.

Em 1974, porém, o fascínio outrora nascido naquele sótão encantado estava longe da extinção em JNP:

Era a minha segunda África (…) Era um mito, um valor e, como todos os mitos e todos os valores, intocável e indiscutível (…) Defender o Império, o Portugal do Minho a Timor, era para nós, à direita, o mesmo, mas ao contrário, do que era o abandono incondicional do Ultramar para os anticolonialistas da esquerda.


Tropas sul-africanas em Angola.
 

Isto explica, em grande parte, o que foi a insólita e anacrónica "carreira" de JNP no Exército português. Tendo-se oferecido como voluntário para Angola, quando nada o obrigaria a isso, acabou embarcado para a colónia em Julho de 1974 - isto é, depois da revolução, quando o movimento das gentes lusas era já, pelo menos em potencial, de refluxo, de abandono, de liquidação definitiva do império.

A ideia de JNP, naquela altura como sempre, era a de defender o que fosse possível defender para que a ex-“jóia da Coroa” não acabasse em mãos erradas…

Daí as manobras conspiratórias, as alianças fugazes de última hora, os enganos e desenganos – até ao desenlace lógico, o único possível, daquela aventura: a fuga rocambolesca de Angola, pelo sul desértico, acompanhado pela sua esposa (Maria José Nogueira Pinto), acabando tudo em periclitantes refúgios nos territórios sob controlo dos sul-africanos.


Visita à cidade da Jamba. Da esquerda para a direita: Maria José Nogueira Pinto
(esposa do autor), sua irmã Maria João Avillez, Jonas Savimbi, Ana Isabel Savimbi
e Jaime Nogueira Pinto (foto incluída no livro).

 

O livro prossegue, ora em tom dramático, ora em pinceladas de irresistível humor, pelo exílio do autor e da sua família – ele, como tantos outros, já não era bem-vindo no Portugal democrático...

Depois foi a reaproximação a Angola através de uma longa ligação à UNITA, como conselheiro político, numa guerra civil que se estenderia por 26 anos (o dobro da duração da “guerra portuguesa” em África!) e que só findaria com a morte em combate de Jonas Savimbi (22 de Fevereiro de 2002).

Pelo meio fica o relato das andanças de JNP por vários países e da sua intervenção activa no processo político em curso, designadamente os seus contactos com alguns dos principais intervenientes no conflito, incluindo o próprio Savimbi, na mítica (ou mitificada) cidade da Jamba, capital da resistência da UNITA no sudeste angolano.


Tropas da UNITA na Jamba. Ao fundo, a imagem de Jonas Savimbi.

 

O livro de JNP é de muito proveitosa leitura e fornece um contributo indispensável para a compreensão da guerra civil em Angola e das intervenções armadas externas - e directas - no conflito: Cuba do lado do MPLA e África do Sul em apoio da UNITA. E explica de forma clara a evolução político-militar, a nível mundial e no contexto angolano, que levaria à saída dessas forças “exógenas” do campo de luta angolano.

Complementado, por exemplo, pela obra de Margaret Anstee, representante do Secretário-Geral da ONU em Angola (Órfão da Guerra Fria), Jogos Africanos possibilita uma visão tanto quanto possível equilibrada do que foram as eleições de 1992 (relativamente às quais Savimbi sustentou até ao fim ter existido fraude) e do quase imediato massacre em Luanda, pelas forças do MPLA, de importantes dirigentes e de milhares de simpatizantes da UNITA.


Um dos encontros entre José Eduardo dos Santos (MPLA) e Jonas Savimbi (UNITA). Apesar da aparente afabilidade e dos sucessivos "acordos", a paz tinha-se tornado impossível entre estas duas personagens.


Dessas ocorrências trágicas em Luanda resultaram mais dez anos de guerra civil. Ficou claro, depois delas - não obstante os esforços de vários homens e mulheres de boa vontade e da celebração de múltiplos “acordos” MPLA/UNITA –, que o problema de Angola só seria resolúvel por uma de duas formas: 

- ou através da secessão do território, com entrega de cada uma das parcelas divididas aos partidos em conflito;

- ou com o aniquilamento de uma das forças combatentes e a morte do seu chefe – como viria a suceder em 22 de Fevereiro de 2002.

Jogos Africanos, de Jaime Nogueira Pinto, torna isto tão cristalino como a água pura...

A ler e a reler.

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Uma Cruz de Cristo entre o mar e o deserto do Namibe (Sul de Angola)...






Na costa sul-angolana
à beira do deserto profundo
e das planuras infindas,
semeadas de penedias escurecidas,
bruscas,
carcomidas,

entre tufos de capins requeimados
e mares azuis translúcidos
de espumas ferventes e salgadas
a morrerem no areal fulvo,

de repente,
encravada no tempo e nas memórias velhas,
surge a cruz de Cristo,
simplesmente uma cruz.

Jaz alheia à procissão dos séculos,
indiferente aos sacrifícios,
às mortandades,
aos desenganos,
às cobiças,
aos encontros e desencontros,
aos afectos ganhos e perdidos,

já esquecida do passo cadenciado
dos batalhões imperiais
do silvo lacerante das balas e das flechas,
da palavra trémula e anacrónica
de políticos arcaicos e longínquos,

de repente,
simplesmente,
eis a cruz.

Cruz solitária e abandonada
de braços abertos ao oceano cálido
que foi em tempos
a estrada franca de caravelas e de sonhos,
de promessas vãs de um mundo novo,

Cruz surda e muda
no desenho geométrico e pontiagudo
das suas linhas definitivas e breves,

carregando em si
apenas
um legado minúsculo,
trágico,
pungente,
inútil,
do Portugal que foi...




quarta-feira, 28 de abril de 2021

Brasil - Tempos de Escravidão

 


Séculos antes do tráfico transatlântico de escravos, já os comerciantes árabes desciam ao sul do continente africano para adquirir e transportar mulheres e homens negros, através do deserto do Saara, até à bacia mediterrânica e à Península Arábica. A lei islâmica proibia a escravização de muçulmanos, mas não a de "infiéis", o que oferecia larga margem de manobra aos traficantes.

As aquisições faziam-se, por norma, em mercados especializados a sul do deserto saariano. Mais tarde seriam também abertas rotas marítimas pelo mar Vermelho e oceano Índico, ao longo das quais fluíam, desde a costa oriental africana, os carregamentos humanos até chegarem às mãos dos clientes finais (que podiam estar na Arábia, na Índia, em Malaca, em Java ou, até, na China).

Assim, com início logo no século VII, foram milhões os seres humanos arrancados ao longo dos anos ao seu meio, às suas famílias e à sua liberdade. Como sucederia depois com a investida dos europeus nas costas africanas (finais do século XV, século XVI e seguintes), os árabes conseguiam a maior parte da mercadoria humana através de relações comerciais mais ou menos pacíficas com muitas das elites africanas, assim tornadas cúmplices do nefando comércio.

A chegada dos europeus - com a sua entrada quase imediata no comércio firmemente implantado no território - não fez mais do que aumentar a sangria humana, elevando-a a patamares anteriormente impensáveis. Ainda não se tinha chegado a meio do século XVI quando os negros começaram a chegar ao Brasil - e a outras paragens colonizadas das Américas - às centenas e aos milhares. Depois, nos anos seguintes, até ao século XIX, os carregamentos subiram às centenas de milhares e aos milhões.

Portugueses, brasileiros, britânicos, franceses, espanhóis, holandeses e americanos, entre outros, fariam depender as suas economias coloniais dos braços fortes dos homens e das mulheres de África, muito mais resistentes e rentáveis do que os dos índios.



No Brasil, os escravos destinavam-se principalmente às plantações, às minas, aos engenhos de açúcar e aos serviços domésticos. Arrebanhados pela força, detidos a contragosto, sujeitos às arbitrariedades dos donos, por vezes revoltavam-se ou fugiam, saltitando de terra em terra ou refugiando-se nos quilombos (ver aqui).

Alguns eram perseguidos, capturados e punidos. Outros, escondidos, conseguiam manter uma liberdade periclitante, sempre ameaçada. Outros mudavam de senhor e de sorte, sendo vendidos, alugados ou emprestados. E, ainda outros, conseguiam não obstante, por sua inteligência e méritos, libertar-se das cadeias da escravidão e elevar-se socialmente, alcançando posições preponderantes.

A escravidão no Brasil durou séculos, prolongando-se mesmo para além da independência nacional (1822). Oficialmente extinguiu-se pela Lei Áurea (13 de Maio de 1888), legislação importante, mas que não extirpou completamente o flagelo.

No fim de tudo, e após o excruciante sofrimento de sucessivas gerações, os homens e as mulheres de África - e os seus descendentes - tinham dado um contributo fundamental para a construção do Brasil. Fizeram-no em todos os domínios e expressões culturais, como a demografia, a música, a economia, a religiosidade, a literatura, a gastronomia, o desporto, o falar colorido e a inconfundível fisionomia nacional. Em suma, em tudo quanto fez no passado, e faz ainda hoje, a multifacetada e admirável riqueza cultural e étnica do grande e bem-amado Brasil.

Saiba mais sobre a escravidão brasileira - aqui.





Capitão do mato, caçador de recompensas,
perseguidor de escravos fugitivos














Mercado de escravos, no Recife


















Zumbi
(Jorge Ben Jor)


Canto das Três Raças
(Clara Nunes)


domingo, 28 de junho de 2020

Uma Caçada no Deserto (Moçâmedes, Sul de Angola) - 2.ª Parte




(Continuação da postagem de ontem)


Nos Areais de Moçâmedes (II)


"O caçador olhou o céu. E lá longe, no horizonte, uns pontos negros voavam em filas: eram os abutres que se apressavam, atraídos pelo cheiro do sangue!

O tipo deste caçador e de seu irmão, que conduz o outro carro, é deveras singular. Negros, requeimados de sol, são assim como ciganos endurecidos pelo clima e pelas privações a que se sujeitam nas aventuras de caça, tendo conseguido não só uma adaptação do corpo, mas também do espírito, à vida agitada e arriscada a que permanentemente se sujeitam.

O deserto é o seu campo favorito. A espingarda e o carro são os seus recursos preciosos, de onde tiram a carne - com que gostosamente se banqueteiam - e os lucros dos transportes de passageiros, pois que em Moçâmedes as caçadas nos areais constituem uma curiosidade notável, que atrai todos os forasteiros, pelas condições anormais em que são realizadas.

De facto, numa região onde o pasto não passa de uma ervazita rasteira, espécie de malva carnuda, como se aguenta uma vida tão persistente, de animais possantes e velozes?




Agora o terreno agita-se um pouco. Pequenas ondulações sucedem-se. E à nossa frente, lá ao longe, elevam-se os degraus da Serra da Chela, negros e verticais, singularmente recortados no céu esbranquiçado.
Entre eles destaca-se o Morro Maluco (Cha-Malundo), cuja conformação é realmente caprichosa, recurvado como uma garra.

O sol já clareia tudo. À medida que se vai elevando, vai dando às coisas os tons que o fogo transmite aos tijolos de um forno.

A Natureza encontra-se neste instante ao rubro.
Como não há árvores nem acidentes em toda a extensão, a falta de sombras elimina a sensação de relevo e a noção das distâncias perde-se na profundidade incalculável da planura. E assim, quando surge qualquer vulto animal, são precisos olhos experimentados para o distinguir, no fundo cinzento do chão.




Agora mesmo, de um dos carros, veio o sinal de caça. Convergiram todos para a direcção por ele apontada, mas só ao cabo de uns segundos se conseguiu distinguir claramente o corpo de uma zebra tosando as ervas raras.

O animal surpreendido entra a trotar e, quando os carros se aproximam, o seu corpo listrado, de cabeça erguida e cauda tesa, inicia uma galopada elegante que nos entusiasma. Galopa velozmente, levando-nos de vencida, até galgar uma elevação, para o outro lado da qual se esconde repentinamente.

Um brado soa: Cautela, cautela!
Tínhamos atingido as margens abruptas do rio Bero e os carros dificilmente foram travados na vertigem em que iam lançados.
Lá no fundo, quando atingimos a beira da rampa, a zebra trotava ainda, assustada, estacando curiosa a olhar-nos de face.

Afastada a zebra para longe, ficava em frente de nós a curiosidade de um rio absolutamente seco, cujo leito arenoso se prolongava pela trincheira funda praticada no solo.

São assim todos os rios alimentados pela vertente ocidental da Chela: durante o período das secas, nem uma gota de água lhes humedece o leito arenoso; vindas as chuvas, a água desce da serrania, às catadupas, galgando obstáculos, arrasando tudo na sua frente, como onda formidável.
E, passados dias, horas por vezes, de novo o leito é simplesmente marcado pela areia seca e movediça que foi arrastada pela enxurrada.




Paramos a conversar sobre zebras, para a caça das quais um dos carros trazia um laço armado na extremidade de uma grande vara.

Das três espécies de hippotigris, apenas duas têm representantes nos areais de Moçâmedes, não existindo o cuaga, que é a zebra menos listrada.

Animal insubmisso, todas as tentativas de domesticação têm obtido resultados pouco animadores, pois nunca no animal se conseguem anular as qualidades de braveza inata. Os próprios produtos nascidos de pais cativos mantêm a selvajaria insubmissa, e os cruzamentos com a espécie cavalar e asinina não vêm adoçadas, o que evita a sua utilização no serviço do homem.

Assim, esses milhares e milhares de zebras que povoam a África, desde muito acima do Equador até ao Cabo, transformam-se em flagelo das culturas, consideradas em toda a parte como animais daninhos.

Apenas o leão as ataca com vantagem: dos outros animais defendem-se aos couces e mesmo à dentada.
Desta forma a sua reprodução vai-se operando livremente e dia a dia crescem as manadas que galopam nas planícies africanas.




Nos momentos em que o carro pára, sente-se a fornalha do calor.
Pela extensão larga do areal, a atmosfera, ao contacto com a terra, tem vibrações ferventes e trémulas. A cor que ilumina as coisas é de um tom alaranjado incaracterístico.

As cabras agora aparecem espalhadas, pastando. O tiroteio repete-se. Tombamos duas...

Olhamo-nos uns aos outros com o sentimento da nossa brutalidade e selvajaria.
É que naquele nosso divertimento havia muito de ferocidade, que nem ao menos tinha a justificá-la a necessidade do aproveitamento da carne!

Era simplesmente o instinto primitivo de deter movimento, de destruir vida (...).





São as horas combinadas de nos juntarmos no Pico do Azevedo, para almoçar.
De caminho matamos mais cabras, quase sempre machos. 

O caçador explica a razão desse facto: as atalaias dos bandos são sempre machos, e também é muito vulgar encontrar bandos enormes deles, repelidos dos rebanhos pelos seus rivais mais fortes e mais felizes.

Uma ou outra zebra desgarrada afasta-se de nós, a trote. Seguimos para o ponto de concentração.
Sobre nós voam abutres, em grandes círculos, na esperança da caça abandonada.

E logo o caçador ilustra este facto com uma narrativa impressionante.




Uma vez, um rapaz de Moçâmedes, andando à caça, perdera-se nos areais.
Coisa fácil para quem não conheça bem o deserto.

Andou, andou... O calor e a sede foram-no esgotando.
Na ansiedade de se salvar, já não andava: corria desorientado! Gritava meio enlouquecido: e cada vez o cansaço o tomava mais.

Parecia que o deserto em volta, ardente e infinito, se preparava para o devorar.
O calor requeimava.
De repente sentiu o ar agitar-se frescamente em volta da sua cabeça.
Horror!
Eram os abutres, já ali, prontos para o devorar... Foge, tomba, grita, torna a tombar, esconde a face aterrada na areia escaldante, corre de novo, de braços erguidos, louco, perdido...

Quando o carro o encontrou, desmaiado no meio do areal, já os abutres em volta, avançando em saltos receosos, se aproximavam para iniciar o banquete.




Apesar de não correr uma única aragem, lá para longe levantam-se vagas ondas de poeira.
Um amigo explica que, sob aquele pó, deve galopar um esquadrão de zebras que nós não distinguimos.

Abrem-se os farnéis.
Não faltam os clássicos e nacionalíssimos bolos de bacalhau, afirmando que até no deserto fazemos reinar os nossos sagrados hábitos, as ternas recordações da casa e da família.

Formamos efectivamente um grupo curioso e heterogéneo, mas igualmente infiltrado da maneira de ser da nossa terra.

Somos de todas as categorias, desde os caçadores enegrecidos pelo deserto, como se fossem berberes, aos diletantes que vieram atraídos pelo sonho da acção.

E, apesar de tudo, aquele grupo, aconchegado ao rochedo nu, pensa, sente com a mentalidade de Portugal e ri as boas gargalhadas salutares da nossa gente.




(...) Vamos de novo para a caça.
Junto do Pico do Azevedo já fica um montão de carne morta, que recolheremos no regresso.
Não falta a lebre ligeira e abunda uma variedade de codornizes patorras, duma mansidão impressionante, confiando imbecilmente na fera bípede que está junto delas.
O caçador esperou que os animaizinhos tomassem uma disposição conveniente e tombou quatro de um tiro.

Depois, na lomba de um outeiro, projectando-se no céu em vulto engrandecido, começaram passando grupos de zebras a galope.

À ilharga dos animais adultos marchavam poldros pequenos, alguns certamente com poucos dias ainda. Não são elegantes: lembram os desenhos que o homem primitivo gravava nos chifres das renas, com aquele mesmo lançamento no galope, as mesmas cabeças exageradamente grandes em relação ao corpo e a mesma disposição em fila.

Um grupo estacou de frente, a contemplar-nos. Depois passaram mais grupos, uns após outros, seguindo os movimentos das avançadas.

O escrúpulo do sangue deteve-nos, deixando passar em paz a récua enorme, que desfilava na nossa frente.
E quando caminhávamos à cata de novas sensações, um espectáculo inesperado surgiu em frente dos nossos olhos.


Depois de tanta aridez, uma larga superfície de água estendia-se à nossa frente, clara, transparente, reflectindo nitidamente os acidentes do relevo.
A superfície lisa reproduzia as imagens do horizonte com a precisão admirável de um espelho.

Os caçadores riam perante a nossa ilusão: o que estava em frente era um fenómeno de miragem, repetindo invertidas as imagens do horizonte, por efeito da refracção dos raios luminosos através das camadas aéreas desigualmente aquecidas e, portanto, desigualmente densas.

Assim a Natureza, diabolicamente, cria no deserto a miragem ilusória da água, de molde a enlouquecer o pobre viandante perdido de sede e de cansaço.

Era a água tal e qual, ali a dois passos, estendida num lençol de tentadora limpidez.




(...) Mas este dia de surpresas não acabara ainda.
As cabras surgiam de todos os lados, às centenas, numa abundância e numa impassibilidade inacreditáveis!

Na nossa frente desloca-se, na profundidade e na largura do areal, um número tal de animais, que em nós abrandou a vontade de caçar, encantados com o espectáculo de tanta vida saltando, galopando, vivendo ao nosso alcance!

O que está diante dos nossos olhos é de tal forma maravilhoso que só pode ser acreditado por aqueles que já o gozaram.
Eu, pela minha parte, só conhecia coisa parecida criada pela imaginação de Flaubert na Lenda de S. João Hospitaleiro e recusar-me-ia a crer que a Natureza o pudesse reproduzir e demais em condições tão extraordinárias.

É um sonho: em frente de nós, aos lados, para a rectaguarda, galopam milhares de cabras!
(...) Já ninguém queria matar, banalizado o prazer da caça pela profusão das reses e pela facilidade de as alcançar.
Todos sentíamos um começo de fadiga, não corporal, mas um vago aborrecimento e remorso de tanta morte inútil, de tanta dor causada em vão. Para quê mais mortes, para quê mais dor? (...)




O crepúsculo começa a cair e é necessário estar em Moçâmedes a horas convenientes.
Acesas as lanternas, a paisagem toma de novo aspectos de uma irrealidade macabra (...)

Francamente: éramos dignos de um castigo severo, bárbaros que andavam um dia inteiro a matar, para largarem as vítimas no meio dos areais, às portas de uma cidade civilizada, para pasto da sórdida quimalanca, que durante a noite viria rasteiramente, covardemente, banquetear-se com a carne fria que o homem destruíra e depois abandonara!"


(Fonte: Gastão de Sousa Dias - "África Portentosa" - Seara Nova - 1928 - Lisboa)
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Ruy Mingas
("Minha Terra")