domingo, 29 de junho de 2008

Mulheres de Angola - (Na obra de Neves e Sousa) - (1)

Rapariga Muxilengue














Mulher do Bocoio















Rapariga do Cuamato

















Mulher Herero















Mulher Kioka
















Mulher Luena
















Mulher Mucancala















Mulher Baluba















Rapariga do Humbe

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Mulher Cuvale Pensativa - (Angola, Namibe)

Manuel Moraes, que eu já não via há décadas, surgiu de súbito das profundezas mais recônditas da minha infância e visitou-me outro dia na Torre, presenteando-me, na ocasião, com esta bela recordação de mulher cuvale pensativa.
Para retratá-la, com mão de mestre (que herdou de seu pai), decerto se inspirou naquilo que foi a sua (nossa) vivência mais recuada, contida entre os areais fulvos do deserto de Moçâmedes (Namibe, Angola), as cordilheiras vertiginosas e luxuriantes da Chela e uma correnteza de ilusões à desfilada.
A milhares de quilómetros daqui - tão longe e tão perto.

Na Torre, entretanto, a mulher cuvale vai persistindo fixamente no curso dos seus pensamentos, entre estantes perfiladas de lombadas, a caravela altaneira, o búzio luzidio, o Afonso Henriques belicoso, o perspicaz Rip Kirby, o São Martinho e o seu dragão, o garboso guerreiro lusitano, o cavalo Bucéfalo...
Mergulhada num mundo atravessado por sombras de passados distantes, estranhos e míticos - que é preciso recolher, tratar e divulgar...



domingo, 15 de junho de 2008

(José Gomes Ferreira - Portugal) - Chove...

 
Chove...
Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir na chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?
Chove...
Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.

(José Gomes Ferreira) (1900-1985)

Mário Quintana (Brasil) - Palavras Soltas ao Vento

O que me impressiona,
à vista de um macaco,
não é que ele tenha sido nosso passado:
é este pressentimento
de que ele venha a ser nosso futuro.


Quando completei quinze anos,
meu compenetrado padrinho
me escreveu uma carta muito,
muito séria:
tinha até ponto-e-vírgula!
Nunca fiquei tão impressionado na minha vida.


Escadas de caracol
sempre são misteriosas:
conturbam...
Quando as desce,
a gente se desparafusa...
Quando a gente as sobe
Se parafusa.


Hoje me acordei pensando
em uma pedra numa rua de Calcutá.
Numa determinada pedra numa rua de Calcutá.
Solta.
Sozinha.
Quem repara nela?
Só eu, que nunca fui lá.
Só eu, deste lado do mundo,
te mando agora esse pensamento...
Minha pedra de Calcutá!


Era um grande nome;
ora que dúvida!
Uma verdadeira glória.
Um dia adoeceu,
morreu,
virou rua...
E continuaram a pisar em cima dele.


Como seriam belas
as estátuas equestres
se constassem apenas dos cavalos!

(Mário de Miranda Quintana foi um poeta, tradutor e jornalista brasileiro. Nasceu em Alegrete na noite de 30 de Julho de 1906 e faleceu em Porto Alegre, em 5 de Maio de 1994).

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Pedro I de Castela e Leão (3.ª Parte) - Morte do Rei em Montiel


Ruínas do castelo de Montiel (Espanha)

Em 1369, Pedro I de Castela e Leão está à beira do fim.
Sucessivamente derrotado pelas tropas do meio-irmão Enrique, conde de Trastâmara, o bastardo de Alfonso XI que encabeça a rebelião das irrequietas nobrezas castelhanas, ele está praticamente só, se descontarmos alguns fiéis que teimam em acompanhá-lo.
Perdeu João Afonso de Albuquerque, que se passou para o inimigo e que o combateu até à morte. Ficou sem a sua querida Maria de Padilla, falecida muito jovem. Enfrenta as nobrezas desleais, Aragão, o Papado, os mercenários da França comandados por Bertrand Du Guesclin.
Por fim, abandonado pelos aliados ingleses, acolhe-se a Montiel, para viver os seus últimos dias - até que se concretize o gesto ignóbil que iniciará em Castela a dinastia dos Trastâmaras.

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" (...) A partir deste ponto torna-se claro que os caminhos de Pedro de Castela só poderão ser curtos e céleres. Ao amanhecer de 14 de Março ele está com a sua gente - em que se integram aliados mouros de Granada - nos arredores de Montiel. As tropas acham-se dispersas e desprevenidas, e, quando por aqui surgem algumas forças de cavalaria do bastardo, o que se segue é mais uma escaramuça do que, propriamente, uma ba­talha. Mas deste pequeno recontro, que noutras circunstâncias não deixaria qual­quer traço nas memórias, vão nascer acontecimentos que marcarão a história da Península para sempre.

Batido no choque insig­nificante, o rei legítimo acolhe-se às muralhas de Montiel e não tarda a descobrir, com os poucos fiéis que lhe restam, que o lugar se transformou numa ratoeira, sem condições de defesa e sem fuga possível. Pedro talvez se lembre do feliz desenlace de uma outra situação espinhosa - em Toro, catorze anos antes. Mas em Toro os seus opositores eram homens cerimoniosos e moderados, apesar de tudo dispostos a respeitá-lo. Aqui, em Montiel, os sitiantes fecham as mãos nos punhos das espadas e acham-se mais do que determinados a derrubá-lo, vivo ou morto, do seu trono. Enrique de Trastâmara percebe que tem o desfecho à vista, levanta barreiras de pedregulhos em torno das muralhas e manda que se empeçonhe a água que abastece o castelo. Assim que os víveres começam a faltar e se assinalam deserções, torna-se inviável a própria sobrevivência no reduto.

Quando tudo parece perdido, brilha em Montiel um clarãozinho de espe­rança. Por secretas conversações com o mercenário Bertrand Du Guesclin, acredi­ta-se que será possível fazer evadir Pedro a troco de gordas compensações.
Na noite de 22 para 23 de Março de 1369, acompanhado de um grupo restrito de fiéis - entre os quais Fernando de Castro, Diego González de Oviedo, Men Rodríguez de Sanabria, Fernández de Villodre e Fernán Alfonso de Zamora -, o soberano deixa a relativa segurança do castelo. Mas, ao invés de uma tra­vessia das linhas de cerco em direcção aos campos dos arredores, o grupo é furtiva e estranhamente encaminhado, pelo meio das trevas, até à tenda de campanha de Du Guesclin.
Quando o rei pressente a cilada e se apresta para retirar dali, irrompe da escuridão, à entrada da tenda, a figura baixa de Enrique de Trastâmara, de bacinete na cabeça, armado até aos dentes. O bastardo não se avista com o irmão há muitos anos, custa-lhe identificá-lo na penumbra, e, por isso, interroga - como se fosse ele o soberano autêntico e o outro o usurpador: Onde está D. Pedro, que se chama rei de Castela?

Alguém o previne, apontando o rei legítimo, que aquele é o seu inimigo. E é neste instante que Pedro, num brutal assomo de nervos, salta raivoso sobre Enrique e se põe aos gritos: Sou eu! Sou eu!

Reconstituição imaginária da morte de Pedro I
às mãos de seu irmão Enrique de Trastâmara 
Um rei é e será sempre um rei. E este que aqui está, a urrar de ódio e de cólera, bate-se com bravura, até ao fim, pelo seu trono. Rolam caídos e engalfinha­dos, como feras, os dois filhos de El Onceno. Nestes se­gundos de horror, a Coroa de Castela disputa-se aos tombos, numa luta assassina, pelo chão de uma tenda de mercenário. Parece por momentos que Pedro tem por si o destino, já se prevê que seja sua a punhalada final, mas adiantam-se os homens do usurpador, sujeitam o rei legítimo, soerguem-no, expõem-no descoberto e inde­feso diante do seu inimigo - e logo o braço deste desfere, num relâmpago, o golpe de adaga que põe termo a um turbulento reinado de dezanove anos.

E com este fratricí­dio de Montiel se segura de vez em Enrique de Trastâmara a coroa que ele tanto ambicionou e pela qual combateu até ao gesto irremissível. Mas, porque um rei é sempre um rei, o sopro sagrado que lhe chega das gerações antigas varre até mesmo os pecados mortais do presente.
O soberano de Castela, que é, a partir de agora, único, encabeça as nobrezas senhoriais triunfantes e será futuramente acolhido em crónicas amáveis com o nome de Enrique II.
A memória do seu irmão-inimigo ficará entretanto retida em páginas severas e tenebrosas, onde os homens o evocarão, pelos tempos fora, como Pedro, o Cruel. (...)" (*)

(*) José Bento Duarte - Peregrinos da Eternidade - Editorial Estampa - Lisboa - 2003

(FIM)

Pedro I de Castela e Leão (2.ª Parte) - Revelação de Uma Personalidade: A Morte de Garci-Laso de la Vega

Pedro I de Castela e Leão


Provavelmente co-responsável, com João Afonso de Albuquerque, pelo assassínio de Leonor de Guzmán - a bela nobre sevilhana que foi o grande amor da vida de seu pai, Alfonso XI, El Onceno -, e beneficiando, pelo menos, da cumplicidade vingativa de sua mãe (Maria de Portugal), Pedro I de Castela logra disfarçar-se ainda na sombra durante esse episódio sangrento.
A primeira aparição comprovada no palco de sangue que foi o seu reinado dá-se em Maio de 1351, na cidade de Burgos, onde, instigado pelo terrível Albuquerque, mandou proceder friamente à execução do adelantado Garci-Laso de la Vega.
É, tal como o narram os cronistas, um dos lances mais impressivos da Idade Média castelhana.
……….

" (...) A tragédia de Leonor de Guzmán deixa muita gente estarrecida, mas pode, de certo modo, confundir-se com o epílogo de um enredo passional. João Afonso de Albuquerque sabe, e o reizinho aprende depressa com ele, que é indispensável ir mais longe para que os nobres irrequietos entendam a natureza e o alcance do novo poder. Por isso, neste Maio de 1351 que se vai recamando de matizes sangren­tos, a corte efectua um desvio por Burgos, onde Juan Núñez de Lara andou a espa­lhar, antes de se despedir da vida, as sementes do descontentamento.
Em Burgos permanecem alguns dos amigos do falecido, como o adiantado de Castela, Garci-Laso de la Vega. Albuquerque trabalha o espírito do soberano, alerta-o para o risco que representam para a Coroa as forças de que dispõe o adi­antado.

Há factos recentes que jogam a favor destes avisos, como o assassínio, em Burgos, de um cobrador de impostos do rei. Que fez Garci-Laso, com toda a sua autoridade, perante um atentado de semelhante gravidade? Rigorosamente nada. E, agora que se aproximam da cidade, não vê Pedro como os burgaleses se propõem barrar-lhes a passagem?
Em boa verdade, na pureza das coisas, é a pessoa de Albuquerque que os habitantes da cidade querem ver pelas costas: mas hostilizar o valido não é o mesmo que desafiar a autoridade do rei? Pedro não tarda a convencer-se de que está diante de um covil de traidores. Ordena, então, que se dê entrada na cidade, e, num sábado de Maio, vai hospedar-se em casa do bispo. Maria, a rainha-mãe, que está por dentro do que se trama, expede nessa noite um recado para Garci-Laso de la Vega, advertindo-o de que por nada deste mundo se deve encontrar com o rei.

O relato do que vai ocorrer em Burgos com o adiantado de Castela permite que captemos pela primeira vez, na sua identidade genuína, a figura do novo monarca. Pedro abandona enfim as sombras para onde foi empurrado por duas personagens dominadoras – antes, o pai, agora Albuquerque - e adianta-se para a luz com a marca inconfundível da sua própria personalidade.
Na manhã de do­mingo, Garci-Laso resolve ignorar os avisos da rainha e encaminha-se, com alguns cavaleiros e escudeiros, até à residência real. Fresco, des­prendido e seguro, é óbvio que ele se imagina protegido pela sua reputação e pelo seu poderio.
À che­gada vislumbra alguns sinais que seriam preocupantes para outro ho­mem mais cauteloso do que ele - um certo ar de estado de sítio, com ma­gotes de guardas isolando os acessos ao palácio. A despeito disso, Garci-Laso en­tra de peito cheio. E é pouco de­pois de entrar que começa a perceber que cometeu uma impru­dência sem remédio.

Morte de Garcí-Laso de la Vega

Na câmara onde se acha o rei estão também Albuquerque, a rainha-mãe, alguns nobres, um padre, vários homens de armas. Todos com cara de caso. Maria, perturbada, some-se de repente numa dependência contígua, e os com­panheiros do adiantado são num ápice retirados de cena. Garci-Laso compreende. Se acaso lhe acode uma ponta de dúvida, ela dissipa-se assim que soa na câmara a voz de Albuquerque: Alcaide, sabeis o que tendes de fazer?
O alcaide, Domingo Juan de Salamanca, está ainda posto em respeito pelo prestígio do adiantado. Hesita. Não lhe basta o mando do valido. Volve-se para o rei, pede-lhe que confirme. E Pedro ordena: Besteiros, prendei Garci-Laso. Subjugado por vá­rios homens sem um esboço de resistência, o adiantado já se convenceu de que não sairá dali vivo. Roga, conformado, que lhe permitam confessar-se. Adianta-se o padre com o prisioneiro até ao vão de um portal que dá para a rua. E ali, espiado por uma quadrilha de algozes, Garci-Laso vai murmurando os seus pecados a troco da últi­ma absolvição.

As coisas arrastam-se. Albuquerque, arqui­tecto do poder total do rei, impacienta-se junto deste: Senhor, mandai o que se há-de fazer. E o jovem monarca determina que dois cavaleiros se dirijam ao confessionário improvisado com a sentença de Garci-Laso. Mas os besteiros não querem ainda acreditar. Um deles, Juan Ruiz de Oña, chega-se mesmo ao rei com a pergun­ta decisiva: Senhor, que mandais fazer de Garci-Laso? A vida do adiantado de Castela fica suspensa de um fio.

Convém reter este momento. Porque é exactamente agora que o verdadeiro Pedro surge da obscuridade, onde esteve encoberto até hoje, para se expor, de corpo in­teiro, à autenticidade histórica. É nestes segundos dramáticos que ele assume, sílaba a sílaba, glacial e distante, as suas primeiras palavras letais: Mando-vos que o ma­teis.
Não é preciso mais nada, pois o que se escutou não veio do português Albuquerque, veio do mais poderoso dos homens de Castela. E os besteiros logo caem como feras sobre Garci-Laso. Juan Ruiz de Oña assenta-lhe no crânio um tremendo golpe de maça, Juan Fernández Chamorro apunhala-o, e depois crivam-no de gol­pes até o perceberem sem um sopro de vida. O próprio rei ordena que o cadáver seja lançado à rua.
Neste domingo de Maio, que se quer festivo, correm-se touros na cidade em honra do soberano. E Pedro fica para assistir à tropeada dos animais que passam bravios na rua, por cima do corpo de Garci-Laso, pisoteando-o, co­lhendo-o, de­sarticulando-o, levando-o de rojo num tumulto de cascos e de cornadas, como um boneco grotesco, empastado de sangue. Mais tarde, encaixado num ataúde, ele será exposto nas muralhas de Burgos como advertência às oposições.

Pedro contemplou em pessoa o espectáculo da morte e aspirou o odor do san­gue. O futuro mostrará como apreciou tudo isso. Por agora, os actos de violência explicam-se como meios de afirmação do poder real. (...). (*)

(*) José Bento Duarte - Peregrinos da Eternidade - Editorial Estampa - Lisboa - 2003)


(CONTINUA)

Pedro I de Castela e Leão (1.ª Parte) - Cruel ou Justiceiro?


Estátua de Pedro I

Pedro I de Castilla y León (Burgos, 1334 - Montiel, 1369), apelidado El Cruel pelos seus detractores, El Justiciero por seus partidários.
Era filho de Alfonso XI, El Onceno, e de Maria de Portugal (filha do rei português Afonso IV, o Bravo).
Reinou de 1350 a 1369, ano em que morreu às mãos do seu meio-irmão Enrique, conde de Trastâmara, que seria o futuro Enrique II de Castela e Leão. Pedro I foi o último soberano da Casa de Borgonha.


Contam-se coisas horrendas do seu reinado, muitas delas talvez exageradas pelos inimigos que acabaram por vencê-lo. Na infância foi ignorado pelo pai, e aí residirá a origem da iniludível distorção da sua personalidade.
O português João Afonso de Albuquerque foi seu valido, uma espécie de primeiro-ministro, e torna-se por vezes impossível determinar onde termina a vontade de um e começa a do outro. Acabaram desavindos, com Albuquerque metido na conspiração que haveria de conduzir (já depois da morte dele) ao inglório fim do soberano.

-----------

" (...) No começo do seu reinado, Pedro I de Castela relaciona-se com o po­der como se mal acreditasse nele, como se a faculdade de mandar lhe fosse estra­nha e a tivesse re­cebido apenas de empréstimo. O seu vulto é ainda impreciso, quase desaparece no quebra-luz das velhas crónicas, enquanto ele se vai recom­pondo dos anos em que, sendo herdeiro da Coroa, o trataram como se não fosse nada.

Uma vez no trono tolera que se sirvam do seu punho para subscreverem as decisões, deixa que lhe utilizem a figura, a legitimidade e o prestígio do sangue que tem nas veias. O poder verdadeiro reside, em parte, na influência da mãe, que lhe aparou os medos, os despeitos e os fantasmas de uma infância de en­jeitado. Mas só em parte. Porque a força maior, e genuína, procede da inteligência, do engenho e do pulso de ferro com que o português João Afonso de Albuquerque dá corpo àquilo que entende necessário para tornar Pedro um rei vigoro­so e indiscutido. Por mais ou menos três anos o reizinho e o seu ministro são historicamente insepa­ráveis um do outro.

Como qualquer valido de um monarca tão poderoso, Albuquerque tem as costas largas. Assumirá deste modo, no juízo severo de alguns vindouros, não apenas as próprias responsabilidades, mas também as alheias. Ele age com in­des­mentível fidelidade à causa de Maria, a rainha viúva, e defende com intransigência o re­bento desta. O zelo posto na missão será de tal ordem que até Afonso IV de Portugal, que vo­tou ao pai de Albuquerque o ódio que sabemos, o reconhecerá a seu tempo.

Os con­se­lhos do valido são de uma dureza por vezes incomo­da­tiva? Não pode negar-se. Mas ao incitar o rei a proceder desta ou daquela forma, ele escolhe ca­minhos de autoridade semelhantes aos que se percorre­ram em Portu­gal, em Aragão e, até – lembremo-nos do defunto El Onceno -, no próprio reino de Castela. Nos sangrentos lances iniciais do novo reinado, o valido portu­guês, que conhece como poucos a personalidade do monarca, in­s­pira, sugere, persuade. Pedro escuta-o, conde­scende, autoriza to­dos os gestos. Mas, nalgu­mas ocasiões, saboreia, com evidente autonomia, o espectáculo do pavor, do vexame e do padecimento dos outros. (...)

Pode afiançar-se que não foi Albuquerque quem fez nascer em Pedro o que este exibirá mais tarde à vista de todos: o feitio desconfiado, o carác­ter volúvel, a astúcia maldosa, a insânia passional, o vício da crueldade, a volúpia das matanças.
Um dia, séculos após a morte deste rei, alguns sábios irão arrancar-lhe o esqueleto ao negrume bafiento do túmulo para perscrutarem as juntas dos ossos, os ângulos da face, as pro­porções do crânio. E afirmarão, depois de maduramente remexerem e reflectirem, que o homem a quem tais restos pertenceram foi, sem sombra de dúvi­da, um anor­mal. Pode ser que sim. Pode ser que as explicações se achem gravadas nestes despojos amarelentos. Como pode ainda suceder que a verdade se oculte nas histórias contadas pelos cronistas portugueses acerca dos demónios à solta no útero embruxado de Maria de Portugal, durante aquele Agosto longínquo de Burgos. Mas será porventura mais crível que as ra­zões se descubram na consanguinidade das ligações que deram origem a este rei­. Ou na sua infância transtornada, durante a qual o vimos gatinhar pelos bastidores do palco ibérico, atrás das saias, da revolta e do pranto da mãe re­pudiada.

Nada disto deve com justiça assacar-se a João Afonso de Albuquerque: nem as dimensões insólitas de um crânio; nem as travessu­ras avulsas de um bata­lhão de diabretes; nem o perigoso cruzamento de parentescos próximos; nem a se­creta e precoce maturação de um psicopata.
Acreditemos que o valido nada tem de santo. Todavia, postado diante da velha nobreza castel­hana, turbu­lenta e indócil por tradição, ele é um político próprio do tempo, um agente eficaz do seu rei, recorrendo a uma violência feroz, mas usual, neste século XIV manchado de trevas.

Durante perto de três anos, e pelo menos à superfície, Pedro e Albuquerque convivem uni­dos e concordan­tes. O ministro aplica-se na construção de um trono ab­soluto, cuidando, pelo reizinho, dos de dentro e dos de fora. Em 1351 e 1352 as cortes de Valladolid legislam, de forma notável, sobre a organi­zação social, a segurança e as actividades económicas de Castela. As relações com Por­tugal estreitam-se num encontro, promovido pelo valido em Ciudad Rodrigo, entre Pedro e o seu avô materno, Afonso IV.

Garante-se o sossego com Navarra e Aragão. De Granada não há nada a temer. E, como se viu, as oposições mais preocupantes estão liquidadas ou reduzidas à im­potência. O sangue que espirrou em Talavera de la Reina, em Burgos e em Aguilar constitui um aviso tremendo e fun­ciona como poderoso dis­suasor de quais­quer impulsos de rebeldia. Até os bas­tardos de Leonor de Guzmán se avizinham, submissos, do trono. Enrique de Trastâmara chegou a refugiar-se em Portugal depois do caso de Talavera, mas Afonso IV interce­deu por ele junto do neto castelhano e, por agora, as coisas sossegam e compõem-se.

O peso e o valimento do fidalgo português afiguram-se, assim, seguros e está­veis. Mas, numa altura incerta deste período inicial - que se estende de 1350 a 1353 -, alguma coisa se modifica no íntimo do rei em relação ao seu ministro. Al­buquerque sente que o terreno que pisa junto do monarca se está a tornar movediço.
Quando é que as coisas se alteraram? E o que foi que se passou? Ignora-se ao certo. Mas o mais provável é que estejamos perante um pro­cesso gra­dual.

Pedro começa porventura a contemplar o ministro com outros olhos quando toma consciência de que a fonte do poder é ele próprio, o rei, e não a sua mãe ou o valido.
Em Burgos, na câmara da morte de Garci-Laso, a rainha viúva optou por sair de cena e ninguém se atreveu a mexer um dedo apesar da impaciência do ministro - ficaram todos à espera das palavras do reizinho, as únicas que conside­ravam, de facto, decisivas. Este processo, repetido em diferentes ocasiões, contribui para incutir em Pedro a confiança e a sobranceria que, a prin­cípio, ninguém lhe descobre. De humilhado e esquecido ele ascende a todo-pode­roso e temido, um ser tocado por Deus, diante de quem qual­quer pessoa, pequena ou importante, dobra o joelho e a vontade. Pedro pode ter levado algum tempo a compenetrar-se disto, mas tal acaba, natural­mente, por acontecer.

Maria de Padilla

O que precipita o agravamento das relações do monarca com o seu ministro é a influência de uma mulher. Significativamente, não se trata daquela que o valido consegue arranjar a Pedro na corte francesa, durante o período das cortes de Valladolid. Com efeito, Albuquerque, apoiado por Maria de Portugal e pelo bispo de Palência, ajusta o casamento de Pedro com uma sobrinha do rei de França, filha do duque de Bourbon. Mas essa união com a menina Blanche, que acabará por consumar-se em 1353, não passa de um enlace polí­tico, chave de uma aliança franco-castelhana supostamente vantajosa para o Reino. Por tal motivo, não se espera que Pedro diga que sim ou que não: ele acata o com­binado com alguma indiferença, como compete a qualquer cabeça coroada di­ante de um negócio favorável ao trono.


É à margem destas manobras diplomáticas que o rei depara, nos seus iti­nerários, com uma jovem, miudinha de corpo mas cheia de encanto, que se lhe apodera do coração. Sucede o caso nos finais da Primavera de 1352, quando Pedro, interrompendo por uns tempos o cerco a Coronel, acorre às Astúrias para fazer face ao desassossego do bastardo Enrique. De passagem por Saha­gún, ele demora o olhar em Maria Díaz de Padilla, uma menina criada na companhia de Isabel de Menezes, esposa de Albuquerque.


Opinar-se-á mais tarde que o encontro terá resultado de um expediente do valido, desejoso de colocar gente de confiança na intimidade do rei. Não há provas disto, sendo talvez mais provável que Albuquerque esteja a facilitar, com uma donzela conhecida, a iniciação amorosa de um reizinho pouco vivido. É de qualquer modo um tio de Maria - Juan Fernández de Hinestrosa - quem a traz à presença de Pedro. A partir deste momento, que para os dois jovens parece ter sido de mágico e definitivo fascínio, nada tornará ao que era dantes. Maria de Padilla já não deixa o monarca: com ele viaja pelas Astúrias e pelas fronteiras de Aragão, e com ele desce à Andaluzia, onde Pedro vem rematar o assunto de Coronel. Por ocasião da morte deste, Maria de Padilla acha-se em Córdova, quase no termo de uma gravidez que, dentro de poucos dias, oferecerá ao rei, neste ano de 1353, a sua primeira filha, Beatriz.

Pouco depois do parto, Maria de Padilla transfere-se com Pedro para Torrijos, poucas léguas a noroeste de Toledo. O clima é de risos e de festa, e, nesta espécie de irrealidade, ninguém parece lembrar-se de que existe um compromisso sério com a França e com a menina Blanche de Bourbon. Nos finais de Fevereiro cai em Torrijos a notícia de que a noiva gaulesa chegou com o seu séquito a Valladolid. Acompanhada da nata da nobreza castelhana, ela espera que o monarca se digne vir ao seu encontro. Pedro, consternado, não se mexe. A demora é tanta que Albuquerque resolve dirigir-se a Torrijos para o convidar a cumprir os seus deveres.

Neste momento é já visível a mudança de atitude do soberano para com o ministro - uma distância ostensiva, uns laivos de enfado, talvez alguma desconfiança.
Maria de Padilla, amada e omnipresente, acabou por se impor no espírito de Pedro, e, em torno deste, enquista-se uma nova corte de favoritos, nem mais nem menos do que os familiares e os amigos de Maria. Aqui temos os seus irmãos - Diego Garcia de Padilla e Juan Garcia de Villagera. Ali, o tio Hinestrosa. Acolá, os amigos dos manos - Juan Tenório e Suer Pérez de Quiñones. E muitos outros se irão insinuando no espaço que outrora pertenceu a João Afonso de Albuquerque e à rainha-mãe.

O valido insiste com o rei: é urgente partir para Valladolid, onde se celebrará o casamento com Blanche. Pedro vai recalcitrando, reflecte em cada palavra e em cada gesto o efeito dos gestos e das palavras que recebeu de Maria de Padilla e dos conselheiros mais recentes. O problema de Albuquerque torna-se insolúvel, pois nenhuma mulher apaixonada suporta ver no homem amado, seja qual for a razão, influência maior do que a sua. Maria de Padilla, e os seus amigos, consideram que o valido é um obstáculo a suprimir para que o futuro possa pertencer-lhes.

Pedro está, sem dúvida, enamorado - e comporta-se como tal. Mas qual é a escolha que se lhe oferece?
Ou vai por Maria de Padilla ou vai por Albuquerque, não existem mais alternativas. Num lado tem ele o afecto e os mimos de uma doce jovenzinha, servidos num clima de alegre distensão. No outro aborrecem-no as frias razões de Estado, a incomodidade dos objectivos, a secura de sentimentos.

Junto da pequena e bonita Maria, Pedro acredita que os horizontes do poder têm os limites da sua vontade. À sombra do valido, austero e determinado, o espaço de manobra contém-se em fronteiras apertadas, as opções não abundam, o caminho tem sentido único. Portanto, assim que Maria sussurra e sugere alguma coisa, o rei deixa-se embalar pela sabedoria eterna e anestesiante da sedução feminina - e obedece mesmo quando pensa que manda. Com Albuquerque principiam as discordâncias e faísca o choque de vontades, naturais no processo de educação de um monarca absoluto.
A escolha de Pedro está feita, e, para ele, Albuquerque já acabou - embora o ministro não o saiba ainda." (...) (*)

(*) José Bento Duarte - Peregrinos da Eternidade - Crónicas Ibéricas Medievais - Editorial Estampa - Lisboa - 2003
(CONTINUA)

domingo, 1 de junho de 2008

(Carlos Drummond de Andrade) (Brasil) - A Casa do Tempo Perdido


Bati no portão do tempo perdido,
ninguém atendeu.
Bati segunda vez e outra mais
e mais outra.
Resposta nenhuma.
A casa do tempo perdido está coberta de hera
pela metade;
a outra metade são cinzas.

Casa onde não mora ninguém,
e eu batendo e chamando
pela dor de chamar e não ser escutado.
Simplesmente bater.
O eco devolve minha ânsia de entreabrir
esses paços gelados.
A noite e o dia se confundem no esperar,
no bater e bater.

O tempo perdido certamente não existe.
É o casarão vazio e condenado.

(Carlos Drummond de Andrade) (Brasil) (1901-1987)