domingo, 28 de junho de 2020

Uma Caçada no Deserto (Moçâmedes, Sul de Angola) - 2.ª Parte




(Continuação da postagem de ontem)


Nos Areais de Moçâmedes (II)


"O caçador olhou o céu. E lá longe, no horizonte, uns pontos negros voavam em filas: eram os abutres que se apressavam, atraídos pelo cheiro do sangue!

O tipo deste caçador e de seu irmão, que conduz o outro carro, é deveras singular. Negros, requeimados de sol, são assim como ciganos endurecidos pelo clima e pelas privações a que se sujeitam nas aventuras de caça, tendo conseguido não só uma adaptação do corpo, mas também do espírito, à vida agitada e arriscada a que permanentemente se sujeitam.

O deserto é o seu campo favorito. A espingarda e o carro são os seus recursos preciosos, de onde tiram a carne - com que gostosamente se banqueteiam - e os lucros dos transportes de passageiros, pois que em Moçâmedes as caçadas nos areais constituem uma curiosidade notável, que atrai todos os forasteiros, pelas condições anormais em que são realizadas.

De facto, numa região onde o pasto não passa de uma ervazita rasteira, espécie de malva carnuda, como se aguenta uma vida tão persistente, de animais possantes e velozes?




Agora o terreno agita-se um pouco. Pequenas ondulações sucedem-se. E à nossa frente, lá ao longe, elevam-se os degraus da Serra da Chela, negros e verticais, singularmente recortados no céu esbranquiçado.
Entre eles destaca-se o Morro Maluco (Cha-Malundo), cuja conformação é realmente caprichosa, recurvado como uma garra.

O sol já clareia tudo. À medida que se vai elevando, vai dando às coisas os tons que o fogo transmite aos tijolos de um forno.

A Natureza encontra-se neste instante ao rubro.
Como não há árvores nem acidentes em toda a extensão, a falta de sombras elimina a sensação de relevo e a noção das distâncias perde-se na profundidade incalculável da planura. E assim, quando surge qualquer vulto animal, são precisos olhos experimentados para o distinguir, no fundo cinzento do chão.




Agora mesmo, de um dos carros, veio o sinal de caça. Convergiram todos para a direcção por ele apontada, mas só ao cabo de uns segundos se conseguiu distinguir claramente o corpo de uma zebra tosando as ervas raras.

O animal surpreendido entra a trotar e, quando os carros se aproximam, o seu corpo listrado, de cabeça erguida e cauda tesa, inicia uma galopada elegante que nos entusiasma. Galopa velozmente, levando-nos de vencida, até galgar uma elevação, para o outro lado da qual se esconde repentinamente.

Um brado soa: Cautela, cautela!
Tínhamos atingido as margens abruptas do rio Bero e os carros dificilmente foram travados na vertigem em que iam lançados.
Lá no fundo, quando atingimos a beira da rampa, a zebra trotava ainda, assustada, estacando curiosa a olhar-nos de face.

Afastada a zebra para longe, ficava em frente de nós a curiosidade de um rio absolutamente seco, cujo leito arenoso se prolongava pela trincheira funda praticada no solo.

São assim todos os rios alimentados pela vertente ocidental da Chela: durante o período das secas, nem uma gota de água lhes humedece o leito arenoso; vindas as chuvas, a água desce da serrania, às catadupas, galgando obstáculos, arrasando tudo na sua frente, como onda formidável.
E, passados dias, horas por vezes, de novo o leito é simplesmente marcado pela areia seca e movediça que foi arrastada pela enxurrada.




Paramos a conversar sobre zebras, para a caça das quais um dos carros trazia um laço armado na extremidade de uma grande vara.

Das três espécies de hippotigris, apenas duas têm representantes nos areais de Moçâmedes, não existindo o cuaga, que é a zebra menos listrada.

Animal insubmisso, todas as tentativas de domesticação têm obtido resultados pouco animadores, pois nunca no animal se conseguem anular as qualidades de braveza inata. Os próprios produtos nascidos de pais cativos mantêm a selvajaria insubmissa, e os cruzamentos com a espécie cavalar e asinina não vêm adoçadas, o que evita a sua utilização no serviço do homem.

Assim, esses milhares e milhares de zebras que povoam a África, desde muito acima do Equador até ao Cabo, transformam-se em flagelo das culturas, consideradas em toda a parte como animais daninhos.

Apenas o leão as ataca com vantagem: dos outros animais defendem-se aos couces e mesmo à dentada.
Desta forma a sua reprodução vai-se operando livremente e dia a dia crescem as manadas que galopam nas planícies africanas.




Nos momentos em que o carro pára, sente-se a fornalha do calor.
Pela extensão larga do areal, a atmosfera, ao contacto com a terra, tem vibrações ferventes e trémulas. A cor que ilumina as coisas é de um tom alaranjado incaracterístico.

As cabras agora aparecem espalhadas, pastando. O tiroteio repete-se. Tombamos duas...

Olhamo-nos uns aos outros com o sentimento da nossa brutalidade e selvajaria.
É que naquele nosso divertimento havia muito de ferocidade, que nem ao menos tinha a justificá-la a necessidade do aproveitamento da carne!

Era simplesmente o instinto primitivo de deter movimento, de destruir vida (...).





São as horas combinadas de nos juntarmos no Pico do Azevedo, para almoçar.
De caminho matamos mais cabras, quase sempre machos. 

O caçador explica a razão desse facto: as atalaias dos bandos são sempre machos, e também é muito vulgar encontrar bandos enormes deles, repelidos dos rebanhos pelos seus rivais mais fortes e mais felizes.

Uma ou outra zebra desgarrada afasta-se de nós, a trote. Seguimos para o ponto de concentração.
Sobre nós voam abutres, em grandes círculos, na esperança da caça abandonada.

E logo o caçador ilustra este facto com uma narrativa impressionante.




Uma vez, um rapaz de Moçâmedes, andando à caça, perdera-se nos areais.
Coisa fácil para quem não conheça bem o deserto.

Andou, andou... O calor e a sede foram-no esgotando.
Na ansiedade de se salvar, já não andava: corria desorientado! Gritava meio enlouquecido: e cada vez o cansaço o tomava mais.

Parecia que o deserto em volta, ardente e infinito, se preparava para o devorar.
O calor requeimava.
De repente sentiu o ar agitar-se frescamente em volta da sua cabeça.
Horror!
Eram os abutres, já ali, prontos para o devorar... Foge, tomba, grita, torna a tombar, esconde a face aterrada na areia escaldante, corre de novo, de braços erguidos, louco, perdido...

Quando o carro o encontrou, desmaiado no meio do areal, já os abutres em volta, avançando em saltos receosos, se aproximavam para iniciar o banquete.




Apesar de não correr uma única aragem, lá para longe levantam-se vagas ondas de poeira.
Um amigo explica que, sob aquele pó, deve galopar um esquadrão de zebras que nós não distinguimos.

Abrem-se os farnéis.
Não faltam os clássicos e nacionalíssimos bolos de bacalhau, afirmando que até no deserto fazemos reinar os nossos sagrados hábitos, as ternas recordações da casa e da família.

Formamos efectivamente um grupo curioso e heterogéneo, mas igualmente infiltrado da maneira de ser da nossa terra.

Somos de todas as categorias, desde os caçadores enegrecidos pelo deserto, como se fossem berberes, aos diletantes que vieram atraídos pelo sonho da acção.

E, apesar de tudo, aquele grupo, aconchegado ao rochedo nu, pensa, sente com a mentalidade de Portugal e ri as boas gargalhadas salutares da nossa gente.




(...) Vamos de novo para a caça.
Junto do Pico do Azevedo já fica um montão de carne morta, que recolheremos no regresso.
Não falta a lebre ligeira e abunda uma variedade de codornizes patorras, duma mansidão impressionante, confiando imbecilmente na fera bípede que está junto delas.
O caçador esperou que os animaizinhos tomassem uma disposição conveniente e tombou quatro de um tiro.

Depois, na lomba de um outeiro, projectando-se no céu em vulto engrandecido, começaram passando grupos de zebras a galope.

À ilharga dos animais adultos marchavam poldros pequenos, alguns certamente com poucos dias ainda. Não são elegantes: lembram os desenhos que o homem primitivo gravava nos chifres das renas, com aquele mesmo lançamento no galope, as mesmas cabeças exageradamente grandes em relação ao corpo e a mesma disposição em fila.

Um grupo estacou de frente, a contemplar-nos. Depois passaram mais grupos, uns após outros, seguindo os movimentos das avançadas.

O escrúpulo do sangue deteve-nos, deixando passar em paz a récua enorme, que desfilava na nossa frente.
E quando caminhávamos à cata de novas sensações, um espectáculo inesperado surgiu em frente dos nossos olhos.


Depois de tanta aridez, uma larga superfície de água estendia-se à nossa frente, clara, transparente, reflectindo nitidamente os acidentes do relevo.
A superfície lisa reproduzia as imagens do horizonte com a precisão admirável de um espelho.

Os caçadores riam perante a nossa ilusão: o que estava em frente era um fenómeno de miragem, repetindo invertidas as imagens do horizonte, por efeito da refracção dos raios luminosos através das camadas aéreas desigualmente aquecidas e, portanto, desigualmente densas.

Assim a Natureza, diabolicamente, cria no deserto a miragem ilusória da água, de molde a enlouquecer o pobre viandante perdido de sede e de cansaço.

Era a água tal e qual, ali a dois passos, estendida num lençol de tentadora limpidez.




(...) Mas este dia de surpresas não acabara ainda.
As cabras surgiam de todos os lados, às centenas, numa abundância e numa impassibilidade inacreditáveis!

Na nossa frente desloca-se, na profundidade e na largura do areal, um número tal de animais, que em nós abrandou a vontade de caçar, encantados com o espectáculo de tanta vida saltando, galopando, vivendo ao nosso alcance!

O que está diante dos nossos olhos é de tal forma maravilhoso que só pode ser acreditado por aqueles que já o gozaram.
Eu, pela minha parte, só conhecia coisa parecida criada pela imaginação de Flaubert na Lenda de S. João Hospitaleiro e recusar-me-ia a crer que a Natureza o pudesse reproduzir e demais em condições tão extraordinárias.

É um sonho: em frente de nós, aos lados, para a rectaguarda, galopam milhares de cabras!
(...) Já ninguém queria matar, banalizado o prazer da caça pela profusão das reses e pela facilidade de as alcançar.
Todos sentíamos um começo de fadiga, não corporal, mas um vago aborrecimento e remorso de tanta morte inútil, de tanta dor causada em vão. Para quê mais mortes, para quê mais dor? (...)




O crepúsculo começa a cair e é necessário estar em Moçâmedes a horas convenientes.
Acesas as lanternas, a paisagem toma de novo aspectos de uma irrealidade macabra (...)

Francamente: éramos dignos de um castigo severo, bárbaros que andavam um dia inteiro a matar, para largarem as vítimas no meio dos areais, às portas de uma cidade civilizada, para pasto da sórdida quimalanca, que durante a noite viria rasteiramente, covardemente, banquetear-se com a carne fria que o homem destruíra e depois abandonara!"


(Fonte: Gastão de Sousa Dias - "África Portentosa" - Seara Nova - 1928 - Lisboa)
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Ruy Mingas
("Minha Terra")

sábado, 27 de junho de 2020

Uma Caçada no Deserto (Moçâmedes, Sul de Angola) - 1.ª Parte


Gastão de Sousa Dias redigiu em 1928 o relato de uma surtida de caça ao deserto de Moçâmedes (parte do grande deserto do Namibe, que se prolonga pela Namíbia).

Ali se deixa o retrato inspirado da realidade - às vezes cruel, mas de uma beleza arrebatadora - de um lugar agreste e mítico do Sul de Angola.

Apesar dos dramas de vida e morte que quase sempre acompanham as partidas de caça, aqui fica a amostra do talento e da sensibilidade de um homem que, nascido em Portugal, se apaixonou irremediavelmente pela magia de Angola, à qual acabou por oferecer, como tantos outros - antes e depois dele -, a própria vida.


NOS AREAIS DE MOÇÂMEDES (I)



"Às quatro horas da manhã ainda a cidade está mergulhada no sono profundo. A sensação de que os passos ressoam mais alto do que é natural, e que de todos os lados o eco os reproduz, causa em nós um efeito estranho.

Apenas a água do mar, a dois passos, vindo em onda suave desfazer-se na areia da praia, quebra ritmicamente o silêncio da noite.
Para esse lado a negrura é espessa como tinta, prolongando-se as trevas indefinidamente pela superfície da água; mas a pequena distância, logo ali junto do Posto Meteorológico, as casas desenham-se claramente sob o brilho dos milhões de astros que coalham o céu.

Que poeirada infinita de mundos, espalhada no firmamento! Lá está o Cruzeiro junto da mancha escura do Saco do Carvão...


A cidade de Moçâmedes, engastada entre o mar e o deserto.


Moçâmedes é uma cidadezinha gentil, muito semelhante a Espinho no alinhamento geométrico das suas casas, cortada por arruamentos perpendiculares. Entre o mar e as primeiras frontarias corre um jardim de grandes palmeiras e trepadeiras frondosas.

A esta hora, enquanto os habitantes repousam, não sei que doçura especial há em espiar os silêncios da vida adormecida e os rugidos murmurosos do mar. Um galo cantou e, daí a minutos, essa voz, como que reflectida em todos os quintais, foi repetida por dezenas de gargantas. Ia romper a manhã.

Antes porém que o sol se corasse para os lados do deserto, já nós certamente iríamos a caminho dos areais. Na verdade, o motor de um carro ressoou e, dentro em pouco, avançando na escuridão, os seus faróis resplandecentes caminharam para nós. Andava recebendo os caçadores. Logo outro carro surgiu, depois outro, ao todo três automóveis e uma camionette para transporte da caça.




Marchamos na noite, sobre a estrada de Porto Aexandre. A terra despida, entrevista na escuridão, parece formada de cinzas esparsas, escórias de fornalha, onde nem as varas retorcidas dum arbusto crescem para o ar.
Apenas, na faixa luminosa dos faróis, se distingue uma vegetação rasteira e torturada, a agarrar-se desesperadamente ao chão, como se cada planta necessitasse de raízes, ao longo de todo o seu corpo, para poder arrancar do solo a humidade precária que nele porventura ainda existe.

(...) Os carros avançam em fila. Só se distinguem as luzes dos faróis, que se deslocam em silêncio. Dir-se-ia que vamos para alguma empresa inconfessável, para alguma criminosa conjura. Esta sensação nasce da irrealidade da terra, da qual os olhos, já mais habituados à escuridão, adivinham a dura hostilidade.

É uma paisagem trágica, por sobre a qual parece pousar um silêncio asfixiado de boca que quisesse gritar e se sentisse coagida por força misteriosa a abafar em rouquido a impulsão dos seus brados aflitos. Vamos calados. A estrada corta uma duna de areia em que a luz dos faróis lança reflexos espectrais e gera sombras movediças, de uma inverosimilhança de sonho. (...)

Agora os carros, um a um, abandonaram a estrada e marcham alinhados em plena campina. É necessário que esta seja rasa como um salão, para que os carros, em velocidade regular, se aventurem afoitamente a percorrê-la.

As luzes parecem deslizar imponderavelmente, navegando suspensas na mancha escura do deserto. Somos ao todo uns vinte caçadores e nem uma palavra se aventura, todos dominados pela impressão estranha da ausência de vida, da escuridão, da planura rasa e negra sobre que voamos.

Nem o vulto duma planta, nem o vulto duma pedra! Marchamos por sobre uma superfície absolutamente plana, onde há a certeza de não encontrar senão areia compacta e firme, numa extensão de que não saberíamos dizer a profundidade.

A vida deve ter morrido neste areal desolado e, não obstante irmos todos levados pelo desígnio de caçar, no nosso espírito forma-se a incredulidade de que seja possível encontrar um único ser da criação.




Devoramos quilómetros. Lentamente, timidamente, as primeiras claridades surgiram. Mas, por enquanto, era um alvor pálido, que mal iluminava as coisas, deixando apenas diferençar os vultos dos carros galgando a planura. Na nossa frente há claridades alaranjadas, linhas luminosas que se estiram ao longo do horizonte.

(...) Súbito, distinguimos na meia penumbra um vulto de animal, que negreja no fundo pardo da areia. Um carro desvia-se da marcha, outro segue-o. O animal, de que se divisa a cauda plumosa, percebendo que sobre ele caminham, começa a fugir. Mas não tem um arbusto sob que se esconder, um buraco para se ocultar. A única defesa por que a pobre raposa pode optar é a velocidade das suas pernas.

Restabelecida a linha de carros, o animal, olhando à esquerda e à direita, galga quanto pode, obrigado a caminhar em frente pela extensão da linha que o ataca. Estão em luta a rijeza das suas canelas e a velocidade das máquinas de que o homem dispõe. É fácil prever quem vencerá.

Mas a raposa galopa numa correria doida. A sucessão das imagens dos seus membros é já vertiginosa. As pernas, no lançamento da fuga, parecem ultrapassar a cabeça. Deve ir quase extenuada. De quando em quando volta para trás a cabeça, raivosamente, como se quisesse morder os quatro monstros que ela decerto desconhece e que vão seguramente esmagá-la! Corre já sem esperança, enquanto o movimento envolvente das máquinas se desenha.




(...) Os carros estão ao alcance e de um deles parte o estalido seco de um tiro. A raposa embrulha-se na carreira, tenta arrastar os membros partidos, tomba, revolve-se de raiva, enquanto os monstros chegam implacáveis e ameaçadores (...)

Em marcha, em marcha! Os caçadores profissionais estão impacientes, que o dia clareia e para longe a caça é alentada e grossa... Não vale a pena perder nem tempo nem pólvora com raposas gaiteiras! Estão á nossa espera a bela cabra de leque, o galengue altaneiro, a zebra galopante. Vamos a andar, vamos a andar!

Nos poucos minutos que nos distraímos, o deserto clareou e a iluminação do nascente avermelhou-se. Vamos ter um dia de fornalha, sem um abrigo, sem uma árvore para nos dar sombra (...)

O sol começa a romper. É um globo enorme e reluzente que, segundo a segundo, avulta mais na linha do horizonte. À medida que ele surge, o céu vai-se tornando cor de chumbo e a terra aparece em toda a singularidade da sua planura, rasa, espalmada, unicamente vivificada por ervas miseráveis, dolorosamente adaptadas àquele meio de fogo, onde a água não tomba nunca.

Em tempos remotos o mar devia ter coberto toda esta terra, que lentamente se foi levantando na sua aridez, tão grande que, passados séculos, a vida vegetal nela não vingou ainda.




(..) De um dos automóveis fazem sinal. Os carros entram em linha, seguindo a marcha do primeiro. Os olhos apuram-se.
Efectivamente, à nossa frente, há vultos esbranquiçados que caminham. Mas, ao iniciarem a marcha, dão grandes saltos verticais, parecem mover-se em pulos sucessivos, para a seguir começarem a trotar de cabeça baixa, a rasar a terra!

Que extraordinários seres, neste extraordinário panorama, de cuja realidade os nossos olhos ainda vão prontos a duvidar! Estaremos sobre a crosta da Terra, sonhando, ou andamos a caçar no planeta Marte?

Afinal, o que corre à nossa frente é um pequeno grupo de springbocks, a célebre cabra saltadora de Buffon, de que, pela desusada luz que nos alumia, apenas divisamos a parte do corpo cor de canela.



Uma das cabras vai-se deixando ficar para trás. Um carro estaca. O chauffeur, velho atirador do deserto, está já de joelho em terra. Um tiro parte e o vulto da cabra tomba vagarosamente sobre o flanco, agitando as pernas no ar. 

Aproximamo-nos avidamente.
Estamos em frente de um animal esbelto, o springbock dos caçadores do Cabo, cuja cabeça é armada de pequenos chifres anelados, em forma de lira, o ventre branco, as pernas altíssimas...
A sua pelagem curta e macia cresce na parte posterior do dorso, numa prega aberta, disposição que dá ao animal o curioso nome de cabra de leque.

O caçador, examinando o animal, declara que não vale a pena levá-lo. Efectivamente, numa das pernas, de onde escorre um sangue purulento, a cabra tem um ferimento antigo. "Está cheia de febre, não presta para comer..."

Em breve, atraídos pelo cheiro do sangue derramado, os abutres viriam das profundidades do deserto e, seguindo a direcção do seu voo, as raposas também, para caírem sobre o corpo ainda quente do pobre ruminante!

Neste deserto enorme a luta das espécies é formidável, e sobre as pobres cabras, mais tímidas e indefesas, os felinos e as grandes aves de presa, servidos por um faro maravilhoso, tombam implacavelmente.

Há a acrescentar uma outra fera, a única que mata por prazer, só para interromper no seu movimento os seres que a Natureza animou de uma vida de formidável resistência (...)"



(Conclui amanhã)


quinta-feira, 25 de junho de 2020

Rafael Bordalo Pinheiro - Crítico Implacável da Política e da Sociedade em Portugal (1846-1905)

 

Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) revelou-se um espírito brilhante, ímpar de criatividade, que aplicou a uma contínua intervenção crítica à vida portuguesa.

Permanecem de surpreendente actualidade os seus comentários à política, à economia e à sociedade da época nas revistas de caricatura e humor que editou, atitude que não raro reflectiu na cerâmica - que a partir de 1884 logrou revitalizar nas Caldas da Rainha.



Rafael Augusto Prostes Bordalo Pinheiro nasceu na Rua da Fé, em Lisboa, em 21 de Março de 1846, terceiro filho duma extensa prole de doze irmãos, a que pertenceria o célebre retratista Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929).
Foram seus pais o pintor romântico Manuel Maria Bordalo Pinheiro e D. Maria Augusta Carvalho Prostes.

Será com a caricatura artística que o génio de Rafael Bordalo Pinheiro deixará uma marca indelével e inconfundível no século XIX português.

O seu lápis traduz, no quotidiano, a perspicaz e oportuna observação da política do País, criando símbolos das realidades nacionais, dos quais o Zé Povinho se ergue como a imagem dum povo explorado e sofredor, mas conformado com a sorte que lhe cabe.




Em 1870, o sucesso obtido por uma caricatura alusiva à peça em cena - intitulada O Dente da Baronesa - revelara um talento e iria despoletar uma paixão.

Esse ano vê surgir sucessivamente o espirituoso álbum de caricaturas O Calcanhar d’Aquiles, a folha humorística A Berlinda, da qual saem sete números, e O Binóculo, periódico semanal à venda apenas nos teatros, com quatro números publicados.

Deu ainda à estampa o Mapa de Portugal, cujo êxito foi assinalado por vendas superiores a 4000 exemplares, no espaço de um mês.

Data de 1875 a iniciativa da criação do primeiro jornal dedicado à crítica social: A Lanterna Mágica, um projecto que faz a crónica dos factos sociais enquanto tece a crítica às políticas e às instituições.


Neste contexto, nasce a figura do Zé Povinho, tão acertada no seu conteúdo que permanece no imaginário português com uma reforçada carga simbólica.



Surgindo nessa época uma proposta de colaboração em O Mosquito, jornal brasileiro de humor, parte no Verão de 1875 para o Rio de Janeiro, onde viverá quatro anos.

A sua permanência no Brasil fica ainda assinalada pela criação de duas revistas de caricaturas: o Psit!!! (1877) e O Besouro (1878-79).

É a oportunidade para nascerem do seu lápis novas personagens-tipo da sociedade carioca, tais como o Psit!, o Arola ou o Fagundes.

Em Lisboa, publicava-se o Álbum de Caricaturas: Frases e Anexins da Língua Portuguesa (1876), ilustrado com desenhos de Bordalo.



 

Logo após o seu regresso à Pátria, em meados de 1879, dá início à publicação de O António Maria, cujo título alude a António Maria Fontes Pereira de Melo, figura política dominante que presidira ao Ministério.

Até Janeiro de 1885, conjuga-se nas páginas desta revista um combate de ideias que visa os partidos no exercício do poder e as debilitadas instituições da monarquia.

Em simultâneo, vão saindo as folhas do Álbum das Glórias, 42 caricaturas de personalidades e instituições portuguesas, comentadas por literatos contemporâneos.




É por esta época que Rafael Bordalo Pinheiro integra o Grupo do Leão (1881-89), importante formação livre apoiada por Alberto de Oliveira (1861-1922), que reúne artistas, escritores, intelectuais.

De 1885 a 1891 publica os Pontos nos ii, revista com idêntica intenção de defesa das causas portuguesas e de denúncia clara das manobras políticas, em que assumem particular relevo a Questão com a Inglaterra, o Monopólio dos Tabacos, o Ultimatum e a Revolta do Porto de 31 de Janeiro.

Em 1900 surge A Paródia, revista que atesta o desencanto de Rafael Bordalo face à vida política do País.
É nas capas dos primeiros números desta revista que caricatura os variados aspectos da realidade sócio-económica, de forma tão certeira que a sua aplicação continua a ser lembrada com acuidade, como em: A Política: a Grande Porca; A Finança: o Grande Cão; A Economia: a Galinha Choca; ou A Retórica Parlamentar: o Grande Papagaio.

Ele é ainda o pioneiro, nas suas revistas, da banda desenhada portuguesa.


 
A criação da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha - sob a direcção artística de Bordalo- e a sua instalação na vila, em 1884, contribui decisivamente para a revitalização da ancestral cerâmica local, quer pela revolução das formas, quer pela gramática decorativa de raiz francamente naturalista e tantas vezes duma exuberância a desafiar a realidade.

É a oportunidade de passar à argila a caricatura e o humor, criando os bonecos de movimento, como: o Zé Povinho; a Velha Maria; a Ama das Caldas; o Cura; o Sacristão; o Polícia.


 
Aos 58 anos, quando a sua produção artística ainda teria muito a revelar, Rafael Bordalo Pinheiro morre em Lisboa, no dia 23 de Janeiro de 1905.

Espírito criador, grande talento de artista, renovador da cerâmica das Caldas, o caricaturista “pai” do Zé Povinho deixa uma obra que se identifica com o próprio País e o seu povo, não só pelo génio do Artista, mas também pela intervenção do Homem.


(Adaptado de Matilde Tomaz do Couto, in Centro Virtual Camões)