domingo, 28 de junho de 2020

Uma Caçada no Deserto (Moçâmedes, Sul de Angola) - 2.ª Parte




(Continuação da postagem de ontem)


Nos Areais de Moçâmedes (II)


"O caçador olhou o céu. E lá longe, no horizonte, uns pontos negros voavam em filas: eram os abutres que se apressavam, atraídos pelo cheiro do sangue!

O tipo deste caçador e de seu irmão, que conduz o outro carro, é deveras singular. Negros, requeimados de sol, são assim como ciganos endurecidos pelo clima e pelas privações a que se sujeitam nas aventuras de caça, tendo conseguido não só uma adaptação do corpo, mas também do espírito, à vida agitada e arriscada a que permanentemente se sujeitam.

O deserto é o seu campo favorito. A espingarda e o carro são os seus recursos preciosos, de onde tiram a carne - com que gostosamente se banqueteiam - e os lucros dos transportes de passageiros, pois que em Moçâmedes as caçadas nos areais constituem uma curiosidade notável, que atrai todos os forasteiros, pelas condições anormais em que são realizadas.

De facto, numa região onde o pasto não passa de uma ervazita rasteira, espécie de malva carnuda, como se aguenta uma vida tão persistente, de animais possantes e velozes?




Agora o terreno agita-se um pouco. Pequenas ondulações sucedem-se. E à nossa frente, lá ao longe, elevam-se os degraus da Serra da Chela, negros e verticais, singularmente recortados no céu esbranquiçado.
Entre eles destaca-se o Morro Maluco (Cha-Malundo), cuja conformação é realmente caprichosa, recurvado como uma garra.

O sol já clareia tudo. À medida que se vai elevando, vai dando às coisas os tons que o fogo transmite aos tijolos de um forno.

A Natureza encontra-se neste instante ao rubro.
Como não há árvores nem acidentes em toda a extensão, a falta de sombras elimina a sensação de relevo e a noção das distâncias perde-se na profundidade incalculável da planura. E assim, quando surge qualquer vulto animal, são precisos olhos experimentados para o distinguir, no fundo cinzento do chão.




Agora mesmo, de um dos carros, veio o sinal de caça. Convergiram todos para a direcção por ele apontada, mas só ao cabo de uns segundos se conseguiu distinguir claramente o corpo de uma zebra tosando as ervas raras.

O animal surpreendido entra a trotar e, quando os carros se aproximam, o seu corpo listrado, de cabeça erguida e cauda tesa, inicia uma galopada elegante que nos entusiasma. Galopa velozmente, levando-nos de vencida, até galgar uma elevação, para o outro lado da qual se esconde repentinamente.

Um brado soa: Cautela, cautela!
Tínhamos atingido as margens abruptas do rio Bero e os carros dificilmente foram travados na vertigem em que iam lançados.
Lá no fundo, quando atingimos a beira da rampa, a zebra trotava ainda, assustada, estacando curiosa a olhar-nos de face.

Afastada a zebra para longe, ficava em frente de nós a curiosidade de um rio absolutamente seco, cujo leito arenoso se prolongava pela trincheira funda praticada no solo.

São assim todos os rios alimentados pela vertente ocidental da Chela: durante o período das secas, nem uma gota de água lhes humedece o leito arenoso; vindas as chuvas, a água desce da serrania, às catadupas, galgando obstáculos, arrasando tudo na sua frente, como onda formidável.
E, passados dias, horas por vezes, de novo o leito é simplesmente marcado pela areia seca e movediça que foi arrastada pela enxurrada.




Paramos a conversar sobre zebras, para a caça das quais um dos carros trazia um laço armado na extremidade de uma grande vara.

Das três espécies de hippotigris, apenas duas têm representantes nos areais de Moçâmedes, não existindo o cuaga, que é a zebra menos listrada.

Animal insubmisso, todas as tentativas de domesticação têm obtido resultados pouco animadores, pois nunca no animal se conseguem anular as qualidades de braveza inata. Os próprios produtos nascidos de pais cativos mantêm a selvajaria insubmissa, e os cruzamentos com a espécie cavalar e asinina não vêm adoçadas, o que evita a sua utilização no serviço do homem.

Assim, esses milhares e milhares de zebras que povoam a África, desde muito acima do Equador até ao Cabo, transformam-se em flagelo das culturas, consideradas em toda a parte como animais daninhos.

Apenas o leão as ataca com vantagem: dos outros animais defendem-se aos couces e mesmo à dentada.
Desta forma a sua reprodução vai-se operando livremente e dia a dia crescem as manadas que galopam nas planícies africanas.




Nos momentos em que o carro pára, sente-se a fornalha do calor.
Pela extensão larga do areal, a atmosfera, ao contacto com a terra, tem vibrações ferventes e trémulas. A cor que ilumina as coisas é de um tom alaranjado incaracterístico.

As cabras agora aparecem espalhadas, pastando. O tiroteio repete-se. Tombamos duas...

Olhamo-nos uns aos outros com o sentimento da nossa brutalidade e selvajaria.
É que naquele nosso divertimento havia muito de ferocidade, que nem ao menos tinha a justificá-la a necessidade do aproveitamento da carne!

Era simplesmente o instinto primitivo de deter movimento, de destruir vida (...).





São as horas combinadas de nos juntarmos no Pico do Azevedo, para almoçar.
De caminho matamos mais cabras, quase sempre machos. 

O caçador explica a razão desse facto: as atalaias dos bandos são sempre machos, e também é muito vulgar encontrar bandos enormes deles, repelidos dos rebanhos pelos seus rivais mais fortes e mais felizes.

Uma ou outra zebra desgarrada afasta-se de nós, a trote. Seguimos para o ponto de concentração.
Sobre nós voam abutres, em grandes círculos, na esperança da caça abandonada.

E logo o caçador ilustra este facto com uma narrativa impressionante.




Uma vez, um rapaz de Moçâmedes, andando à caça, perdera-se nos areais.
Coisa fácil para quem não conheça bem o deserto.

Andou, andou... O calor e a sede foram-no esgotando.
Na ansiedade de se salvar, já não andava: corria desorientado! Gritava meio enlouquecido: e cada vez o cansaço o tomava mais.

Parecia que o deserto em volta, ardente e infinito, se preparava para o devorar.
O calor requeimava.
De repente sentiu o ar agitar-se frescamente em volta da sua cabeça.
Horror!
Eram os abutres, já ali, prontos para o devorar... Foge, tomba, grita, torna a tombar, esconde a face aterrada na areia escaldante, corre de novo, de braços erguidos, louco, perdido...

Quando o carro o encontrou, desmaiado no meio do areal, já os abutres em volta, avançando em saltos receosos, se aproximavam para iniciar o banquete.




Apesar de não correr uma única aragem, lá para longe levantam-se vagas ondas de poeira.
Um amigo explica que, sob aquele pó, deve galopar um esquadrão de zebras que nós não distinguimos.

Abrem-se os farnéis.
Não faltam os clássicos e nacionalíssimos bolos de bacalhau, afirmando que até no deserto fazemos reinar os nossos sagrados hábitos, as ternas recordações da casa e da família.

Formamos efectivamente um grupo curioso e heterogéneo, mas igualmente infiltrado da maneira de ser da nossa terra.

Somos de todas as categorias, desde os caçadores enegrecidos pelo deserto, como se fossem berberes, aos diletantes que vieram atraídos pelo sonho da acção.

E, apesar de tudo, aquele grupo, aconchegado ao rochedo nu, pensa, sente com a mentalidade de Portugal e ri as boas gargalhadas salutares da nossa gente.




(...) Vamos de novo para a caça.
Junto do Pico do Azevedo já fica um montão de carne morta, que recolheremos no regresso.
Não falta a lebre ligeira e abunda uma variedade de codornizes patorras, duma mansidão impressionante, confiando imbecilmente na fera bípede que está junto delas.
O caçador esperou que os animaizinhos tomassem uma disposição conveniente e tombou quatro de um tiro.

Depois, na lomba de um outeiro, projectando-se no céu em vulto engrandecido, começaram passando grupos de zebras a galope.

À ilharga dos animais adultos marchavam poldros pequenos, alguns certamente com poucos dias ainda. Não são elegantes: lembram os desenhos que o homem primitivo gravava nos chifres das renas, com aquele mesmo lançamento no galope, as mesmas cabeças exageradamente grandes em relação ao corpo e a mesma disposição em fila.

Um grupo estacou de frente, a contemplar-nos. Depois passaram mais grupos, uns após outros, seguindo os movimentos das avançadas.

O escrúpulo do sangue deteve-nos, deixando passar em paz a récua enorme, que desfilava na nossa frente.
E quando caminhávamos à cata de novas sensações, um espectáculo inesperado surgiu em frente dos nossos olhos.


Depois de tanta aridez, uma larga superfície de água estendia-se à nossa frente, clara, transparente, reflectindo nitidamente os acidentes do relevo.
A superfície lisa reproduzia as imagens do horizonte com a precisão admirável de um espelho.

Os caçadores riam perante a nossa ilusão: o que estava em frente era um fenómeno de miragem, repetindo invertidas as imagens do horizonte, por efeito da refracção dos raios luminosos através das camadas aéreas desigualmente aquecidas e, portanto, desigualmente densas.

Assim a Natureza, diabolicamente, cria no deserto a miragem ilusória da água, de molde a enlouquecer o pobre viandante perdido de sede e de cansaço.

Era a água tal e qual, ali a dois passos, estendida num lençol de tentadora limpidez.




(...) Mas este dia de surpresas não acabara ainda.
As cabras surgiam de todos os lados, às centenas, numa abundância e numa impassibilidade inacreditáveis!

Na nossa frente desloca-se, na profundidade e na largura do areal, um número tal de animais, que em nós abrandou a vontade de caçar, encantados com o espectáculo de tanta vida saltando, galopando, vivendo ao nosso alcance!

O que está diante dos nossos olhos é de tal forma maravilhoso que só pode ser acreditado por aqueles que já o gozaram.
Eu, pela minha parte, só conhecia coisa parecida criada pela imaginação de Flaubert na Lenda de S. João Hospitaleiro e recusar-me-ia a crer que a Natureza o pudesse reproduzir e demais em condições tão extraordinárias.

É um sonho: em frente de nós, aos lados, para a rectaguarda, galopam milhares de cabras!
(...) Já ninguém queria matar, banalizado o prazer da caça pela profusão das reses e pela facilidade de as alcançar.
Todos sentíamos um começo de fadiga, não corporal, mas um vago aborrecimento e remorso de tanta morte inútil, de tanta dor causada em vão. Para quê mais mortes, para quê mais dor? (...)




O crepúsculo começa a cair e é necessário estar em Moçâmedes a horas convenientes.
Acesas as lanternas, a paisagem toma de novo aspectos de uma irrealidade macabra (...)

Francamente: éramos dignos de um castigo severo, bárbaros que andavam um dia inteiro a matar, para largarem as vítimas no meio dos areais, às portas de uma cidade civilizada, para pasto da sórdida quimalanca, que durante a noite viria rasteiramente, covardemente, banquetear-se com a carne fria que o homem destruíra e depois abandonara!"


(Fonte: Gastão de Sousa Dias - "África Portentosa" - Seara Nova - 1928 - Lisboa)
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Ruy Mingas
("Minha Terra")

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