quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Pizarro e a Conquista Espanhola do Peru (4.ª e última parte)


(Extraído da obra de William H. Prescott  History of the Conquest of Peru, With a Preliminar View of the Civilization of the Incas - New York - 1843)
(Tradução e adaptação da Torre da História Ibérica)

Continuação de:

1.ª parte (06-Fevereiro-2019) (ver aqui)
2.ª parte (14-Fevereiro-2019) (ver aqui)
3.ª parte (21-Fevereiro-2019) (ver aqui)

"Pizarro não deu inicialmente ouvidos às terríveis sugestões acerca da sorte do Inca, ou, pelo menos, assim o aparentou, mostrando uma visível repugnância em sacrificar o prisioneiro. Havia muito poucos que o acompanhassem em semelhante atitude, e entre eles contava-se Hernando de Soto, que considerava injusto um tal desenlace, por não estar provado o crime de Atahualpa.
Neste estado de coisas, o chefe espanhol decidiu enviar um pequeno destacamento a Guamachucho, para reconhecer o país e averiguar o que havia de verdade nos rumores da insurreição.
Após a partida do destacamento a agitação entre os soldados cresceu de tal forma que Pizarro, não conseguindo resistir à pressão, consentiu que se preparasse o julgamento de Atahualpa. Era decerto decoroso e mais seguro emprestar ao assunto uma aparência de isenção. Organizou-se um tribunal a que presidiram como juízes os dois capitães, Pizarro e Almagro. Nomeou-se um fiscal e concedeu-se um defensor ao prisioneiro.


Eram doze as acusações formuladas contra o Inca. As mais importantes eram a de que havia usurpado a coroa e assassinado o seu irmão Huascar; além disso, havia dissipado as rendas públicas desde a conquista do país pelos espanhóis, dotando com elas os seus parentes e favoritos; acusavam-no também dos crimes de idolatria e de adultério, vivendo publicamente casado com muitas mulheres; apontavam-lhe, por último, que tinha tratado de sublevar os seus vassalos contra os espanhóis.
Estas acusações, muitas das quais se referiam aos costumes do país ou às relações pessoais do Inca – sobre que os invasores espanhóis não possuíam qualquer jurisdição -, eram absurdas. A única a ter alguma importância, se fosse verdadeira, era a última, mas a sua debilidade era tamanha que os julgadores se viram na necessidade de acrescentar-lhe as outras. O artifício indicia que estava já decidida a morte do Inca.

Foram ouvidos alguns testemunhos índios, e as suas declarações, quando passaram pelo crivo da interpretação de Felipillo (um natural da terra que odiava Atahualpa), sofreram graves deturpações, ao sabor dos interesses dos invasores. Rapidamente se concluiu a audição das testemunhas, a que se seguiu uma discussão acalorada acerca das vantagens e das desvantagens que resultariam da morte do Inca.
A questão era de mera conveniência. Por fim declararam-no culpado, não sabemos se de todos os crimes que lhe eram atribuídos, e foi condenado a ser queimado vivo na grande praça de Caxamalca; a sentença deveria executar-se naquela mesma noite, sem sequer se esperar o regresso do destacamento enviado a Guamachucho, cujas informações poderiam confirmar ou desmentir os rumores relativos à insurreição dos índios.
Como fosse julgada necessária a aprovação do padre Valverde, apresentou-se-lhe uma cópia da sentença para que a assinasse, o que ele fez sem vacilações, declarando que, em sua opinião, o Inca merecia em qualquer caso a morte.



Houve, sem embargo, alguns presentes no tribunal que manifestaram a sua discordância acerca destas acções arbitrárias, considerando-as como uma enorme ingratidão para com os favores recebidos do Inca, o qual só tinha sofrido agravos em troca. Declararam que os testemunhos acusatórios eram insuficientes para uma condenação daquelas, e negaram que o tribunal reunisse autoridade para sentenciar um príncipe soberano no centro dos seus próprios domínios. Havendo necessidade de um julgamento, sustentavam eles, o prisioneiro deveria ser embarcado para Espanha e julgado ante o Imperador, único ser que possuía o direito de decidir a sua sorte.
Porém, a grande maioria dos presentes, que era de dez contra um, respondeu a estas objecções afirmando que estava convencida do crime de Atahualpa, e que tomava sobre si a responsabilidade do acto. A disputa subiu de tom a ponto de quase se ter verificado uma violenta ruptura. Mas, por fim, convencidos de que a resistência seria inútil, os opositores remeteram-se ao silêncio, limitando-se a elaborar um protesto escrito contra os procedimentos em curso, que deveriam deixar uma mancha indelével sobre os que neles tomassem parte.

Quando Atahualpa, o Inca, recebeu a notícia da sentença, manifestou grande desgosto e angústia, pois, apesar de nos últimos tempos desconfiar de que o pudessem condenar à morte, havia mantido um fio de esperança quanto à atitude dos captores. Por um instante a certeza do seu trágico destino debilitou-lhe o ânimo e fê-lo exclamar, de lágrimas nos olhos: Que fiz eu, que fizeram os meus filhos para merecer tal sorte? E, sobretudo, que fizemos para merecê-la das tuas mãos – acrescentou, dirigindo-se a Pizarro – quando tu não achaste mais do que amizade e afecto no meu povo, quando reparti contigo os meus tesouros, quando de mim não recebeste senão benefícios? Depois, em tom dramático, suplicou que lhe perdoassem a vida, prometendo dar todas as garantias que se lhe exigissem para segurança de todos os espanhóis que compunham o exército e oferecendo o dobro do resgate que já havia pago se lhe dessem tempo para reuni-lo.
Uma testemunha ocular assegura que Pizarro se manifestou visivelmente afectado ao separar-se do Inca, a cujos rogos não podia aceder porque isso significaria opor-se à vontade do exército e à sua própria convicção de que a desaparição do Inca era indispensável à pacificação do país.
Atahualpa, vendo que não conseguia dissuadir o conquistador, recobrou a sua habitual serenidade e desde aquele momento submeteu-se ao seu destino com a atitude e o valor de um guerreiro índio.

Publicou-se a sentença do Inca, ao som das trombetas, na grande praça de Caxamalca. E, duas horas depois de o sol se pôr, os soldados reuniram-se ali, empunhando tochas, para presenciarem a execução.
Era o dia 29 de Agosto de 1533. Atahualpa saiu a pé, preso por cadeias de ferro, em direcção ao local do suplício. O padre Vicente de Valverde seguia a seu lado procurando consolá-lo e realizando uma derradeira tentativa de que ele desistisse das suas crenças supersticiosas e abraçasse a religião dos vencedores; tudo porque pretendia salvar a alma da sua vítima no Além, ele que tão espontaneamente o havia condenado a tão terrível expiação neste mundo terreno.




Durante a prisão de Atahualpa o padre Valverde havia-lhe exposto repetidas vezes as doutrinas do cristianismo, e o monarca índio, escutando-o embora com paciência, não se mostrara nunca disposto a renunciar às crenças dos seus antepassados. Agora, contudo, na hora solene e terrível da execução, o padre dominicano jogou o último lance. Com Atahualpa já amarrado para o suplício, tendo ao redor as tochas que haviam de incendiar a sua pira funerária, Valverde, erguendo a cruz, rogou-lhe que se convertesse e que se deixasse baptizar: se o fizesse, a horrorosa sentença da fogueira seria comutada na pena mais suave do garrote.

O desditoso monarca perguntou se era mesmo verdade o que se lhe dizia, e, tendo obtido a confirmação de Pizarro, consentiu em abjurar da sua religião e em receber o baptismo. A cerimónia foi levada a cabo pelo padre Valverde e o neófito recebeu o nome de Juan de Atahualpa, em honra de S. João Baptista, em cujo dia se verificou aquele sucesso.
Atahualpa manifestou desejo de que os seus restos fossem trasladados para Quito, sua terra natal, para que fossem conservados com os dos seus antepassados por linha materna. Depois, volvendo-se para Pizarro, pediu-lhe como último favor que tivesse compaixão dos seus jovens filhos e os acolhesse à sua protecção e amparo.
Depois, recuperando a serenidade habitual, que por instantes o havia abandonado, submeteu-se tranquilamente à sua sorte, enquanto os espanhóis que o rodeavam entoavam o credo pela salvação da sua alma.
Assim pereceu o último dos Incas – como se se tratasse de um vulgar malfeitor.

O corpo do Inca permaneceu no local da execução durante toda a noite. Na manhã seguinte levaram-no para a igreja de S. Francisco, erigida pelos conquistadores, onde se celebraram as exéquias com grande solenidade.
Pizarro e os principais cavaleiros assistiram de luto, e as tropas escutaram com devota atenção o ofício de defuntos celebrado pelo padre Valverde. A cerimónia foi interrompida por gritos e choros vindos das portas do templo, que se abriram repentinamente, dando entrada a um numeroso grupo de índias – esposas e irmãs do falecido. Invadindo a grande nave, cercaram o corpo dizendo que não era aquele o modo correcto de celebrar os funerais de um Inca, e declarando-se dispostas a sacrificar-se sobre a sua tumba para o acompanharem no país dos espíritos.
Os circunstantes, ofendidos com tal procedimento, informaram as invasoras de que Atahualpa havia morrido cristão e de que o seu novo Deus aborrecia tais sacrifícios. Depois intimaram-nas a que saíssem da igreja, e muitas delas, ao retirarem-se, suicidaram-se na esperança de acompanhar o seu amado senhor nas brilhantes mansões do Sol.


Os restos de Atahualpa, não obstante a súplica que havia feito, foram depositados no cemitério de S. Francisco. Mas correu mais tarde que os índios, mal os espanhóis saíram de Caxamalca, o trasladaram em segredo para Quito.
Os colonos que posteriormente ali se estabeleceram supunham que tinham sido enterradas com o Inca algumas riquezas.
Efectuaram escavações – mas não acharam nem o corpo nem tesouros."

(FIM DA 4.ª E ÚLTIMA PARTE)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

A Cachorrinha

 
Mas que amor de cachorrinha!
Mas que amor de cachorrinha!

Pode haver coisa no mundo
Mais branca, mais bonitinha
Do que a tua barriguinha
Crivada de mamiquinha?

Pode haver coisa no mundo
Mais travessa, mais tontinha
Que esse amor de cachorrinha
Quando vem fazer festinha
Remexendo a traseirinha?
 
Vinícius de Moraes - Brasil (Rio de Janeiro, 1913-1980)



segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Alison Balsom (Concerto para Trompete e Orquestra de Haydn - 3.º Mov.)


(Alison Balsom - Nasceu em Inglaterra, a 7 de Outubro de 1978)
 

(Vídeo de KiatMac Pattaya)

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Pizarro e a Conquista Espanhola do Peru (3.ª Parte)


(A partir da obra de William H. Prescott - History of the Conquest of Peru, With a Preliminar View of the Civilization of the Incas - New York - 1843)
(Tradução e adaptação da Torre da História Ibérica)

Ver:
1.ª parte - 06-Fevereiro-2019
2.ª parte - 14-Fevereiro-2019

"A vinda de Almagro modificou consideravelmente os cálculos de Pizarro, pois este ficava em condições de empreender operações activas e de prosseguir a conquista. O único obstáculo era o resgate pedido em troca do Inca, Atahualpa, que os espanhóis tinham esperado pacientemente. O tesouro aumentou muito quando regressaram os emissários enviados a Cuzco para esse efeito, embora não se alcançasse ainda o limite estipulado. Mas a cobiça dos conquistadores esgotou-lhes a paciência, e passaram quase todos a reclamar com veemência a imediata repartição do ouro. Esperar mais expô-los-ia a um ataque dos inimigos, que não deixariam de se sentir atraídos por tal engodo. A maior parte dos ocupantes queria abandonar Caxamalca e marchar directamente para Cuzco, acreditando que encontrariam mais ouro na capital. E insistiam que não havia tempo a perder, para impedirem que os habitantes escondessem os seus tesouros.

Esta última consideração fez com que Pizarro se decidisse, pois não tinha dúvidas de que não conseguiria assenhorear-se do império sem se apoderar da capital. Determinou, assim, sem mais demora, que se procedesse à distribuição do tesouro. No entanto, tornava-se necessário reduzi-lo a barras de igual tamanho, peso e qualidade, uma vez que o saque se compunha de uma infinita variedade de objectos em que o ouro apresentava diferentes graus de pureza. Viam-se bandejas, taças, jarros e vasos de todas as formas e tamanhos, ornamentos e utensílios dos templos e dos palácios reais, curiosas imitações de plantas e animais diversos. Entre os vegetais mais representados figurava o milho, com os seus grãos dourados cobertos de largas folhas de prata, das quais pendiam fios do mesmo metal. Também era notável uma fonte com o seu brilhante jorro de ouro e pássaros e animais da mesma matéria brincando nas águas do recipiente. A delicadeza do trabalho de alguns objectos e a beleza e a naturalidade da sua forma cativaram a admiração geral.

Confiou-se aos ourives índios a tarefa de fundir o tesouro, forçando-os a desfazer o que com as suas próprias mãos haviam produzido. Eles trabalharam dia e noite, mas tal era a quantidade do material que gastaram no trabalho um mês inteiro. Quando tudo ficou reduzido a barras de igual valor, procedeu-se à verificação do peso na presença dos inspectores reais. A importância total ascendia a um milhão, trezentos e vinte e seis mil e quinhentos e trinta e nove pesos de ouro (o que equivaleria actualmente - 1843 - a cerca de três milhões e meio de libras esterlinas).

A História não oferece outro exemplo de semelhante saque, todo em metal precioso, ganho por uma pequena tropa de aventureiros como eram os conquistadores do Peru. O grande objectivo das expedições espanholas no Novo Mundo foi o ouro; e é espantoso que tão completamente o lograssem. É igualmente notável que a riqueza tão repentinamente adquirida, afastando-os das fontes menos copiosas mas mais seguras da prosperidade nacional, se lhes tivesse escapado mais tarde por entre os dedos, transformando-os numa das nações mais pobres da Cristandade.


Pizarro preparou com toda a solenidade a distribuição do tesouro. Reuniu as tropas na grande praça e invocou o auxílio do céu para executar aquele acto com consciência e justiça. Deduziu-se primeiro o quinto real (que incluía as peças retiradas do tesouro para serem enviadas como presente ao imperador, em Espanha). A parte de Pizarro ascendeu a cerca de cinquenta e sete mil pesos de ouro e dois mil e trezentos e cinquenta marcos de prata. Para seu irmão, Hernando, foram perto de trinta e dois mil pesos de ouro e a mesma importância de prata que reservara para si. Muitos dos restantes cavaleiros, que eram sessenta, receberam, individualmente, oito mil e oitocentos pesos de ouro e trezentos e sessenta e dois marcos de prata. A infantaria compunha-se de cento e cinco homens, e cada um recebeu, com pequenas variações, cerca de metade do que foi atribuído aos cavaleiros.

Finda a repartição do tesouro, parecia que já nada se opunha à marcha sobre Cuzco. Mas que havia de fazer-se de Atahualpa? Dar-lhe a liberdade seria deixar à solta o mais perigoso dos inimigos, um homem que não tardaria a ter ao seu redor toda a nação e cujas palavras seriam capazes, só por si, de dirigir toda a energia do seu povo contra os espanhóis, dilatando por muito tempo, ou mesmo frustrando, o processo de conquista. Mas mantê-lo cativo oferecia não menores dificuldades, pois a guarda de tão importante presa requeria a utilização de muita gente, o que prejudicava o esforço militar. E mesmo assim não se evitaria o perigo de que o prisioneiro fosse resgatado nas perigosas passagens das montanhas por onde teriam de marchar.


Enquanto isto, o Inca reclamava insistentemente a libertação. Embora não tivesse entregue a totalidade do resgate combinado, havia feito chegar às mãos dos espanhóis uma quantia imensa. E Atahualpa alegava que poderia ter entregue bastante mais, não fora a impaciência dos seus carcereiros. O resgate fora, sem dúvida, magnífico, e jamais qualquer potentado havia cumprido daquela forma. Atahualpa expunha as suas razões a muitos dos cavaleiros, especialmente a Hernando de Soto, com o qual ganhara alguma familiaridade. Soto falou do assunto a Pizarro, mas este não se abriu, encobrindo as intenções que lhe iam germinando no íntimo. Pouco tempo depois fez com que se preparasse um documento, no qual se dispensava o Inca do pagamento da parte restante do resgate. E ordenou que esse documento fosse publicamente apregoado, declarando ao mesmo tempo que a segurança dos espanhóis exigia que o Inca permanecesse na prisão até que aqueles recebessem novos reforços.

Entretanto, voltaram a correr rumores de que se preparava um levantamento geral dos índios e que isso era inspirado por Atahualpa. Pizarro confrontou-o com o que se dizia, mas ele negou tranquilamente, protestando a sua inocência. O Inca percebeu porém rapidamente as causas destas acusações e adivinhou-lhes muito provavelmente as consequências, vendo então o abismo que se lhe cavava diante dos pés. Estava rodeado de estrangeiros e de nenhum deles poderia esperar conselho ou protecção. Ele sabia que é geralmente curta a vida de um monarca prisioneiro. Fez tudo para convencer Pizarro que não representava qualquer ameaça e que não tinha nada a ver com os rumores que corriam entre os soldados: Não sou um pobre cativo nas tuas mãos? Como posso alimentar tais desígnios sabendo que seria eu a primeira vítima da insurreição?

Estes protestos de inocência produziram pouco efeito entre as tropas espanholas, que acreditavam ter-se já reunido um grande exército índio em Guamachucho, a menos de cem milhas dali. Dobraram-se as patrulhas e a cavalaria mantinha os cavalos sempre selados, ao mesmo tempo que a infantaria dormia de armas ao lado. Pizarro rondava de quando em quando, cuidando de que as sentinelas estivessem permanentemente a postos. Enfim, o pequeno exército espanhol achava-se preparado para resistir ao ataque que se esperava a todo o momento.
Os que têm medo não costumam ser muito escrupulosos quanto à escolha dos meios para afastar as causas do seu temor. Ouviram-se murmúrios misturados com terríveis ameaças contra o Inca, que consideravam autor destas maquinações. Muitos pediam a sua morte como necessária à segurança do exército."

Continua na 4.ª e última parte (em 28-Fevereiro-2019)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Recordando Uma Velha Amizade...

.


.
Infância Perdida

Nesse tempo, Edelfride,
com quatro macutas
a gente comprava
dois pacotes de ginguba
na loja do Guimarães.


Nesse tempo, Edelfride,
com meio angolar
a gente comprava
cinco mangas madurinhas
no Mercado de Benguela.


Nesse tempo, Edelfride,
montados em bicicletas
a gente fugia da cidade
e ia prás pescarias
ver as traineiras chegar
ou então
à horta do Lima Gordo
no Cavaco
comer amoras fresquinhas.


Nesse tempo, Miau,
(alcunha que mantiveste no futebol)
nós fazíamos gazeta
da escola coribeca
e íamos os quatro
jogar sueca
debaixo da mandioqueira.


Era no tempo
em que o Saraiva Cambuta
batia na mulher
e a gente gostava de ver a negra levar porrada.


Era no tempo
dos dongos da ponte
dos barcos de bimba
dos carrinhos de papelão.


Como tudo era bonito nesse tempo, Miau!


Era no tempo do visgo
que a gente punha na figueira brava
para apanhar bicos-de-lacre
e seripipis
os passarinhos que bicavam as papaias
do Ferreira Pires
que tinha aquele quintalão grande
e gostava dos meninos.


Era no tempo dos doces de ginguba com açúcar.
Mais tarde
vieram os passeios noturnos
à Massangarala
e ao Bairro Benfica.
E o Bairro Benfica ao luar
O poeta Aires a cantar
(meu amor da rua onze e seu colar de missangas...)


Tudo era bonito nesse tempo
até o Salão Azul dos Cubanos
e o Lanterna Vermelha - o dancing do Quioche.
.

.
Foi então que a vida me levou para longe de ti:
parti para estudar na Europa
mas nunca mais lhe esqueci, Edelfride,
meu companheiro dos bancos de escola
porque tu me ensinaste a fazer bola de meia
cheia de chipipa da mafumeira.


Tu me ensinaste a compreender e a amar
os negros velhos do bairro Benfica
e as negras prostitutas da Massangarala
(lembras-te da Esperança? Oh, como era bonita
essa mulata...)


Tu me ensinaste onde havia
a melhor quissângua de Benguela:
era no Bairro por detrás do Caminho de Ferro
quando a gente vai na Escola da Liga.


Tu me ensinaste tudo quanto relembro agora
infância perdida
sonhos dos tempos de menino.


Tudo isso te devo
companheiro dos bancos de escola
isso
e o aprender a subir
aos tamarineiros
a caçar bituítes com fisga
aprender a cantar num kombaritòkué
o varrer das cinzas
do velho Camalundo.
Tudo isso perpassa
me enche de sofrimento.

Diz a tua Mãe
que o menino branco
um dia há-de voltar
cheio de pobreza e de saudade
cheio de sofrimento
quase destruído pela Europa.


Ele há-de voltar
para se sentar à tua mesa
e voltar a comer contigo e com teus irmãos
e meus irmãos
aquela moambada de domingo
com quiabos e gengibre
aquela moambada que nunca mais esqueci
nos longos domingos tristes e invernais da Europa
ou então
aquele calulu
de dona Ema.
.
Diz a tua Mãe, Edelfride,
que ela ainda me há-de beijar como fazia
quando eu era menino
branco
bem tratado
quando fugia da casa de meus Pais
para ir repartir a minha riqueza
com a vossa pobreza.


Diz tudo isso a toda a gente
que ainda se lembra de mim.
Diz-lhes. Diz-lhes
grita-lhes aos ouvidos
ao vento que passa
e sopra nas casuarinas da Praia Morena.


Diz aos mulatos e brancos e negros
que foram nossos companheiros de escola
que te escrevo este poema
chorando de saudade
as veias latejando
o coração batendo
de Esperança, de Esperança
porque ela
a Esperança
(como dizia aquele nosso poeta
que anda perdido nos longes da Europa)
está na Esperança, Amigo.


Edelfride, você não chore
saudades do Castimbala
nem lhe escreva cartas como essa
que são de partir
meu pobre coração.


Nesse tempo, Edelfride,
infância perdida
era no tempo dos tamarineiros em flor...
.
.
Ernesto Lara Filho - Angola
(1922 - 1977)
.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Pizarro e a Conquista Espanhola do Peru (2.ª Parte)


(Extracto da obra de William H. Prescott - History of the Conquest of Peru, with a Preliminar View of the Civilization of the Incas - New York - 1843)  (Tradução e adaptação da Torre da História Ibérica)

(Veja a 1.ª parte em 6-Fevereiro-2019: aqui)
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"Do número de mortos fala-se, como é costume, com grande discrição. O secretário de Pizarro diz que morreram dois mil índios. Um descendente dos Incas calcula o número de mortos em dez mil. A verdade deve achar-se, provavelmente, entre estes extremos. A matança foi incessante, pois nenhum obstáculo se lhe opôs. Sem embargo, ainda que o morticínio atingisse tais proporções foi também de curta duração, pois desenrolou-se no tempo que medeia entre o princípio e o fim do crepúsculo, que nos trópicos não excede meia hora. Período curto, de facto, mas suficiente para que nele se decidisse a sorte do Peru e caísse a dinastia dos Incas.

Naquela noite, Pizarro cumpriu a promessa que havia feito ao Inca de cear com ele. O banquete foi servido numa das quadras que confinavam com a grande praça, teatro da acção de horas antes, e que continuava pejada de cadáveres de vassalos do Inca. Sentaram o monarca cativo diante do seu vencedor. Ele parecia não compreender a extensão da sua desgraça; ou, se a compreendeu, manifestou um ânimo surpreendente. "Estas são as vicissitudes da guerra", disse. Se dermos crédito aos relatos dos espanhóis, ele manifestou a sua admiração pela forma como eles tinham conseguido aprisioná-lo no meio da sua gente. Acrescentou que tinha tido notícia dos movimentos dos brancos desde o instante em que desembarcaram, mas que, pela insignificância das tropas estrangeiras, menosprezara a sua força, convicto de que com o seu exército, muito superior em número, teria podido esmagá-las, em caso de necessidade, vencendo-as à sua chegada a Caxamalca. Explicou que quisera verificar por si próprio que espécie de homens eram aqueles - e por isso os havia deixado cruzar as montanhas - e que pensara escolher os melhores para o seu serviço, apoderando-se das suas armas maravilhosas e dos cavalos, dando morte aos restantes.

É possível que tal fosse o propósito de Atahualpa. Assim se explicaria que ele não tivesse ocupado as passagens nas montanhas, que lhe teriam proporcionado excelentes pontos de defesa. Mas já não é crível que um príncipe tão astuto como ele parece ter sido - segundo o testemunho generalizado dos conquistadores - revelasse desta maneira tão franca as suas intenções ocultas. As conversas com o Inca foram mantidas através do intérprete Felipillo, assim chamado porque havia optado por nome cristão, um jovem que segundo as evidências não tinha boa vontade para com Atahualpa e cujas traduções eram facilmente acolhidas pelos conquistadores, desejosos de arranjar pretextos para as suas sangrentas represálias.


Atahualpa contava naquela altura trinta anos de idade. Era bem constituído e mais robusto do que a maioria dos seus súbditos. A sua fronte era ampla e o seu rosto poderia ter-se considerado formoso se os olhos sanguinolentos não emprestassem às suas feições, no dizer dos espanhóis, uma expressão feroz. Era desembaraçado nas conversas, grave em suas maneiras, duro até à severidade com os vassalos, embora se mostrasse afável com os espanhóis.

Pizarro tratou com muita consideração o seu régio cativo e procurou aligeirar, já que a não podia apagar, a tristeza que a despeito da sua aparente resignação se pressentia no monarca. Aconselhou-o a que não se deixasse abater pelos reveses, porque sorte idêntica à sua haviam sofrido todos os príncipes que tinham oposto resistência aos brancos. Comunicou-lhe que estes tinham chegado àquele país para proclamarem o Evangelho, a religião de Jesus Cristo, e que não era de estranhar a sua vitória, pois que eram protegidos pelo escudo de Deus. Disse-lhe, ainda, que os céus tinham permitido a sua humilhação por ele se ter mostrado hostil para com os recém-chegados e pelo ultraje que havia praticado para com o Livro Sagrado. Mas Pizarro suplicou ao vencido que tivesse ânimo e que confiasse nele, pois os espanhóis eram uma raça generosa e que somente faziam guerra aos que se lhes opunham, mostrando-se clementes para os que se lhes submetiam.

Na manhã seguinte, o primeiro cuidado do chefe espanhol foi mandar limpar a cidade, utilizando-se dos prisioneiros para dar sepultura condigna às vítimas do massacre. Antes do meio-dia chegou uma multidão de índios, homens e mulheres, e, entre estas, muitas das esposas e criadas do Inca. Os espanhóis continuavam a não deparar com resistência, porque os guerreiros peruanos, ainda que superiores em número, haviam perdido o ânimo no momento em que tomaram conhecimento da captura do seu senhor. Também não tinham quem os guiasse, pois não reconheciam outra autoridade que não fosse a do Filho do Sol; e pareciam paralisados por uma espécie de estranho feitiço nas proximidades da sua prisão, mirando com temor supersticioso aqueles brancos que tinham tido a audácia de levar a cabo tão grande façanha.






O número de prisioneiros índios era tão grande que alguns dos conquistadores foram de opinião que se deveria matá-los a todos, ou, pelo menos, cortar-lhes as mãos, para que não se entregassem a actos de violência e para infundir terror a toda a nação.
Esta proposta veio sem dúvida da soldadesca mais baixa e feroz, mas o simples facto de ter sido possível evidencia a classe de gente que compunha a força de Pizarro. Este rechaçou a ideia, tão impolítica como cruel, e devolveu os índios aos seus lugares de origem, assegurando-lhes que a nenhum se faria dano enquanto não oferecessem resistência aos brancos. Os conquistadores ficaram no entanto com bastantes deles ao seu serviço e abasteceram-se com tal abundância que o menos importante dos soldados possuía tantos criados como um nobre rico e gastador.

Atahualpa, o Inca, não tardou a descortinar um apetite oculto sob as manifestações de zelo religioso dos seus vencedores. Consistia este numa insaciável sede de ouro, da qual pensou aproveitar-se para conseguir a liberdade. Com esta esperança, e apelando à cobiça dos captores, disse um dia a Pizarro que, se o libertasse da prisão, ele, Inca, comprometia-se a cobrir de ouro o chão do aposento em que se encontravam. Os que se achavam presentes escutaram-no com sorrisos incrédulos. Mas Atahualpa, vendo-se sem resposta, acrescentou enfaticamente que não somente cobriria o chão como encheria o quarto até que o ouro chegasse à sua altura. E, pondo-se em bicos de pés, fez com a mão um sinal na parede, o mais alto que pôde.

Assombraram-se os circunstantes, considerando estas promessas como a louca jactância de um homem que, para recuperar a liberdade, não media o sentido das palavras. Mas Pizarro ficou pensativo, pois tudo o que vira e ouvira à medida que se internava no país confirmava as maravilhosas notícias acerca das riquezas do Peru. Acedeu portanto à oferta de Atahualpa e, traçando uma linha vermelha na parede, à altura que o Inca havia indicado, mandou que um escrivão anotasse os termos do acordo. O aposento era de uns dezassete por vinte e dois pés, e a linha traçada na parede marcava uma altura de nove pés. Também se combinou que se enchesse duas vezes de prata o quarto imediato, de dimensões mais reduzidas, pedindo o Inca dois meses para cumprir o contrato. A seguir despachou correios até Cuzco e até às principais cidades do reino com ordens para se trazerem sem perda de tempo a Caxamalca todos os ornamentos e utensílios de ouro das residências reais, dos templos e dos demais edifícios públicos.

Atahualpa continuou entretanto a viver com os espanhóis, tratado com o respeito devido à sua categoria e gozando do espaço de liberdade compatível com a segurança da sua pessoa. Ainda que lhe fosse vedado sair à rua, podia passear-se pelos aposentos da sua habitação, sob a vigilância zelosa de uma guarda que conhecia demasiado bem o valor do cativo para permitir-se qualquer negligência.
Concedeu-se também ao Inca a companhia das suas mulheres favoritas, e Pizarro teve o cuidado de ordenar que não fosse perturbado o segredo das intimidades domésticas. Os seus vassalos tinham livre acesso ao soberano, que todos os dias recebia visitas de índios nobres que lhe ofereciam presentes e lhe manifestavam o desgosto que lhes causava a sua desgraça.

Nessas ocasiões, até os vassalos de maior condição não chegavam à sua presença sem primeiro descalçarem as sandálias. Os espanhóis testemunhavam com curiosidade estes actos de homenagem, ou, até, de humilhação servil, acolhidos pelo Inca com um ar de completa indiferença, como se se tratasse de actos corriqueiros. E ficavam impressionados com o carácter de um príncipe que, mesmo naquelas condições, era capaz de inspirar tais sentimentos de respeito aos súbditos.

Pizarro não desprezou a oportunidade que se lhe oferecia para comunicar as verdades da revelação ao prisioneiro, e tanto ele como o seu capelão Valverde trabalharam nesta boa obra. Atahualpa escutava-os com serenidade e aparente atenção. Nada pareceu comovê-lo mais do que o argumento com que o chefe militar terminou o seu discurso, a saber, que não podia ser verdadeiro o deus que o Inca adorava, pois tinha consentido que ele caísse nas mãos dos seus inimigos. O infeliz monarca reconheceu a força do argumento, dizendo que, de facto, a sua divindade o tinha abandonado no momento em que mais necessitava do seu amparo.


Várias semanas haviam decorrido desde que Atahualpa despachara os seus emissários em busca do ouro e da prata prometidos aos espanhóis pelo seu resgate. Porém, as distâncias eram grandes e os mensageiros regressavam lentamente, trazendo na maior parte peças maciças de prata, algumas de duas ou três arrobas de peso. Apesar disso, em poucos dias chegou um valor equivalente a trinta ou quarenta mil pesos de ouro e a cinquenta ou sessenta mil pesos de prata. Brilhavam de cobiça os olhos dos conquistadores ao contemplarem os reluzentes montões do tesouro que os índios traziam às costas, e que depois de cuidadosamente pesado e anotado era colocado em depósito sob forte custódia.

Então começaram a acreditar que se cumpririam as magníficas promessas do Inca. Mas, à medida que a sua cobiça se aguçava ao verem diante de si aquela fortuna que mal poderiam ter imaginado, aumentavam as suas exigências impacientes, não fazendo caso das distâncias e das dificuldades dos caminhos, e censurando vivamente a demora com que se executavam as ordens reais. Chegaram a suspeitar de que Atahualpa tivesse inventado o pretexto do seu resgate apenas com o propósito de estabelecer contacto com os vassalos mais distantes e que a demora fosse calculada com o objectivo de assegurar a execução de planos secretos. Circulavam rumores de sublevação entre os peruanos e manifestavam-se entre os espanhóis receios de um ataque repentino e generalizado aos seus acampamentos. As suas recentes riquezas faziam-nos redobrar de cautelas. Eles tremiam como o avarento no meio dos seus tesouros.

Pizarro pôs Atahualpa ao corrente destes rumores. O Inca reagiu com indignação, assegurando que nenhum dos súbditos se atreveria a desobedecer-lhe. Pizarro continuou a dispensar-lhe as maiores atenções. Ensinaram-lhe o jogo dos dados e, mais difícil, o do xadrez, no qual o prisioneiro chegou a tornar-se hábil, entretendo com ele o tédio do cativeiro.

Quanto aos vassalos, mantinha-se dentro do possível a cerimónia que lhe era devida. Era servido pelas esposas e pelas mulheres do seu harém. Na antecâmara estacionavam alguns nobres índios, que nunca chegavam à sua presença sem serem chamados. O serviço da sua mesa era de ouro e prata, e o seu traje, que mudava amiúde, era de lã de vicunha, tão fina que parecia seda. Na cabeça usava o Llautau, espécie de turbante de tecido muito delicado, dobrado em pregas de diversas cores brilhantes.

A imagem da soberania continuava a ser importante para ele, ainda que já não tivesse correspondência na realidade. Ninguém podia usar vestuário ou utensílio que tivesse pertencido a um soberano do Peru. Quando este os rejeitava, eram cuidadosamente depositados numa caixa apropriada e depois incinerados com ela. Constituiria um sacrilégio permitir uma utilização vulgar àquilo que o contacto com o Inca havia tornado sagrado.

Em meados de Fevereiro de 1533 ocorreu algo que mudou a situação dos espanhóis e teve uma influência desfavorável na sorte do Inca. Tratou-se da chegada a Caxamalca de reforços comandados por Almagro. Os soldados de Pizarro saíram a receber os companheiros e os dois capitães abraçaram-se entre demonstrações de cordialidade. Resolveram esquecer as desavenças passadas e declararam-se dispostos a auxiliar-se mutuamente na brilhante carreira que a conquista daquele império lhes oferecia.

Havia uma pessoa em Caxamalca em quem a aparição dos novos soldados espanhóis produzia uma impressão diferente. Era Atahualpa, o qual não somente viu nos recém-chegados outra nuvem de gafanhotos que ia devorar o seu país, como pressentiu nesta multiplicação dos seus inimigos uma diminuição das probabilidades de recuperar e manter a liberdade. Uma outra circunstância, insignificante em si mesma, mas à qual a superstição dava uma importância formidável, ocorreu também por estes dias. Alguns soldados viram no céu uma espécie de meteoro ou cometa e vieram dizê-lo a Atahualpa. O Inca observou o fenómeno durante alguns minutos e depois, com ar desconsolado, exclamou que se havia avistado o mesmo sinal nos céus pouco antes da morte de seu pai, Huayna Capac.
A partir daquele dia apoderou-se dele uma profunda tristeza, com o pressentimento de uma próxima desgraça."

Continuações nas seguintes datas:
3.ª parte - 21-Fevereiro-2019;
4.ª parte - 28-Fevereiro-2019.