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quinta-feira, 7 de julho de 2022

A Dama de Elche (Espanha) - Um belo enigma ibérico

 

 

A Dama de Elche - Busto de mulher, encontrado, por acaso, em Elche, província de Alicante (Espanha), perto do mar.

No local têm aparecido objectos de quase todas as épocas.

Com 56 cm. de altura, lavrado em calcário, é um dos monumentos escultóricos mais notáveis de origem peninsular.

Deverá datar do século IV ou V a.C.

Está presentemente no Museu Arqueológico de Espanha, em Madrid.

O busto foi originalmente colorido (ver, abaixo, um desenho de Francisco Vives com uma hipótese das cores iniciais).

Acha-se em bom estado de conservação.




O seu significado e origem permanecem misteriosos.

Não há dúvida de que o seu autor deve ter sido grego (ou indígena helenizado), tal a perfeição das feições e dos ornatos que exibe, não só no alto da cabeça (tiara) como aos lados, onde aparecem umas caixas circulares para nelas serem metidos os cabelos, depois de enrolados.

Apresenta ainda um diadema na fronte, colares ao pescoço e uma mantilha nos ombros.

A peça tem um largo orifício atrás, onde, de resto, a escultura é menos cuidada.

Seria, talvez, uma peça funerária, modelada sobre a face da defunta - e que guardaria na cavidade praticada no busto a sua urna cinerária ou objectos sagrados?

Seria uma divindade?

Jamais haverá uma resposta definitiva.


(Texto adaptado de Verbo - Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura e de Wikipédia)




Réplica da Dama de Elche, no jardim Huerto del Cura, naquela cidade.




Folclore da província de Alicante (Espanha)
(Vídeo de Mayka Ramos):

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Quando Portugal se libertou novamente de Espanha - 1.º de Dezembro de 1640 - Foi há 381 anos...



D. João IV, duque de Bragança, aclamado rei de Portugal em 1640, aquando da recuperação da independência face à Espanha.

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Em 1580, dois anos depois da morte do rei português, D. Sebastião, na batalha de Alcácer-Quibir (Marrocos), Portugal perdeu a independência para a Espanha. Na altura em que tal sucedeu, o país era independente há mais de 400 anos (ver aqui). O domínio estrangeiro durou 60 anos, tendo terminado no dia 1 de Dezembro de 1640.
Eis como o historiador Oliveira Marques viu o acontecimento:

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"Parece não haver dúvida de que a ideia de nacionalidade esteve por trás da restauração da independência plena de Portugal após 60 anos de monarquia dualista.

Cinco séculos de governo próprio haviam forjado uma nação, fortalecendo-a até ao ponto de rejeitar qualquer espécie de união com o país vizinho. Para mais, a independência fora sempre um desafio a Castela e uma vontade de não ser confundido com ela.

Entre os dois estados foram sucessivas e acerbas as guerras, as únicas que Portugal realmente travou na Europa.

Para a maioria dos Portugueses, os monarcas Habsburgos não eram mais do que usurpadores, os Espanhóis, inimigos, e os seus partidários, traidores. Mas a Restauração carece de ser explicada por grande número de outros elementos.


Estátua de D. João IV em Vila Viçosa, Alentejo, Portugal


Culturalmente, avançara depressa, entre 1580 e 1640, a castelhanização do País.

Autores e artistas portugueses gravitavam nas órbitas da corte espanhola, fixavam residência em Espanha, aceitavam padrões espanhóis e escreviam cada vez mais em castelhano, contribuindo para a riqueza do teatro, da música ou da arte pictórica espanhóis e dando hoje a impressão errada de uma decadência cultural a partir de 1580.

A perda de uma individualidade cultural era sentida por muitos portugueses, com reacções diversas a favor da língua pátria e da sua expressão em termos de prosa e poesia. Contudo, os intelectuais que assim reagiam sabiam perfeitamente que os seus esforços seriam vãos sem a recuperação da independência política.

Economicamente, a situação piorara desde a década de 1620 ou até antes. Muitas das razões que haviam justificado a união das duas coroas ficaram ultrapassadas com a marcha da conjuntura económica.

Todo o Império Português atravessava uma séria crise com a entrada em jogo de holandeses e ingleses. Portugal perdera o monopólio comercial na Ásia, África e Brasil, resultando daí que todos – a Coroa, a nobreza, o clero e a burguesia – haviam sofrido no montante das receitas.


Filipe IV, rei de Espanha. Nasceu em 1605 e faleceu em 1665. Ocupava o trono espanhol em 1640. 

Os Espanhóis reagiam fortemente contra a presença portuguesa nos seus territórios, mediante vários processos, entre os quais a Inquisição, situação que suscitou grande animosidade nacionalista tanto em Portugal como em Espanha, aprofundando o fosso já cavado entre os dois países.

Mesmo em Portugal, a situação económica estava longe de brilhante. Os produtores sofriam com a queda dos preços do trigo, do azeite e do carvão, só para dar alguns exemplos.

A crise afectava as classes baixas, cuja pobreza aumentou sem disfarces, como, aliás, em muitos outros países da Europa. O aumento dos impostos tornava a situação ainda pior. Para explicar os tempos difíceis e apaziguar o descontentamento geral, a solução apresentava-se fácil e óbvia: a Espanha, causa de todos os males.

A conspiração a favor da independência começou em 1639, se não antes, congregando um grupo heterogéneo de nobres, clientes-funcionários da casa de Bragança, e elementos do alto e baixo clero. Em Novembro de 1640, a conspiração dos aristocratas conseguiu finalmente o apoio formal do duque de Bragança.


Margarida de Sabóia, duquesa de Mântua.
Era prima do rei de Espanha, Filipe IV. Exercia as funções de vice-rainha de Portugal no momento da restauração da independência.

Na manhã do 1º de Dezembro, um grupo de nobres atacou a sede do governo em Lisboa (Paço da Ribeira), prendeu a duquesa de Mântua, e matou ou feriu alguns membros da guarnição militar e funcionários, entre os quais o Secretário de Estado, Miguel de Vasconcelos. Seguidamente, os revoltosos percorreram a cidade, aclamando o novo estado de coisas, secundados pelo entusiasmo popular.

D. João foi aclamado como D. João IV, entrando em Lisboa alguns dias mais tarde.

Por quase todo o Portugal metropolitano e ultramarino as notícias da mudança do regime e do novo juramento de fidelidade ao Bragança foram recebidas e obedecidas sem qualquer dúvida. Apenas Ceuta permaneceu fiel à causa de Filipe IV.

Como “governadores”, para gerirem os negócios públicos até à chegada do novo rei, foram escolhidos o arcebispo de Lisboa, D. Rodrigo da Cunha, o de Braga, D. Sebastião de Matos de Noronha, e o visconde de Vila Nova de Cerveira, D. Lourenço de Lima. D. João IV entrou em Lisboa a 6 de Dezembro, cessando nesta data as funções dos “governadores”.


Morte de Miguel de Vasconcelos


Proclamar a separação fora coisa relativamente fácil.
Mais difícil seria conseguir mantê-la.

Tal como em 1580, os portugueses de 1640 estavam longe de unidos. Se as classes inferiores conservavam intacta a fé nacionalista e aderiram a D. João IV sem sombra de dúvida, já a nobreza, muitas vezes com laços familiares em Espanha, hesitou e só parte dela alinhou firmemente com o duque de Bragança. O mesmo se poderia afirmar em relação ao clero.

O novo monarca português não gozava por certo de uma posição invejável. Do ponto de vista teórico, tornava-se necessário justificar a secessão: o novo monarca, longe de figurar como usurpador, reavera simplesmente aquilo que por direito legítimo lhe pertencia.

Abundante bibliografia produzida em Portugal e fora dele a partir de 1640 procurou demonstrar os direitos reais do duque de Bragança. Se o trono jamais estivera vago de direito, tanto em 1580 como em 1640, não havia razões para qualquer tipo de eleição em cortes, o que retirava ao povo a importância que ele porventura teria, fosse o trono declarado vacante.

Todo o reinado (1640-56) foi orientado por prioridades.
Em primeiro lugar a reorganização do aparelho militar, com reparação de fortalezas das linhas defensivas fronteiriças, fortalecimento das guarnições e obtenção de material e reforços no estrangeiro.

Paralelamente, uma intensa actividade diplomática junto das cortes da Europa – no sentido de obter apoio militar e financeiro, negociar tratados de paz ou de tréguas, e conseguir o reconhecimento da Restauração – e a reconquista do império ultramarino. A nível interno, a estabilidade do regime dependeu, antes de mais, do aniquilamento de toda a dissensão a favor de Espanha.


Batalha de Montes Claros (1665), entre Portugueses e Espanhóis, inserida na chamada Guerra da Restauração. 

A guerra da Restauração (1640-1668) mobilizou todos os esforços que Portugal podia despender e absorveu enormes somas de dinheiro. Pior do que isso, impediu o governo de conceder ajuda às frequentemente atacadas possessões ultramarinas. Mas, se o cerne do Império, pelo menos na Ásia, teve de ser sacrificado, salvou pelo menos a Metrópole de uma ocupação pelas forças espanholas.

Portugal não dispunha de um exército moderno, as suas forças eram escassas – sobretudo na fronteira terrestre –, as suas coudelarias haviam sido extintas, os seus melhores generais lutavam pela Espanha algures na Europa.

Do lado português, tudo isto explica por que motivo a guerra se limitou em geral a operações fronteiriças de pouca envergadura.
Do lado espanhol, é preciso lembrar que a Guerra dos Trinta Anos (prolongada em Espanha até 1659) e a questão da Catalunha (até 1652) demoraram quaisquer ofensivas de vulto.

Regra geral, a guerra, que se prolongou por 28 anos, teve os seus altos e baixos para os dois contendores até ser assinado o Tratado de Lisboa, em 13 de Fevereiro de 1668, entre Afonso VI de Portugal e Carlos II de Espanha, em que este último reconhece a independência do nosso País."


(Adaptado de A. H. de Oliveira Marques, “A Restauração e suas Consequências”, in História de Portugal, vol. II, Do Renascimento às Revoluções Liberais, Lisboa, Editorial Presença, 1998, pp. 176-201.)







quinta-feira, 24 de junho de 2021

Foram ontem libertados os presos políticos da Catalunha (Catalunya)

 


Claro que eram presos políticos, como - lembrando o caso português - se escreveu aqui. Porém, ainda que fora da prisão, continuarão com os direitos cívicos e políticos gravemente limitados.

A direita espanhola, eterna e doentiamente saudosa da velha Castela imperial, promete reagir à bruta, como de costume. Reacção de escassa inteligência: não conseguem perceber que a procissão não passou ainda do adro e que os tempos não são já propícios aos adeptos das antigas leis "da enxovia e do garrote". 

Esperemos para ver, com especial atenção aos Catalães: muitos deles anunciam-se dispostos a ceifar grilhões, da mesma maneira que usam ceifar as espigas cor de ouro da sua bem-amada terra natal...

Veja pormenores da libertação dos presos - aqui.

Hino da Catalunha
(Els Segadors - Os Ceifeiros)
(Legendas em catalão e português)

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Recordando tempos de D. João VI, rei de Portugal e do Brasil (4) - A infância de Carlota Joaquina, esposa do monarca (2.ª parte)


 (Continuação daqui)


Resumo:

Casamento em Portugal - Meninas-crianças não dormem com os maridos - A corte dos velhos - Um diabinho à solta no palácio - Crime e castigo com um jumento à mistura - Rainha e nora em alegre convívio - Tragédia da rainha doida - Finalmente o "ajuntamento" do Príncipe e da Princesa do Brasil


Carlota Joaquina

D. João e Carlota Joaquina tinham já casado por procuração quando ela saiu de Aranjuez para Portugal. A união religiosa ocorreu a 9 de Junho de 1785, em Lisboa, na capela do Palácio da Ajuda, sendo os noivos abençoados pelo Cardeal Patriarca.

Atendendo à idade da noiva (dez anos), a consumação do matrimónio (ou seja, o ajuntamento de D. João e de D. Carlota, como então se dizia) ficou naturalmente adiada até que ela reunisse condições fisiológicas para tal. 
Durante o tempo de espera, D. João, que contava dezoito anos quando Carlota chegou, foi para ela uma espécie de irmão mais velho. O futuro rei (que, na altura, nem sonhava poder vir a sê-lo) simpatizou com a pequena esposa, achando-a espertíssima e intelectualmente precoce. Dava longos passeios com ela e, à noite, entre outros passatempos, jogavam às cartas ("ao burro", como ele deixou escrito).

Mas Carlota, que provinha de um ambiente onde podia conviver com outras crianças, tinha vindo parar a uma corte exclusivamente composta de gente crescida e - sob o ponto de vista da recém-chegada - na maior parte envelhecida.
A rainha, D. Maria I, sua sogra, ia nos 50 anos. O marido desta, D. Pedro, quase nos 68. Os cunhados, D. José e  D. Maria Benedita, príncipes do Brasil, contavam 24 e 39, respectivamente, e não tinham filhos.

(Nota - Príncipe do Brasil era o título nobiliárquico que então se dava ao herdeiro presuntivo da Coroa portuguesa. D. José era o filho mais velho de D. Maria I e, portanto, era ele o príncipe do Brasil, herdeiro da Coroa, e não D. João. Este só adquiriu o título, passando à condição de herdeiro, quando D. José morreu prematuramente, em 1788).

Palácio de Queluz, nas proximidades de Lisboa.
No seus jardins brincou e passeou Carlota Joaquina durante anos.
Foi aqui que nasceram quase todos os seus filhos,
incluindo Pedro, primeiro imperador do Brasil.

Carlota Joaquina, que na altura mal sabia falar português, deve ter-se sentido muito deslocada no seio da nova família, havendo quem nisso descubra a razão das diabruras que não demorou a pôr em prática. Mas tudo sugere que ela trouxera já de Espanha o gosto e o hábito de certos desmandos, o que faz suspeitar da educação e da permissividade de que desfrutara na corte espanhola.

D. João ralhava-lhe uma que outra vez, quando ela se portava mal. Mas, indiferente a isso e surda aos rogos de aias e educadores, a garota prosseguia com as tropelias. Levantava-se tarde, demorava eternidades para se vestir, barafustava que os vestidos e os sapatos lhe estavam apertados. Além disso, tinha opiniões bastante vincadas sobre as coisas e uma indomável tendência para tentar impô-las aos outros, ainda que se tratasse de adultos. (Conservaria algumas destas características de personalidade na vida adulta, o que ajuda a compreender muitas das intervenções políticas que protagonizou).

Se a pressionassem demasiado, Carlota sabia responder com insolência e língua solta, nomeadamente a D. Maria Ana, irmã solteira de D. Maria I, com quem embirrava amiúde.
À mesa, quando lhe apetecia, recusava usar o garfo e punha-se de súbito a comer com as mãos. Quando se irritava, ou por simples capricho, atirava comida à cara das camareiras e, para grande escândalo de quem assistia, corria de vez em quando a levantar-lhes as saias. Conta-se que, certo dia, não se sabe bem porquê, chegou a morder uma orelha ao pobre D. João, seu marido.

O padre Felipe de San Miguel, com quem ela comprovadamente simpatizava, nem por isso foi poupado. Se Carlota Joaquina amuasse a sério durante as aulas, não havia ninguém, nem mesmo o padre, que a pudesse arrancar a horas e horas de um silêncio obstinado e de muito mau presságio...


Estátua da rainha D. Maria I, no largo fronteiro ao palácio de Queluz.

Anna Michelini bem enviava cartas para Espanha dando nota do que se passava, mas isso pouco ou nada contribuía para pacificar a espanholita rebelde. Conhece-se, aliás, um comentário da mãe desta - a propósito de uns cachorros oferecidos à filha - bastante revelador sobre o que poderia esperar-se de Carlota: Pobres animaizinhos, depressa chegarão ao fim estando em tais mãos...

Em algumas ocasiões, e como última solução, recorria-se à autoridade de D. Maria I para meter nos eixos a pequena nora. A soberana usava quase sempre o mesmo expediente: ou Carlota se portava bem ou ficaria privada do divertimento favorito - longos e animados passeios pelos arredores de Queluz montada no seu burrico. Era, por regra, remédio santo...

Mas D. Maria I gostava muito de Carlota Joaquina e, enquanto conservou as faculdades mentais, exerceu sobre ela uma influência afectuosa e benfazeja. Apesar das acções de correcção que às vezes assumia, a soberana tratava-a por norma com generosa condescendência. E, na correspondência com os progenitores de Carlota, D. Maria era invariavelmente entusiástica e elogiosa em relação aos seus progressos.

Quando saía, a rainha fazia sempre questão de que a pequena nora a acompanhasse. Assim visitaram museus, conventos e a Casa Pia, assim passaram temporadas nas termas das Caldas da Rainha, assim cavalgaram juntas - a rainha na sua égua, Carlota no seu burrico - e assim foram pescar alegremente no mar de S. Martinho do Porto.
Ao que se sabe, Carlota Joaquina, tão cedo separada dos progenitores, retribuía o afecto da rainha e terá achado nela uma segunda mãe.


Carlota Joaquina


Mas, para seu mal e irremediável prejuízo, a infanta espanhola não beneficiou da companhia da rainha durante muito mais tempo. A partir de 1791 - tinha Carlota Joaquina 16 anos - D. Maria I começaria a sofrer de perturbações mentais, e, por essa razão, viria mesmo a ser afastada de  funções governativas no ano seguinte. Terá sido vítima, para além de alguma predisposição orgânica, de sucessivos desgostos (mortes do marido, Pedro, e do filho primogénito, José - em 1786 e 1788, respectivamente - aqui). Os ventos revolucionários que principiaram a soprar de França, em 1789, ter-lhe-ão vibrado o golpe final.

Entretanto, Carlota crescera e o seu organismo produziu finalmente as alterações fisiológicas indispensáveis ao ajuntamento com D. João. Os sinais de que amadurecera ocorreram em Fevereiro de 1790 e foram jubilosamente noticiados no país.
O primeiro encontro íntimo dos esposos aconteceu dois meses mais tarde, na noite de 5 para 6 de Abril, quando faltavam três semanas para que Carlota completasse 15 anos de idade. Nesse dia, ela foi solenemente conduzida ao quarto de D. João pela própria rainha, D. Maria - que vivia então os seus últimos tempos de sanidade -, e pela viúva do primogénito desta, D. José.

Carlota Joaquina dava assim início ao cumprimento da missão principal de qualquer mulher da sua condição numa monarquia hereditária: gerar filhos para a Coroa, garantindo a perpetuidade desta. E, apesar da relação mais ou menos turbulenta com D. João, a jovem espanhola cumpriria bem e com regularidade: com uma média de um parto a cada dois anos, ofereceu nove filhos à monarquia portuguesa.
Com aquele ajuntamento - também largamente publicitado na imprensa de Lisboa - findavam os tempos despreocupados e a menoridade pessoal e política de Carlota Joaquina.

A morte do primogénito de D. Maria I fizera de D. João o herdeiro da Coroa. Ele e Carlota eram, agora, o Príncipe e a Princesa do Brasil. Estavam quase a partir para um futuro repleto de incertezas, sobressaltos, aventuras e algumas grandes realizações que os tornariam inapagáveis - ainda que controversos - nas páginas da História de Portugal e do Brasil.


Handel
(Music  for the Royal Fireworks)


sábado, 10 de abril de 2021

Recordando tempos de D. João VI, rei de Portugal e do Brasil (3) - A infância de Carlota Joaquina, esposa do monarca (1.ª parte)

 

Carlota Joaquina aos 10 anos,
pouco antes de viajar para Portugal.


Carlota Joaquina, que nasceu em 25 de Abril de 1775, foi filha de Carlos de Espanha e da esposa deste, Luísa de Parma, príncipes das Astúrias.

Quando a casaram com o português D. João (filho da rainha D. Maria I de Portugal e futuro D. João VI) ela contava apenas dez anos de idade. O noivo tinha dezoito.

Nessa altura, o rei de Espanha era ainda Carlos III, avô de Carlota, e diz-se que era ela a sua neta preferida. À morte do soberano (1788), o príncipe das Astúrias subiria ao trono como Carlos IV.

Há testemunhos documentais sobre os derradeiros tempos de Carlota Joaquina em Espanha. Parece incontestável que era dotada de grande inteligência e de personalidade vincada. Aos nove anos saiu-se muito bem nos exames escolares a que foi submetida, durante quatro dias, perante a corte espanhola, revelando, nas respostas, sinais de surpreendente precocidade.

Com insuperável à-vontade, a infanta - que tinha como professor um padre de enorme erudição, Felipe Scio de San Miguel - discorreu sobre matérias tão diversas como religião, gramática, história, geografia e línguas (latim e francês).

No fim das provas houve festa na corte, com jogos variados, fogos-de-artifício e danças de salão. Tudo isto era minuciosamente comunicado à corte portuguesa, aumentando o "valor matrimonial" da infanta espanhola.


Carlota Joaquina
pouco antes de completar um ano de idade


Os testemunhos divergem quanto ao aspecto físico de Carlota Joaquina, e nem mesmo os seus muitos retratos são suficientes para uma conclusão definitiva (por vezes parecem representar pessoas diferentes). 

Um dos portugueses presentes na corte espanhola, porventura lisonjeador em excesso, fazia dela uma descrição favorável:
Alta, muito bem feita de corpo, as suas feições são perfeitas, dentes muito brancos, e, como há pouco tempo teve bexigas, ainda não se desvaneceram  as covas delas, é branca, corada, muito viva e atinada...

Já o embaixador francês em Portugal, marquês de Bombelles, usa de impiedoso humor para descrever Carlota Joaquina, uma menina de apenas dez anos (como de certa forma fará, vinte anos mais tarde, a mulher de Junot, após uma visita a Queluz - rever aqui).

Dizia o francês que os portugueses jamais perdoariam ao seu compatriota, marquês de Louriçal (responsável pelas negociações matrimoniais), o ter arranjado a D. João uma esposa como aquela, parecendo impossível que ela pudesse dar-lhe descendência.
E rematava com um requinte de crueldade, dizendo que um homem precisaria, para consumar aquele casamento ridículo, de ter fé, esperança e caridade: , para acreditar que a infanta era uma mulher; esperança, para poder alimentar expectativas de ter filhos dela; e caridade, para se resolver a fazê-los.


Os pais de Carlota Joaquina 
(Carlos IV de Espanha e Maria Luísa de Parma)


O marquês de Bombelles, na sua grosseira deselegância, pode ter tido alguma razão quanto à eventual ausência de atractivos físicos em Carlota Joaquina. Mas estava redondamente enganado quanto à capacidade da pequena espanhola para oferecer filhos ao marido e à nação portuguesa: deu-lhes nove, nem mais nem menos.
Alguns tornar-se-iam monarcas em diversos países. Um deles, Pedro, talvez o mais famoso de todos, viria a dar um grito de liberdade às margens de um riacho (Ipiranga) e tornar-se-ia o primeiro imperador do Brasil...

Fosse como fosse, dissessem os observadores e os diplomatas o que dissessem, os arranjos matrimoniais chegaram a bom porto e Carlota Joaquina, a 11 de Maio de 1785, deixou definitivamente o palácio onde nascera (Aranjuez), pondo-se a caminho de Portugal para se unir ao futuro rei D. João VI.

Acompanhavam-na, para a servirem no novo país, algumas personagens que a conheciam bem: o seu educador desde os 5 anos, padre Felipe de San Miguel; a italiana Anna Michelini, que zelaria pela sua alimentação, higiene e vestuário (e que manteria a mãe de Carlota informada sobre a vida desta em Portugal); e a irlandesa Emília O'Dempsy (camareira e professora de francês).

Palácio de Aranjuez, a meia centena de km de Madrid.
Aqui nasceu Carlota Joaquina, em 25 de Abril de 1775.
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Jean-Baptiste Lully
(Le Bourgeois Gentilhomme)
(Marche pour la Cérémonie des Turcs)



(Continua em 14 de Abril de 2021 - aqui)


terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

A democracia de Espanha no fio da navalha (Golpe militar de 23-Fevereiro-1981)

 


Pelas seis horas e vinte e três minutos da tarde, no dia 23 de Fevereiro de 1981 (completam-se hoje, precisamente, 40 anos), o tenente-coronel Antonio Tejero Molina, à testa de duas centenas de guardas civis, irrompeu de pistola em punho no Congresso dos Deputados de Espanha, em Madrid, e, de mão esquerda erguida num gesto teatralmente imperioso, ordenou que os presentes se atirassem imediatamente para o chão.

A maioria obedeceu, escondendo-se por trás das cadeiras em que assistiam à sessão daquele dia. As excepções foram muito poucas e, por isso, mais honrosas.

O que estava em curso com aquela inopinada invasão era uma tentativa (mais uma) de subversão da ordem constitucional há poucos anos implantada no país.



Francisco Franco, vencedor da Guerra Civil (1936-1939), morrera em Novembro de 1975, depois de ter governado a Espanha, com mão rija e implacável, durante perto de quatro décadas.

Deixara expressamente como sucessor, a título de rei, Juan Carlos I. Na mente do velho ditador, como na de muitos dos seus seguidores, o novo soberano - criado e educado dentro do regime, sob apertada vigilância - seria o melhor garante da sobrevivência do franquismo após o desaparecimento físico do seu criador.

Todavia, e ainda que as Forças Armadas e o aparelho do Estado continuassem a contar, ao mais alto nível, com elevado número de simpatizantes e saudosos de Franco, as coisas não se passaram como este havia planeado.

O rei Juan Carlos, agora Chefe de Estado, não assumiu o comportamento previsto. Optando pela via das reformas, conseguiu mesmo que o país fosse guinando, aos poucos, em direcção à democracia plena.

Os partidos políticos foram legalizados (incluindo o Partido Comunista), houve eleições legislativas (1977) e, por referendo popular, em Dezembro de 1978, a Espanha teve finalmente a sua Constituição democrática (que contemplava a monarquia parlamentar e abria caminho às autonomias das diversas regiões do país).

Os franquistas, de uma forma geral, e, particularmente, os que sobreviviam ainda nas Forças Armadas e nos centros de poder civil, não apreciaram a evolução dos acontecimentos (sobretudo a legalização dos comunistas e as previsíveis autonomias regionais). E alguns resolveram agir.

O vice-presidente do Governo, tenente-general Gutiérrez Mellado (de costas, agarrado por guardas), tenta arrojadamente opor-se aos golpistas. À direita, semi-encoberto, Tejero Molina contempla a cena e ordena que Mellado se torne a sentar. À esquerda, nas escadas, o presidente do Governo, Adolfo Suárez (que estava demissionário na altura), precipita-se para o defender. Foi então que se ouviram disparos que lançaram o pânico entre os deputados.

O tenente-coronel Tejero Molina, da Guarda Civil, era um desses descontentes, inconformados com a desagregação do regime que saíra da Guerra Civil.

Franquista até à medula, impulsivo e adepto de intervenções violentas, já tinha estado anteriormente implicado numa tentativa de golpe que lhe valera uns meses de prisão.

Mal saiu da cadeia regressou à actividade conspirativa, a qual haveria de culminar com esta invasão do Palacio de las Cortes e com o sequestro dos deputados e ministros ali presentes.


Os três principais protagonistas do golpe de 23 de Fevereiro: Tejero, Del Bosch e Armada.
 
Mas Tejero era apenas um homem de mão do golpe militar. Como se provaria em tribunal, por trás dele estavam duas figuras poderosas das Forças Armadas: os generais Alfonso Armada e Jaime Milans del Bosch.

Armada fora, há muitos anos, instrutor militar e preceptor de Juan Carlos I. Mais recentemente, exercera o cargo de secretário-geral da Casa do Rei, sendo considerado bastante próximo do soberano.

Milans del Bosch era capitão-general da Região Militar de Valência e dispunha de poder militar considerável (milhares de homens e dezenas de tanques). Enquanto Tejero levava a cabo a intervenção no Palacio de las Cortes, ele fez sair os seus tanques em direcção a Madrid.

Nessa altura, Del Bosch contava com a suposta influência de Alfonso Armada junto do rei Juan Carlos, por forma a obter a adesão ao golpe das restantes Regiões Militares de Espanha.

Tanques de Milans del Bosch rumam a Madrid.

Tejero Molina nunca fez segredo de que se tratava de uma figura secundária (embora importante) da acção em curso. Aliás, nas diversas intervenções que fez perante os deputados, naquele dia 23, anunciou que em breve receberiam a visita de um militar de prestígio que tomaria o poder nas suas mãos.

Tudo indica que os revolucionários se deixaram conduzir por alguns equívocos, contraditórios entre si, que condenariam o golpe ao malogro.

Alfonso Armada pensava numa "revolução suave", em que ele próprio ficaria à frente de um governo integrado pelos dirigentes dos diversos partidos políticos (com socialistas, comunistas e gente de direita).

Milans del Bosch não agia nesse comprimento de onda: adepto de Franco, tal como Tejero, cogitava na imposição pura e simples, pela força, de um governo militar.

Tejero Molina, ideologicamente mais próximo de Del Bosch, diria mais tarde, quando Armada se avistou com ele no Palacio de las Cortes, que não se tinha arriscado daquela maneira para abrir as portas a um Governo integrado por socialistas e comunistas.

O rei Juan Carlos I fala aos espanhóis ao princípio da madrugada de 24 de Fevereiro de 1981. O golpe militar tinha falhado.

Mas o que fez gorar por inteiro as expectativas dos golpistas foi a atitude  do rei Juan Carlos. Não obstante algumas hesitações e ambiguidades, o soberano decidiu opor-se frontalmente, através de várias iniciativas, à acção revolucionária.

Em primeiro lugar, não autorizou que Alfonso Armada se dirigisse aos capitães-generais das Regiões Militares (o general pretendia fazê-lo em nome do rei, muito provavelmente para os convidar a aderir ao golpe).
Assim, quem falou com esses chefes militares foi o próprio Juan Carlos, e de todos obteve a garantia de que se manteriam nos quartéis sem dar qualquer apoio ao avanço de Del Bosch.

Em segundo lugar, o rei contactou directamente o general Milans del Bosch, que se encaminhava para Madrid, e ordenou-lhe que retornasse aos aquartelamentos de Valência. A princípio renitente, e depois de algumas insistências do rei ao longo da madrugada, o general acabou por obedecer.

Mas o mais importante foi porventura a mensagem que Juan Carlos dirigiu aos espanhóis (transmitida pela TV à 1h 14m da madrugada de 24 de Fevereiro). As palavras do rei precipitaram definitivamente o falhanço do golpe militar:

A Coroa, símbolo da permanência e da unidade da pátria, não pode de nenhuma maneira tolerar que alguns, por meio de actos ou atitudes, possam travar pela força o processo democrático que a Constituição consagrou através da livre expressão do povo espanhol.

Na manhã de 24 de Fevereiro, até o impulsivo Tejero Molina percebeu que tudo estava perdido. Dezassete horas depois do sequestro, mandou soltar os deputados e governantes que tinha em seu poder e resolveu render-se.
A única coisa que pediu é que não fossem julgados os que, com patente inferior à de tenente, o tinham acompanhado naquela desesperada aventura.

Tejero Molina, há pouco mais de um ano (Outubro de 2019), no cemitério de Mingorrubio onde Francisco Franco foi inumado após ter sido retirado da sua sepultura no Vale dos Caídos.

Em 1983, os três principais responsáveis do golpe - Tejero, Del Bosch e Armada - foram condenados a 30 anos de prisão, mas nenhum deles cumpriria integralmente a pena (foram ainda condenadas, embora a penas inferiores, cerca de três dezenas de pessoas).
Alfonso Armada saiu em liberdade no ano de 1988, e Del Bosch em 1990.

O último a ser libertado, em Dezembro de 1996, foi Tejero Molina. Contando actualmente 88 anos de idade, jamais enjeitou as convicções políticas e a sua admiração por Francisco Franco. 

Quando, em Outubro de 2019, o antigo ditador foi retirado do seu túmulo, no Vale dos Caídos, para receber nova sepultura em El Pardo-Mingorrubio (arredores de Madrid), Tejero fez questão de comparecer no cemitério para acompanhar a cerimónia.

Provando que muitas das feridas da Guerra Civil (aqui) continuam por fechar no tecido político espanhol, o antigo golpista foi acolhido com aplausos e expressões de júbilo por parte de algumas centenas de pessoas. Gritaram continuadamente o seu nome e prometeram-lhe obediência em caso de necessidade: Às suas ordens, meu coronel!
Chamaram-lhe, ainda, Tejero, grande de Espanha.

Nota Final - Parte da história daquele 23 de Fevereiro de 1981 (o 23-F, como dizem os espanhóis) continua mergulhada em sombras e interrogações sem resposta. Muitos documentos da época continuam classificados e, portanto, fora do alcance dos investigadores, tal como se acham interditas as gravações das conversas telefónicas entre os principais intervenientes.
Quando - e se - algum dia vierem a público, será talvez possível esclarecer alguns comportamentos menos conhecidos, pondo fim, de uma vez por todas, às dúvidas, suspeitas e controvérsias que se mantêm há quatro décadas.

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España
(Compositor: Emmanuel Chabrier)
(Interpretação: BBC Simphony Orchestra)
(Maestro: Leonard Slatkin)