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quarta-feira, 21 de maio de 2025

Lili 'Uokalani - A última rainha do Havaí (Hawai'i) independente

Rainha Lili 'Uokalani (1838-1917)
(A imagem representa-a em Londres,
onde assistiu ao jubileu da rainha Vitória).


O Havaí é um dos 50 Estados americanos.

Foi reino formalmente independente até 1893, ano em que um golpe de estado perpetrado por empresários e residentes euro-americanos colocou fim à monarquia.

Em 1898, os Estados Unidos anexaram o arquipélago, que passou a ser um seu território e assim se manteve por cerca de 60 anos.

Em 1959, após um processo de referendo entre a população, o Havaí tornou-se, finalmente, um dos 50 estados dos Estados Unidos da América.


Estátua de Lili 'Uokalani, em Honolulu (Havaí)


A última monarca do reino de Havaí foi Lili 'Uokalani, que sucedera a seu irmão David Kalãkaua em 1891.

Deposta em 1893 pelo referido golpe de estado, foi detida em Janeiro de 1895 e condenada a cinco anos de prisão com trabalhos forçados.
A sentença foi contudo comutada em detenção domiciliária e Lili 'Uokalani acabaria por mudar-se para a residência Washington Place (Honolulu), onde viveria discretamente até à sua morte, em 1917.

Em 1993, exactamente cem anos depois deste episódio brutal, os Estados Unidos assumiram uma reparação pública pelo sucedido.
Numa Resolução aprovada pelo Congresso e assinada pelo presidente Bill Clinton, reconheceu-se que a deposição de Lili fora ilegal e que o golpe ocorrera com a participação activa de cidadãos dos Estados Unidos, sendo por isso apresentado ao povo havaiano um pedido de desculpas formal.

Tratou-se de um acto simbólico, mas moral e historicamente justo para com a memória de Lili 'Uokalani, a última soberana.


A rainha nos seus últimos tempos, na residência de Washington Place, em Honolulu.


Lili 'Uokalani escreveu uma autobiografia poucos anos depois de ter sido deposta (História do Havaí pela Rainha do Havaí).

Distinguiu-se também pela autoria de várias composições musicais de notável inspiração.

A mais famosa de todas tem por título Aloha 'Oe (Adeus a Ti), ainda hoje ouvida com muitíssimo agrado.




Nessa canção maravilhosa evoca-se a triste e comovente despedida de dois apaixonados:

Adeus a ti, adeus a ti,
dá-me um abraço amoroso antes que eu parta,
até nos encontrarmos novamente;
doces memórias voltam para mim
trazendo lembranças frescas do passado;
aqui habitam as aves do amor
e eu saboreio o mel dos teus lábios...

Autora: Rainha Lili 'Uokalani 
(Aloha 'Oe)
(Adeus a Ti)
A magnífica interpretação deve-se ao 


Mapa do Havaí (Hawai'i):

Na ilha de Oahu destaca-se a capital, Honolulu (onde nasceu o presidente norte-americano Barack Obama), e, também, Pearl Harbor, atacada pelos Japoneses em 1941 (um acto que provocaria a entrada imediata dos Estados Unidos na 2.ª Guerra Mundial).

sábado, 29 de março de 2025

D. Pedro III de Portugal, pai de D. João VI - O "Capacidónio"






D. Pedro III foi Rei Consorte de Portugal, por ter casado com a herdeira do trono, a rainha D. Maria I (mãe de D. João VI).

Recorde-se que ela viria a falecer em 1816, no Brasil, com as faculdades mentais gravemente afectadas,  no período em que a Corte lusitana se instalara, para escapar a Napoleão Bonaparte, na cidade do Rio de Janeiro (1808-1821).

D. Pedro era tio de D. Maria I, por ser irmão do pai desta (o rei português D. José I, que tivera o famoso Marquês de Pombal como principal ministro).

Era, também, bastante mais velho do que a esposa e sobrinha (quase dezoito anos de diferença).

A historiografia não foi muito generosa para com esta figura relativamente apagada. Puseram-lhe em realce a beatice e duvidaram-lhe amiúde da inteligência e da capacidade governativa.

Quanto ao primeiro aspecto, Oliveira Martins chegou ao ponto de lhe chamar "sacristão"…


Rainha D. Maria I, de Portugal (1734-1816)
e o tio D. Pedro III, seu esposo e Rei Consorte (1717-1786)


Segundo os testemunhos disponíveis, D. Maria I terá sempre respeitado, e até amado, este seu tio e marido. Desejando pô-lo em destaque, mandou cunhar moedas de ouro com as efígies de ambos (eram as célebres peças de duas caras).

Tratou também de o convocar para reuniões de governo, onde se debatiam negócios públicos e inúmeras pretensões de uma multidão de requerentes.

Mas ele, de facto, não possuía bagagem intelectual para uma colaboração válida. Aflito, socorria-se, então, de um bordão, uma frase feita, que aplicava sempre que lhe solicitavam opiniões sobre uma eventual solução: Eu não vou por aí…

Isto não significava que ele pretendesse de alguma forma opor-se a esta ou àquela medida: queria apenas dizer que não tinha outra resposta. Limitava-se, assim, a pôr um ar grave e lá ia repetindo: Eu não vou por aí…
E dali não passava.




A razão da sua alcunha mais famosa teve origem em algo que ele também repetia com frequência.

Certa ocasião, D. Pedro terá escutado sobre certo indivíduo que este era capaz e idóneo para exercer determinado cargo.

Soando-lhe bem o que ouviu, passou a utilizar a expressão para qualificar quaisquer candidatos que lhe agradassem.

Porém, juntando incorrectamente as palavras que lhe tinham chegado aos ouvidos, dizia que eles eram capacidónios para os lugares pretendidos. Fulano é capacidónio para… Beltrana é capacidónia para…

E assim ficou D. Pedro III para todo o sempre lembrado como o Capacidónio

Fosse como fosse, D. Maria I foi-lhe dedicada até ao fim. Acredita-se, até, que a morte de D. Pedro III (em 1786) e a do primogénito e herdeiro de ambos, D. José (aos 27 anos, no ano de 1788) contribuíram decisivamente para o agravamento da instabilidade mental que havia de a conduzir à loucura.

A morte do primogénito D. José e a demência de D. Maria I acabariam por atirar para a ribalta um outro filho da rainha e de D. Pedro III: D. João, que todos conhecemos, primeiro, como Príncipe Regente, e, depois, como o rei D. João VI de Portugal, Brasil e Algarves...


Moeda de ouro
com as efígies de D. Maria I e D. Pedro III


Oiça, seguidamente, uma peça musical de Carlos Seixas,
compositor português da primeira metade do século XVIII:



sexta-feira, 21 de março de 2025

Tchaikovsky e a invasão da Rússia por Napoleão Bonaparte ("1812" - Abertura Solene)



Napoleão e os seus soldados


Em Junho de 1812, Napoleão invadiu a Rússia com o seu Grande Exército (mais de meio milhão de soldados).

Seria uma campanha trágica para ele, e ficaria assinalando o início da curva descendente de uma invulgar carreira política e militar.


Napoleão na batalha de Borodino (Rússia)


Após sucessivas retiradas do exército russo, acompanhadas de uma prática de terra queimada diante do avanço dos franceses, os dois exércitos encontraram-se em Borodino, uma pequena aldeia a pouco mais de 100 quilómetros de Moscovo.

As tropas do czar da Rússia, Alexandre I, eram comandadas pelo astuto general Mikhail Kutuzov.


O general russo, Kutuzov, na batalha de Borodino


A batalha ocorreu no dia 7 de Setembro de 1812.

O número de baixas, ainda hoje muito discutido, foi, em qualquer hipótese, elevadíssimo.

Uma estimativa relativamente credível aponta para cerca de 30.000 mortos franceses (em 120.000 homens empenhados nos combates), contra 60.000 baixas russas (em 150.000 combatentes).


Batalha de Borodino

Veja seguidamente a reconstituição da carga vitoriosa da cavalaria francesa
(Extraído do filme "Guerra e Paz", de 1956):




O triunfo na batalha tem sido atribuído aos franceses. Mas tratou-se de uma vitória de Pirro, pois as forças de Kutuzov conseguiram retirar-se em boa ordem e o (relativo) êxito de pouco aproveitou aos invasores.

Napoleão entrava pouco depois em Moscovo, encontrando a cidade devorada por incêndios e deserta de população e de governantes.

Em vão esperou o imperador francês pela rendição do czar da Rússia.

Pelo contrário, o inverno forçá-lo-ia a uma retirada dramática, em que o gelo, o frio, a fome e as constantes flagelações dos russos lhe dizimaram praticamente o que restava do Grande Exército.

Em Dezembro de 1812, a Rússia ficou livre do invasor.


Napoleão - Retirada da Rússia


Foi esse triunfo histórico que o compositor Tchaikovsky (1840-1893) quis celebrar com o seu "1812".

Esta famosa Abertura Solene pode ser encarada como uma representação musical da campanha napoleónica na Rússia.

O hino religioso inicial evoca as orações do povo russo nas igrejas, implorando a intervenção divina contra o invasor.

As notas seguintes expressam a iminência dos combates e a preparação para a batalha, numa combinação de desespero e de transbordante entusiasmo, sublinhada pelos acordes distantes da Marselhesa, que evocam o avanço francês (ouvir, abaixo, por exemplo, a partir de 4' 30''  e 12' 10'').

A Marselhesa impõe-se em Borodino, ao passo que, mais adiante, se torna preponderante a música tradicional russa.

No momento da tomada de Moscovo, quando tudo parece perdido, o hino religioso é outra vez escutado, significando a intervenção divina (que traz um inverno rigoroso para o qual os franceses não se achavam preparados).

No final, apoteótico, disparam-se canhões em sinal de triunfo, enquanto repicam os sinos das igrejas de uma Rússia enfim libertada.

Chamo a vossa atenção para a força vibrante e telúrica desses derradeiros acordes (a partir de 13' 42'').

Para ouvir este genial "1812" escolhemos uma magnífica interpretação da Orquestra Sinfónica de Gothenburg (Suécia) dirigida pelo maestro Neeme Järvi:


sábado, 8 de fevereiro de 2025

Nos tempos de D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal - A Morte de Gonçalo Mendes da Maia, o "Lidador" (1170)

 



No ano de 711, tropas muçulmanas do Norte de África, comandadas pelo berbere Tárique, deram início à invasão da Península Ibérica, destroçando em pouco tempo os exércitos visigodos que se lhes opuseram.
O domínio islâmico da Península manteve-se durante quase oito séculos, embora o território abrangido se fosse reduzindo ao longo dos séculos por força do processo da reconquista cristã.

Quando Tárique chegou, Portugal ainda não existia. Mas, desde o momento em que se firmou como nação independente a partir do pequeno Condado Portucalense, não mais deixou de ambicionar a dilatação das suas fronteiras. Participando no esforço da reconquista, como faziam Leão, Castela e Aragão, o país foi adquirindo a forma que tem hoje em pouco mais de cem anos, terminando a sua expansão no Algarve, a sul, no ano de 1249. [Pode relembrar as datas mais relevantes da independência de Portugal - aqui]

O episódio que hoje publicamos, com base na adaptação de um escrito de Alexandre Herculano(*), situa-se em 1170 e insere-se no referido processo de reconquista territorial. Decorre numa zona fronteiriça então precária, nas imediações de Beja, cidade actualmente pertencente ao Alentejo português.

Nele se narra a morte em combate de um dos grandes guerreiros de Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal: Gonçalo Mendes da Maia, denominado o Lidador.

(*) Alexandre Herculano - Lendas e Narrativas - Tomo II.
O texto foi actualizado, reordenado e adaptado na Torre da História Ibérica.
As quatro ilustrações que se seguem aos mapas resultam de trabalhos de banda desenhada de Eduardo Teixeira Coelho e Raul Correia.
A ultima pintura é da autoria de Roque Gameiro.


Expansão territorial portuguesa a partir do Condado Portucalense.


"Num dia do mês de Julho, duas horas depois da alvorada, no ano de 1170, tudo estava em grande silêncio dentro da cerca de Beja, no Alentejo. Batia o sol nas pedras esbranquiçadas dos muros e torres que defendiam a cidade. Ao longe, pelas imensas campinas vizinhas, ondeavam as searas maduras, cultivadas por mãos de muçulmanos para os seus novos senhores cristãos.

Nestas terras disputadas, a cruz impusera-se outra vez ao crescente; os topos das mesquitas convertiam-se em campanários de igrejas e a voz do almoadém era substituída pela toada dos sinos que chamavam à oração. Era esta a resposta dada pela raça goda aos filhos de África e do Oriente que diziam, mostrando os alfanges: “é nossa a terra de Espanha”. O dito árabe foi desmentido; mas a resposta gastou oito séculos a escrever-se.

Nesta luta de vinte gerações andavam lidando as gentes do Alentejo. O servo mouro olhava todos os dias para o horizonte, a sul, onde se viam as serranias do Algarve: de lá esperava ele a salvação ou, ao menos, a vingança. E este ameno dia de Julho devia ser um desses momentos por que suspirava o muçulmano: Almoleimar, o famoso guerreiro mouro, subira com os seus cavaleiros às terras de de Beja.

Como era Portugal um pouco antes deste episódio.
Beja foi conquistada aos mouros em 1162.

Nesse dia, em que Gonçalo Mendes da Maia, o velho fronteiro de Beja -  conhecido por O Lidador -, cumpria os noventa e cinco anos de idade, trinta fidalgos portugueses corriam à rédea solta por essas mesmas campinas de Beja. Trinta, não mais, eram eles, mas andavam por trezentos os homens de armas, os escudeiros e os pajens que os acompanhavam.

Entre todos avultava em robustez e grandeza de membros o Lidador, cujas barbas brancas lhe ondeavam, como flocos de neve, sobre o peitoral da cota de armas; a seu lado, cavalgava também o valente Lourenço Viegas, a quem, pelos espantosos golpes da sua espada, chamavam o Espadeiro.

Ao largo, muito ao largo dos muros de Beja, vai a atrevida cavalgada à procura de mouros; mas, por enquanto, não se avistam senão os topos pardo-azulados das serras do Algarve, que parecem fugir tanto quanto os cavaleiros avançam. Nem um pendão mourisco, nem um albornoz branco alvejam ao longe.

Os espiões cristãos seguem na frente da linha dos cavaleiros, correm, cruzam para um e outro lado, embrenham-se nos matos e transpõem-nos em breve. A terra que pisam é já dos mouros. Tinha passado meia hora.

Por mandado do velho fronteiro de Beja, um guerreiro acercou-se à rédea solta de um bosque extenso que surgia à direita. Pouco, porém, progrediu: uma flecha despedida dos bosques sibilou no ar. O homem gritou por Jesus: a flecha tinha-se-lhe embebido no lado. O cavalo parou de repente, e ele, erguendo os braços ao ar, com as mãos abertas, caiu de bruços, tombando no chão.



"A cavalo! a cavalo!" — bradou a uma voz toda a companhia do Lidador. Uma gritaria medonha soou ao mesmo tempo, vinda do pinhal da direita. “Alá! Almoleimar!” — era o que diziam os gritos.

Enfileirados em extensa linha, os cavaleiros muçulmanos saíram do escuro arvoredo que os encobria. O seu número excedia cinco vezes o dos soldados da cruz. As suas armaduras lisas e polidas contrastavam com a rudeza das dos cristãos, apenas defendidos por pesadas cervilheiras de ferro e por grossas cotas de malha do mesmo metal. Mas as lanças destes eram mais robustas e as suas espadas mais volumosas do que as cimitarras mouriscas.

Como longa fita de muitas cores, a extensa e profunda linha dos cavaleiros mouros sobressaía na veiga entre as searas que cobriam o campo. Diante deles, os trinta cavaleiros portugueses, com os seus trezentos acompanhantes, esperavam o brado de atacar, num combate de um contra dez.

As armas estavam preparadas:  o Lidador bradara por Santiago, e o nome de Alá soara num só grito por toda a fileira mourisca. Chocaram-se as hostes finalmente, como duas muralhas sacudidas por violento terramoto. As lanças, batendo em cheio nos escudos, tiravam deles um som profundo, que se misturava com o estalar das que voavam despedaçadas. Do primeiro encontro muitos cavaleiros vieram ao chão, de um lado e do outro.


Gonçalo Mendes da Maia avistou de súbito o terrível Almoleimar. As lanças dos dois contendores haviam-se feito em pedaços no choque inicial, pelo que o alfange do mouro se cruzou com a espada toledana do fronteiro de Beja.

Cerrando os dentes com força, o chefe mouro descarregou um golpe tremendo sobre o seu adversário. O Lidador recebeu-o no escudo, onde o alfange se embebeu por inteiro, e procurou ferir Almoleimar entre o fraldão e a couraça; mas a pancada falhou, e a espada desceu pelo coxote do mouro, que já desencravara o alfange.

Almoleimar atingiu a cervilheira de Gonçalo da Maia com violência. O velho fronteiro vacilou, deu um gemido, e os braços ficaram-lhe pendentes. A sua espada teria caído no chão se não estivesse presa ao punho do cavaleiro por uma cadeia de ferro. O ginete, sentindo as rédeas frouxas, fugiu pelo campo, a todo o galope. Mas o Lidador tornou a si: um forte puxão avisou o animal de que o seu cavaleiro não morrera.



À rédea solta, lá volta ao combate o fronteiro de Beja. Escorre-lhe o sangue pelos cantos da boca. Traz os olhos torvos de ira. Os dois inimigos correram um para o outro. As espadas reluziram no ar. Mas o golpe do Lidador era simulado, e o ferro, mudando de movimento no ar, foi bater de ponta no gorjal de Almoleimar, que cedeu à violenta estocada; e o sangue, saindo às golfadas, cortou a derradeira maldição do muçulmano.

Todavia, o golpe deste também não errara o alvo: vibrado com ânsia, colhera pelo ombro esquerdo o velho fronteiro e, rompendo a grossa malha do lorigão, penetrara na carne até ao osso. Ainda mais uma vez a mesma terra bebeu o sangue godo misturado com sangue árabe.

O Lidador caiu amortecido. Um dos seus homens de armas voou a socorrê-lo. Mas o último golpe de Almoleimar fora o brado da sepultura para o fronteiro de Beja: os ossos do seu ombro estavam como triturados, e as carnes rasgadas pendiam-lhe para um e para outro lado envoltas nas malhas descosidas do lorigão.

O Lidador foi posto em cima de umas andas feitas de troncos de árvores, e quatro escudeiros que restavam vivos dos dez que consigo trouxera tinham-no transportado para a cauda da cavalgada. Quando ele caiu, o grosso da hoste moura, vencida, fugia já para além do pinhal. Mas os mais valentes pelejavam ainda à roda do seu capitão moribundo. A vitória não saíra barata aos portugueses. Viam perigosamente ferido o seu velho capitão e tinham perdido alguns dos melhores cavaleiros e a maior parte dos homens de armas.



Foi nesta altura que se viu erguer ao longe uma nuvem de pó, que voava rápida para o lugar da batalha. Os mouros que fugiam deram meia volta e gritaram: Ali-Abu-Hassan! Só Alá é Deus, e Maomé o seu profeta!

Era, com efeito, Ali-Abu-Hassan, rei de Tânger, no norte de África, que chegava com mil cavaleiros em socorro de Almoleimar. Cansados de combater, reduzidos a menos de metade e cobertos de feridas, os cavaleiros de Cristo invocaram o seu nome e fizeram o sinal da cruz. O Lidador perguntou com voz fraca a um pajem que barulheira era aquela. “Os mouros foram socorridos por um grosso esquadrão”, respondeu tristemente o pajem. Gonçalo Mendes da Maia cerrou os dentes com força e levou a mão à cinta: buscava a sua boa espada toledana.

“Pajem, quero um cavalo. Onde está a minha espada?” O pajem deu-lhe a espada e foi pelo campo buscar um ginete, dos muitos que por ali vagueavam já sem dono. Quando voltou com ele, o Lidador, pálido e coberto de sangue, estava em pé. O pajem ajudou-o a montar a cavalo. E lá foi de novo o velho fronteiro de Beja! Parecia um espectro erguido em campo de finados, dirigindo-se para onde mais acesa andava a peleja.

Os cristãos afrouxavam diante daquela nova multidão de infiéis. Dois cavaleiros, porém, com vulto feroz e as armaduras crivadas de golpes, sustinham grande parte do peso da batalha. Eram estes o Espadeiro e Mem Moniz.

Quando o fronteiro assim os viu, algumas lágrimas lhe caíram pelas faces. Esporeando o ginete, com a espada erguida, abriu caminho por entre infiéis e cristãos e chegou aonde os dois, cada um com seu montante nas mãos, se batiam rodeados de inimigos. "Bem vindo, Gonçalo Mendes! — disse Mem Moniz. — Quiseste assistir connosco a esta festa de morte?"



E os três cavaleiros atiraram-se rijamente aos mouros. Depois de deixar amolgadas muitas armaduras mouriscas, o Lidador manejou pela última vez a espada e abriu o elmo e o crânio de um cavaleiro inimigo. O violento abalo que experimentou fez-Ihe contudo rebentar em torrentes o sangue da ferida que recebera das mãos de Almoleimar e, cerrando os olhos, caiu morto ao pé do Espadeiro e de Mem Moniz. Repousou, finalmente, Gonçalo Mendes da Maia de oitenta anos de combates!

Já a este tempo cristãos e mouros haviam descido dos cavalos e pelejavam a pé. Aumentava a crueza da batalha. Entre os cavaleiros de Beja espalhou-se logo a notícia da morte do seu capitão, e não houve olhos que ficassem enxutos. “Vingança!”, bradou o Espadeiro com voz rouca e rangendo os dentes.

Descobrindo Ali-Abu-Hassan ali perto, encaminhou-se para ele e atingiu-o com o seu montante. O elmo do rei mouro faiscou, voando em pedaços pelos ares, e, com o crânio fendido, ele tombou para sempre. "Lidador! Lidador!", gritou Lourenço Viegas, com voz comovida. As lágrimas misturavam-se-lhe nas faces com o suor, com o pó e com o sangue do adversário. E não pôde dizer mais nada.

Tão espantoso golpe, que implicou a perda do seu líder, aterrou os mouros. Os portugueses seriam já apenas sessenta, entre cavaleiros e homens de armas, mas continuavam a pelejar como desesperados. A morte de Ali-Abu-Hassan foi, todavia, o sinal de debandada para os muçulmanos.

Os portugueses, senhores do campo, celebraram com prantos a vitória. Poucos havia que não estivessem feridos; e nenhum que não tivesse as armas danificadas. O Lidador, e os demais cavaleiros que naquela memorável jornada tinham acabado os seus dias, foram conduzidos a Beja atravessados em cima dos ginetes."



Estátua de Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador, na cidade de Beja (Alentejo - Portugal)



domingo, 5 de janeiro de 2025

Cantares de Venezuela - "MONTILLA" (ou: A Morte do "Tigre de Guaitó")


General venezuelano José Rafael Montilla (1859-1907)

Ao estado a que chegou Montilla!
Ao estado a que ele chegou...
Um homem tão valoroso
y a Montilla lo han matado!


**********


"Montilla" é uma peça musical, de anónimo compositor, pertencente ao rico folclore venezuelano. Surgiu nos princípios do século XX.

Muita gente a ouve, a canta e a dança sem fazer a mais pequena ideia de que nos seus versos se contempla a vida e o trágico fim do general venezuelano José Rafael Montilla, também conhecido, pela sua bravura, como "El Tigre de Guaitó".

José Rafael Montilla nasceu em San Miguel, estado de Trujillo (Venezuela) no dia 16 de Setembro de 1859, sendo filho de Custodio Montilla e de Juana Natividad Petaquero.

Desde muito novo se distinguiu pela determinação e valentia com que defendia os camponeses oprimidos do seu país, cujas reivindicações apoiava.

Durante as duras batalhas em que participou, do lado dos Liberais, ascendeu a general perante o delírio dos soldados que o acompanhavam.

Recolhido a certa altura na povoação de Guaitó (estado de Lara, no noroeste do país), determinou o que considerava uma justa repartição de terras por aqueles que as trabalhavam. Em breve se tornou uma dor de cabeça - e um alvo - para os Conservadores.


Vários presidentes venezuelanos tentaram a sua prisão, mas o "Tigre de Guaitó" mostrou-se indomável.

Mudando de táctica, Cipriano Castro ofereceu-lhe importantes cargos públicos. O objectivo consistia em afastá-lo das regiões em conflito, mas Montilla cedo se apercebeu da armadilha e recusou.


Venezuela com os seus estados


A partir dessa altura, intensificou-se o assédio com que procuravam capturá-lo ou, mesmo, eliminá-lo fisicamente. Contra ele marcharam forças poderosas, sobretudo a partir do sul, dos estados de Barinas, Cojedes e Portuguesa.

Mas Montilla resistiu e não foi aprisionado. Juan Vicente Gómez ofereceu-lhe garantias para que se entregasse, mas o general, naturalmente desconfiado, tornou a recusar.

Finalmente, no dia 21 de Novembro de 1907, chegou ao seu termo a vida aventurosa de José Rafael Montilla, então com 48 anos de idade.

Foi apanhado à traição por um dos seus próprios soldados, quando, à beira de um curso de água, se preparava para matar a sede provocada por uma dura marcha.

O soldado, um tal Jacinto Canelones, desferiu-lhe no pescoço, pelas costas, um terrível golpe de machete (espécie de catana) que o decapitou.

Uma das versões do episódio refere que o "Tigre de Guaitó" teve ainda oportunidade de disparar sobre o seu assassino, matando-o. Mas é impossível confirmar tal facto.


Entrada do povoado de Guaitó (Venezuela)

Nas horas que se seguiram, milhares de pessoas, em esmagadora maioria camponeses, convergiram para o pequeno povoado de Guaitó a fim de homenagearem o falecido no seu velório.

Vieram de Guárico, Trujillo, Portuguesa e outros estados da parte ocidental da Venezuela. Uma enorme procissão de gente humilde acompanhou o féretro do general até ao cemitério.

Muitos entoavam canções que enalteciam as proezas do seu defensor, e diz-se que foi nessa altura que nasceu a peça musical "Montilla", canção que viria a conhecer diversas versões.

As três que se apresentam seguidamente são, talvez, as mais conhecidas, contribuindo para a lenda em que se transformou a turbulenta carreira do "Tigre de Guaitó".

A primeira é a de Lilia Vera, famosa cantora e activista venezuelana.

A segunda pertence a Illapu, conhecida banda chilena de folclore andino.

A terceira é cantada pela mezzo-soprano Luciana Mancini (descendente de chilenos, nascida na Suécia), magistralmente acompanhada pelo grupo L'Arpeggiata (dirigido pela austríaca Christina Pluhar).

No final, apresenta-se a letra mais divulgada nas várias versões de "Montilla" (a ordem das quadras é por vezes trocada em diferentes interpretações).


(I)





(II)


(III)


Letra:
Vengo a trovar este golpe
que un amigo me mandó
pa' que mañana o pasado
hagan lo mismo con yo.

Ahí viene Montilla a dar la pelea
y viene diciendo, morena: la bala chirrea
El armó su gente con la artillería
y prendió los fuegos, morena, al Ave María.

Al estado en que llegó Montilla,
al estado en que ha llegado.
Un hombre tan valeroso
y a Montilla lo han matado.

Dicen que Montilla viene,
dicen que Montilla va,
yo digo que eso es mentira
porque yo vengo de allá.

El que me dijera negro
yo no me enojo por eso
porque negro tengo el cuero
pero blanco tengo el hueso.

Un veintiuno de noviembre
de mil novecientos siete
muere el general Montilla
asesinado a machete.