domingo, 31 de maio de 2020

D. João V, rei de Portugal - Majestoso, Esbanjador, Mulherengo e Freirático (2.ª Parte)


D. João V, Rei de Portugal de 1707 a 1750
(Continuação do post de ontem)


"… Mas não estava satisfeito ainda o grande rei.
Queria também monumentos, e traçou uma basílica maior do que o reino.
O convento de Mafra devorou, em dinheiro e gente, mais do que Portugal valia.
Por fim o rei conseguira o cúmulo da sua ambição; e a mania dos monumentos, que lavrara em França com Luís XIV, transportada para cá, erguia de uma só vez, num lugar único, uma montanha fria de pedra.

Mafra, vasto abrigo mortuário, povoado de frades negros, era ao mesmo tempo o palácio do moderno Salomão.
50 000 homens andaram nessa obra, como escravos; e ao lado a forca ameaçava os que protestassem.

As oficinas de Roma e de Veneza, de Milão e de Génova, da Flandres e da França tinham fornecido as alfaias preciosas, os lustres e candelabros, os cancelos de bronze arrendado, as lâmpadas e tocheiros, os relógios e carrilhões.

Nunca se vira ópera tão estrondosa de músicas, tão brilhante de ouros, pedrarias, luzes, púrpuras, rendas, sedas!.

Convento de Mafra

No meio da comédia burlesca da devoção, a desordem, a corrupção eram enormes.
Tudo se consegue com quaisquer quatro bolsas, aplicadas decentemente a qualquer bonzo, dizia Alexandre de Gusmão, que via as coisas de dentro.

Os fidalgos ocupavam-se de troças brutais, promovendo tumultos e desordens, em que havia mortos.

O próprio irmão do rei, o infante D. Francisco, divertia-se nessas aventuras e raptos nocturnos que ensanguentavam as ruas da capital.

A antiga valentia portuguesa aparecia transformada em uma brutalidade grosseira.


A orgia sanguinária e lúbrica era o fundo real do quadro da devoção e da majestade burlesca.

O conde de Tarouca, tão piedoso, vivia amancebado com a Rocha, furtada por ele ao pai e casada com um criado seu; a Rocha fugiu-lhe com o padre Soares.

O conde de Valadares, que matara a filha com crueldades devotas, ia disfarçado de mulher, de manto e touca, falar à criada em Santa Clara, e dormia no convento com ela.

O prior de S. Jorge tinha 65 anos e um serralho de beatas suas confessadas. A Inquisição interveio, condenando-o a degredo; mas o velho defendia-se dizendo que o amor é caridade, resumo de toda a lei.

A abadessa do convento de Santa Ana de Lisboa fugia para a Holanda com um frade capucho.

A Quaresma e a Semana Santa eram a época desejada das aventuras piedosas.

Dizia-se que o rei ia disfarçado de andrajos de pobre para junto do andor do Senhor dos Passos da Graça beliscar as fidalgas quando beijavam o pé da imagem.

Madre Paula, do convento de Odivelas


É verdade que D. João V perdia a cabeça por todas as mulheres. Mas a sua verdadeira paixão estava em Odivelas, o ninho da Madre Paula.
Madre Paula e a irmã Maria da Luz viviam juntas nesse fofo recinto preparado para todas as voluptuosidades.

Todo o luxo da época se acumulara no palacete misterioso e maravilhoso: as talhas douradas, os mosaicos de Itália, os charões da Índia, os móveis de ébano embutidos de marfim, os espelhos de Veneza, os cristais, as cambraias, as rendas, as pratas e ouros, as franjas pesadas, os estofos de melania (a fazenda da moda) e as sedas adamascadas que revestiam as paredes.

As duas irmãs dormiam no mesmo quarto, e entre as duas camas tinham duas pias de prata, com água benta, para se persignarem.
O rei entrava e saía, sem se esconder, sem recear que o vissem. Todo o convento o conhecia e lhe beijava, reverentemente, a mão. Perto do palácio, ao Arco dos Pregos, o Cucolim, ao contar as idas para Odivelas, dizia: Ali perde a vergonha!

O voluptuoso monarca era verdadeiramente rei, porque o seu povo – a nobreza, o clero, a burguesia rica – ardia nas mesmas paixões.


A perversão dos instintos, o vazio das inteligências, a maldade imbecil e a carolice piegas e lúbrica retratavam a primor o estado caduco do corpo da nação amortalhada num sudário de brocados de sacristia.

Portugal era um cenário de ópera armado numa igreja.

Não somos nós, com as nossas críticas, quem o diz: confessam-no os contemporâneos. Leia-se o que escreveu o Cavaleiro de Oliveira, leia-se Alexandre de Gusmão, leia-se o Testamento Político de D. Luís da Cunha.
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Nada há a esperar do rei: é a impressão que sai do texto deste último documento.

Foi a este porto, leitor amigo, que nos conduziu a educação que os jesuítas começaram a dar-nos no XVI século.
Não se investe debalde contra a natureza, seja em nome de quem for.
E os padres, secando em nós todas as fontes da vida real e justa, deram-nos em troca um sistema de tresvarios e fraquezas, para nos salvarem.

Quando estávamos a bom caminho do fim final, o rei Bragança lembrou-se de nos remir, e as minas do Brasil vieram jorrar um dilúvio de ouro nos bolsos de uma gente perdida de corpo e alma.

Das loucuras que isso deu, fiquem estas páginas por documento.
A história interrompe-se, mas não termina aqui.
Se alguém pensa que um povo não podia descer mais, engana-se: em breve se convencerá da verdade". (*)
…………….
Música portuguesa
do tempo de D. João V
(Compositor: Carlos Seixas)

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(*) - História de Portugal - Oliveira Martins (adaptação e ordenação do texto da responsabilidade da Torre da História Ibérica)

sábado, 30 de maio de 2020

D. João V, rei de Portugal - Majestoso, Esbanjador, Mulherengo e Freirático (1.ª Parte)

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D. João V - Rei de Portugal de 1707 a 1750


D. João V foi o 24.º rei de Portugal.
Nasceu em 22 de Outubro de 1689 e faleceu em 31 de Julho de 1750.
Aclamado rei no dia 1 de Janeiro de 1707.
O seu nome completo: João Francisco António José Bento Bernardo de Bragança.

- Filho do rei D. Pedro II…


… foi pai de D. José (o rei que teve o célebre Marquês de Pombal como primeiro-ministro - ver aqui e aqui);

… avô de D. Maria I (que enlouqueceu e morreria no Brasil);

… bisavô de D. João VI, que se refugiaria a partir de 1808 em terras brasileiras para se furtar à ameaça napoleónica (facto que teria influência decisiva na declaração de independência do Brasil – ano de 1822);

… e trisavô de D. Pedro I, primeiro imperador do Brasil.

Casou em 1708 com D. Maria Ana Josefa, arquiduquesa de Áustria, filha do Sacro Imperador Germânico, Leopoldo I, e da condessa Leonor Madalena de Neuburg.
A rainha foi irmã dos Sacro Imperadores José I e Carlos VI.

Muito culta, D. Maria Ana Josefa conhecia e falava alemão, francês, italiano, espanhol e latim.

Resignou-se rapidamente ao abandono a que D. João V a votava.
Muito devota, entregava-se com frequência a práticas piedosas.
Interessava-se por coisas do mar, passeava ao longo do rio Tejo com a Família Real e a Corte, assistindo frequentemente a festas e serenatas no rio e a lançamentos de navios ao mar.

Apaixonada por música, assistia sempre aos concertos e aos serões de ópera da Corte.


A rainha D. Maria Ana Josefa, esposa de D. João V

.Chamaram a D. João V O Magnânimo ou O Rei-Sol Português, em virtude do luxo de que se revestiu o seu reinado; alguns historiadores recordam-no também como O Freirático, devido à sua conhecida apetência sexual por freiras.
A mais famosa de todas foi a Madre Paula, enclausurada no convento de Odivelas, Lisboa.
Esta Madre Paula, que se fez poderosa e influente pelo domínio que exercia sobre o seu régio amante, foi mãe de um dos filhos ilegítimos de D. João V, os chamados Meninos de Palhavã.

Estes amores freiráticos eram de resto generalizados entre os nobres portugueses do tempo, a tal ponto que, em 1724, alguns deles foram convocados à Secretaria de Estado para assinarem um termo em que se comprometiam a não mais visitarem as freiras nos conventos, a deixarem de lhes escrever e a não lhes fazerem acenos da rua.
É claro que o rei D. João V se considerava à partida isento de tais limitações.

Segundo Veríssimo Serrão, D. João V «era senhor de uma vasta cultura, bebida na infância com os padres jesuítas. Falava línguas, conhecia os autores clássicos e modernos, tinha boa cultura literária e científica e amava a música. Para a sua educação teria contribuído sua mãe (Maria Sofia, condessa de Neuburg), que o educou, e aos irmãos, nas práticas religiosas e no pendor literário.»
E a seguir: «Logo na cerimónia da aclamação se viu o pendor régio para a magnificência.” 


Convento de Odivelas, onde viveu a famosa Madre Paula (Lisboa)

.Oliveira Martins, o historiador português, escreveu sobre D. João V, e o seu reinado, palavras muito duras:


“(…) Um facto fortuito, alheio aos elementos naturais, tinha vindo pelos fins do século XVII influir poderosamente nos destinos da nação.
Despovoado e inculto o reino, miseráveis e nuas as povoações, sem riqueza nem trabalho – as minas de ouro do Brasil deram ao rei e ao povo uma fortuna que o país lhes negava.

Lisboa era mais a metrópole de um vasto império ultramarino do que a capital de um reino europeu.
Agora, as minas americanas (do Brasil) chamam todas as ambições e todas as forças para a cidade onde se encontra a vida inteira da nação.

Foi sobre o ouro e os diamantes do Brasil que se ergueu o trono absoluto de D. Pedro II; foi com eles que D. João V, e todo o reino, puderam entregar-se ao entusiasmo desvairado dessa ópera ao divino em que desperdiçaram os tesouros americanos.

O acaso concedeu a um tonto o uso de armas perigosas, abrindo-lhe de par em par as portas dos arsenais; e D. João V, enfatuado, corrompeu e gastou, pervertendo-se também a si e desbaratando toda a riqueza da nação. Tal foi o rei.
O povo, beato e devasso, pastoreado pelos jesuítas, arreava-se agora de pompas, para assistir como convinha à festa solene do desbarato dos rendimentos do Brasil.
 

Terreiro do Paço (Lisboa)
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Essa soma quase incalculável de riquezas não bastou para encher a voragem do luxo e da devoção do espaventoso e beato monarca.
O Inglês sentava-se com ele à mesa e aplaudia os desperdícios, porque todo o ouro do Brasil apenas passava por Portugal, indo fundear em Inglaterra para pagamento da farinha e dos géneros fabris com que ela nos alimentava e nos vestia.
As indústrias nacionais eram as óperas e as devoções: todo o comércio externo estava nas mãos dos ingleses, principalmente, e também de italianos.

Por isso, nem todo o ouro do Brasil chegou, a dívida nacional cresceu, e se Lisboa quis deixar de morrer à sede teve de pagar com um imposto especial a construção do seu Aqueduto.
Os dinheiros do Brasil tinham outro e melhor destino.
Iam para Roma custear o preço de concessões valiosas.

Era a elevação da capela do rei a Patriarcado – um arremedo do Vaticano.
Eram as insistências (sem resultado) para que se definisse o dogma da Imaculada Conceição de Maria, antiga teima dos reis Braganças.
Era a licença para os padres dizerem três missas em Dia de Finados.
Eram os lausperenes, as relíquias, as canonizações, as indulgências.

D. João V tinha o amor das cerimónias, e sabia todos os pontos da etiqueta do paço e da igreja.

Era mestre em liturgia. Queria bem a todos os santos, mas tinha um fraco particular por S. José e por S. Francisco de Assis. 

Luxo da corte de D. João V


A Patriarcal era para D. João V o reino, a corte.
Essa ópera contava quase quatrocentos figurantes.
Afora o patriarca, tinha vinte e quatro principais, setenta e dois prelados, vinte cónegos, setenta e três beneficiados, mais de trinta mestres-de-cerimónias, acólitos, capelães.

Custavam todos trezentos contos ao ano.
E, além disso, cento e trinta cantores e músicos, por trinta e oito contos.
E, por cima, as rendas principescas do patriarca.
E mais ainda o preço incalculável das festas magníficas, com o cenário deslumbrante de ouro, pedrarias, veludos, rendas, luzes, em nuvens de incenso despedidas pelos turíbulos cinzelados.

D. João V não regateava o preço das coisas; antes, como rei brasileiro, rico sem saber como, punha a honra na despesa, imaginando espantar o mundo com o modo perdulário com que dissipava.



Mais de duzentos milhões de cruzados foram para Roma; não tem conta o que deu pelo reino às igrejas, aos conventos de frades e freiras, e, na sua fúria de ser esmoler-mor do catolicismo, lembrava-se de todos derramando por toda a parte o ouro do Brasil.
Alexandre de Gusmão, atónito, apertava a cabeça com ambas as mãos, exclamando:
A fradaria absorve-nos, a fradaria suga tudo, a fradaria arruína-nos!

O rei não pensava em tal. E, emproado, soberano, a peruca majestosa, o pulso em fofas rendas, com a mão sobre a bengala, risonho de si, passeava os olhos pela ópera faustosa.
Vestia-se de Paris.
Era, deveras, um grandíssimo rei!
E os mitrados de púrpura, os tonsurados, de rastos, humildes, batendo nos peitos, louvavam e adoravam o Grande Lama do extremo ocidente..."


………...

Música portuguesa
do tempo de D. João V
(Compositor: Carlos Seixas)

(Conclui amanhã, 31-Maio-2020)

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Aurora Boreal (António Gedeão)

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Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.

Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.

Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.

Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.

Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.

Pela redonda entra o sonho,
e as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.

Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,

e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,

e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,

e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,

todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.


(António Gedeão)
Portugal, 1906-1997

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Infante D. Henrique (1394-1460) - Cérebro e Alma dos Descobrimentos Marítimos Portugueses

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"(...) Em 1418, ao regressar da segunda viagem a Ceuta, D. Henrique era um homem de vinte e quatro anos, na plenitude da força que nos temperamentos espontaneamente activos desabrocha mais têmpora.

Alto e corpulento, de largos e fortes membros, com a pele tostada pelos sóis e ventanias, os cabelos negros, espessos, rijos e empinados, um bigode farto, negro também e hirsuto, este infante não era belo: pelo contrário.

Faltava-lhe na fisionomia o encanto da bondade, sem o qual não há formosura.

A dureza do seu olhar era antipática.

Descendia directamente do pai, no qual se vira um exemplar acabado do temperamento enérgico e tenaz, sem poesia, que sabe aliar a violência à astúcia quando o propósito formado o reclama para atingir um fim: do puro temperamento português, ou beirão, com traços de energia taurina.



A vontade manda exclusivamente em homens pouco dados à contemplação.

Formado um plano, delineada uma vida, todas as energias animais são escravizadas, e o homem torna-se o instrumento do próprio desígnio.

Talvez por se achar retratado nele, D. João I dava a este filho uma estima tão preferente.

Faltava-lhe de todo, como ao seu irmão Afonso, o bastardo de Barcelos, aquela veia de sentimento germânico, legada por D. Filipa ao carácter dos outros infantes, aquele indefinido misticismo humano, que só em alemão tem palavra capaz de inteiramente o definir: o gemuth, misto de sentimentalidade afectiva, de emoção melancólica, de serenidade de ânimo contemplativa, de humorismo transcendente, em combinações infinitamente variáveis, e que, desabrochando, produziu os tipos mais sublimes e também os mais extravagantes da imaginação poética, num Shakespeare, num Goethe, num Heine.


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D. Henrique era um peninsular "espanhol", afirmativo, duro, terminante, prático em tudo: na acção enérgica, no misticismo ardente, na habilidade astuta.

Para levar por diante os seus planos, primeiro sacrificou à intriga, e depois chegou a ser cruel; e para não mentir aos seus votos, entendendo a religião ao pé da letra, ficou virgem toda a vida.

Talvez daí provenha também a desumanidade que se lhe encontra no retrato.

As simpatias e a grandeza dos homens, como foi o infante D. Henrique, não está propriamente, pois, no carácter ou na individualidade: está na empresa a que se devotaram.



E como o plano do infante era verdadeiro e fecundo; como a sua ideia de um Portugal novo, destacando-se da Espanha e estendendo-se, pelos confins de Marrocos, África fora, até limites indeterminados nas regiões desconhecidas do mundo, provou afinal ser uma realidade, devemos-lhe, nós portugueses, uma segunda pátria; e deve-lhe a civilização europeia uma das suas três ou quatro conquistas fundamentais.

É isto o que faz dele um herói, na mais nobre acepção da palavra, apesar das sombras que por vezes lhe escurecem a vida, e de não se lhe encontrar beleza nem o encanto humano que distinguem outros filhos de D. João I.

Casto e abstémio, soldado e sacerdote dessa religião que despontava nas alvoradas da Renascença, abraçada ainda às velhas crenças do cristianismo medieval, a dureza ingénita do carácter do infante encontrava nas visões do seu plano um objecto e uma sanção tão profunda, que a sua alma, realistamente mística à espanhola, tinha alucinações, julgando proceder por mandados da divindade.



Esta fé e esta inclinação de génio, que se chamam loucura, quando chegam à mania e têm como objecto um fim sem utilidade real ou reconhecida, deviam concorrer para acentuar ainda mais o carácter reservado e agreste do infante.

À primeira vista, o seu aspecto era temeroso, segundo dizem os que o trataram, e, arrebatado em sanha, o semblante tornava-se-lhe muito esquivo.

Nenhum homem, perseguido e dominado por uma ideia, tem meiguice, nem aquela impassibilidade íntima que mais ou menos corresponde sempre à morte da energia, pela contemplação ou pelo cepticismo.


O Infante D. Henrique (M. Gustavo)

Mas o infante não era expansivamente colérico, não tinha acessos, nem fúrias: era, pelo contrário, esquivo, isto é, reservado.

Amodorrava, franzia a testa, empinava as sobrancelhas, e com a palavra mansa e o gesto comedido, mandava passear quem o desgostava: Dou-vos a Deus, sejais de boa ventura!

Nunca foi avaro, e compreende-se, porque a sua paixão tinha objecto diverso.

A riqueza era-lhe apenas um instrumento ao serviço da sua ideia.

Avarento é o homem que, fazendo-se centro do mundo, refere tudo a si; e o infante via as coisas de um modo diametralmente oposto.

O centro, o núcleo, o âmago de tudo, estava neste plano a que se votaria a si próprio, sacrificando os seus, para exaltação da sua fé e da sua terra, para que germinasse, para que nascesse, florisse e frutificasse a semente que trazia no pensamento, envolvida nas dobras da inconsciência.

Nunca o infante sonhou os cruéis resultados que à sua terra haviam de vir do glorioso sacrifício a que a votava, impondo-lhe a missão de descobrir o mundo, para que a humanidade tivesse, depois das ilusões inebriantes, os desenganos finais, e na garganta o travo amargo dos frutos paradisíacos da arvore da ciência. (...)" (*)


(*) - Oliveira Martins (1845-1894) - Os Filhos de D. João I - Lisboa - Imprensa Nacional (segundo a edição de 1891)
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segunda-feira, 25 de maio de 2020

1940: o ano em que Charlie Chaplin ridicularizou Adolf Hitler



Aconteceu em The Great Dictator (O Grande Ditador), filme norte-americano escrito, protagonizado e dirigido por Chaplin, em que a Alemanha nazi, a Itália fascista e as suas personagens foram impiedosamente satirizadas por ele.

No filme, Adenoid Hynkel é Adolfo Hitler, líder do partido da Dupla-Cruz, führer da Tomânia (Alemanha).
No seu governo destacam-se o sombrio Garbitsch (Goebbels) e o vaidoso Herring (Goering).
Benzino Napaloni (Benito Mussolini) governa a Bactéria (Itália).

 
Adenoid Hynkel com o seu grande aliado Benzino Napaloni.

Naquele ano de 1940, Adolf Hitler, o grande destruidor, achava-se no auge do poder. Depois de engolir a Checoslováquia, a Áustria e a Polónia, obtivera um dos prémios mais cobiçados: a humilhação e a conquista da França, no mês de Maio.

Poucos meses depois, em Outubro, estreava-se o filme, que caiu como uma bomba e logo se transformou num enorme sucesso de bilheteira.



Entre várias cenas de irresistível comicidade - mas com muito de premonitório -, sobressai a que se ilustra acima: na sala da chancelaria, Hynkel brinca com o Globo, que afaga e pontapeia até ao estoiro final, tudo ao som da música de Wagner tão apreciada pelo ditador.

Quando o filme foi produzido, ainda não acontecera a invasão da União Soviética (Junho de 1941) nem o ataque japonês à base norte-americana de Pearl Harbor (Dezembro de 1941), que precipitaria a entrada dos Estados Unidos no conflito.
Estavam ainda escondidas no futuro as cidades arrasadas, os milhões de mortos, o horror do Holocausto...

Adenoid Hynkel falando às massas.
Uma das cenas mais icónicas da película ficou eternizada pelo genial desempenho de Chaplin - o momento em que Adenoid Hynkel, ditador da Tomânia, se dirige a uma multidão de seguidores.
Foram meia dúzia de minutos em que o brutal e arrogante ditador saiu irremediavelmente ridicularizado.
O primeiro minuto do vídeo resume os principais acontecimentos entre a 1.ª Guerra Mundial e a conquista do poder pelo partido da Dupla-Cruz.
O discurso de Adenoid Hynkel começa a 1' 10''.
Para ampliar a imagem do vídeo,
clique no quadrado do canto inferior direito.

Se quiser saber mais sobre o enredo do filme, clique aqui.

 

sábado, 23 de maio de 2020

"Dona Flor e Seus Dois Maridos" - Morte de Vadinho, o primeiro marido, numa funesta manhã de Carnaval (Jorge Amado - Brasil)



“Vadinho, o primeiro marido de Dona Flor, morreu num domingo de Carnaval, pela manhã, quando, fantasiado de baiana, sambava num bloco, na maior animação, no Largo Dois de Julho, não longe de sua casa.

Não pertencia ao bloco, acabara de nele misturar-se, em companhia de mais quatro amigos, todos com traje de baiana, e vinham de um bar no Cabeça onde o uísque correra farto à custa de um certo Moysés Alves, fazendeiro de cacau, rico e perdulário.

O bloco conduzia uma pequena e afinada orquestra de violões e flautas; ao cavaquinho, Carlinhos Mascarenhas, magricela celebrado nos castelos, ah!, um cavaquinho divino.


Vestiam-se os rapazes de ciganos e as moças de camponesas húngaras ou romenas; jamais, porém, húngara ou romena ou mesmo búlgara ou eslovaca rebolou como rebolavam elas, cabrochas na flor da idade e da faceirice.

Vadinho, o mais animado de todos, ao ver o bloco despontar na esquina e ao ouvir o ponteado do esquelético Mascarenhas no cavaquinho sublime, adiantou-se rápido, postou-se ante a romena carregada na cor, uma grandona, monumental como uma igreja – e era a Igreja de São Francisco, pois se cobria com um desparrame de lantejoula doirada – anunciou:
- Lá vou eu, minha russa do Tororó!…


O cigano Mascarenhas, também ele gastando vidrilhos e missangas, festivas argolas penduradas nas orelhas, apurou no cavaquinho, as flautas e os violões gemeram, Vadinho caiu no samba com aquele exemplar entusiasmo, característico de tudo quanto fazia, excepto trabalhar.




Rodopiava em meio ao bloco, sapateava em frente à mulata; avançava para ela em floreios e umbigadas, quando, de súbito, soltou uma espécie de ronco surdo, vacilou nas pernas, adernou de um lado, rolou no chão botando uma baba amarela pela boca, onde o esgar da morte não conseguia apagar de todo o satisfeito sorriso do folião definitivo que ele fora.

Os amigos ainda pensaram tratar-se de cachaça, não os uísques do fazendeiro; não seriam aquelas quatro ou cinco doses capazes de possuir bebedor da classe de Vadinho; porém, toda a cachaça acumulada desde a véspera ao meio-dia, quando oficialmente inauguraram o Carnaval no Bar Triunfo, na Praça Municipal, subindo toda ela de uma vez e derrubando-o adormecido.

Mas a mulata grandona não se deixou enganar; enfermeira de profissão, estava acostumada com a morte, frequentava-a diariamente no hospital. Não, porém, tão íntima a ponto de dar-lhe umbigadas, de pinicar-lhe o olho, de sambar com ela.

Curvou-se sobre Vadinho, colocou-lhe a mão no pescoço, estremeceu, sentindo um frio no ventre e na espinha:
- ‘tá morto, meu Deus!


Outros tocaram também o corpo do moço, tomaram-lhe do pulso, suspenderam-lhe a cabeça de melenas loiras, buscaram-lhe o palpitar do coração.

Nada obtiveram, era sem jeito, Vadinho desertara para sempre do Carnaval da Bahia. (…)” (*)

Trilha sonora de "Dona Flor":





O baiano genial: Jorge Amado (1912-2001)

(*) – Dona Flor e Seus Dois Maridos – Jorge Amado – Brasil (1912-2001) – Editado por Publicações Europa-América – Lisboa – Portugal -1970.