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quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Aberturas de Grandes Livros - "PORTUGAL AMORDAÇADO" (Mário Soares)

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“Este livro tem uma história.

Começou a ser escrito em São Tomé, quando me encontrava deportado, sem prévio julgamento e por tempo indefinido, nessa pequena ilha equatorial.

Precisamente, a ideia surgiu-me quando tive conhecimento pela rádio, única fonte das notícias do dia, de que Salazar tinha sido operado a um hematoma craniano.

Nesse momento, compreendi que uma época da história portuguesa tinha terminado. E que era justo – e necessário – fazer o ponto de todo esse tão longo e doloroso período histórico.




Em vida de Salazar, um livro como o meu era, em sentido rigoroso, inconcebível. Esta simples verificação diz muito sobre a dureza dos tempos que nos tem sido dado viver, em Portugal, e explica por que razão este é o primeiro depoimento sobre a era salazarista. Outros se lhe seguirão, espero – enriquecidos com a visão de outros ângulos da realidade e mais bem elaborados.

É importante e urgente que assim aconteça, para que daí resulte um melhor conhecimento do período da história pátria que se encerrou com o desaparecimento de Salazar e que tanto tem pesado sobre nós. É importante, sobretudo, como contributo essencial para a reflexão que colectivamente todos temos de fazer sobre o nosso futuro.


Mário Soares foi Presidente da República de Portugal de 1986 a 1996

Tendo-me colocado numa posição de combate clara e fortemente empenhada, não se pode pretender que o meu depoimento tenha a fria objectividade de um observador exterior aos factos. Não procurei fazer história, nem escrever capítulos esparsos de memórias, com o desprendimento de quem fala de um passado morto e encerrado, ou compõe, à sua maneira, os factos em que participou, para ilustração dos vindouros.

O meu objectivo foi outro: dar singelamente testemunho de um longo combate desigual, a que assisti e em que estive interessado, mas preocupando-me essencialmente com a preparação do futuro.

Entretanto, procurei redigir as páginas que se seguem com escrupulosa verdade (…)”.

Portugal Amordaçado - Mário Soares (1924-2017) - Publicado por Editora Arcádia - Lisboa - Portugal

Saiba mais sobre ele ---> aqui

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Aberturas de Grandes Livros - "O Homem e o Rio" (William Faulkner - Estados Unidos)




“Era uma vez dois forçados (passou-se isto no Mississipi, em Maio, no ano da grande cheia de 1927).

Um deles, alto, esgrouviado, o ventre estio, de pele crestada pelo sol e cabelo negro de índio, andava pelos vinte e cinco anos.

Os seus olhos baços, de uma cor de faiança, tinham um ar ofendido – uma ofensa dirigida não tanto contra os homens que goraram o seu crime, nem mesmo contra os advogados e juízes que para ali o mandaram, como contra os autores de folhetins, os nomes incorpóreos ligados às histórias – os Diamond Dicks, os Jesse James e quejandos -, os quais responsabilizava pela sua presente situação, devido à ignorância e credulidade deles em relação ao meio em que se imiscuíam e pelo qual cobravam dinheiro, ao fornecerem informação a que davam o cunho de autenticidade e verosimilhança. (…)

Tinha de cumprir uma pena de quinze anos (chegara ali pouco depois do seu décimo nono aniversário) por tentativa de assalto e roubo num comboio.



 
Havia planeado tudo com antecedência e seguira à letra a falsa autoridade impressa.

Guardara durante dois anos os magazines de crime, lendo-os e relendo-os de cor, comparando e verificando cada história e cada método entre si, extraindo o que era útil em cada uma delas, depurando-as da ganga, à medida que surgia o seu plano de acção, e mantendo o espírito alerta para as subtis mudanças de último minuto, sem pressa nem impaciência, enquanto os novos fascículos apareciam nos dias previstos, tal como uma modista conscienciosa faz subtis alterações num vestido de apresentação na corte à medida que vão aparecendo novas revistas de modas.

E, finalmente, quando chegou o dia, nem sequer teve tempo de atravessar as carruagens e apoderar-se dos relógios e anéis, dos broches e dos cintos com dinheiro escondido, porque foi capturado assim que entrou na carruagem do expresso onde se encontrariam o cofre e o ouro.

Não disparara um tiro sequer (…)” (*)


William Faulkner (1897-1962)

(*) - O Homem e o Rio - William Faulkner - Editado por Publicações Europa-América, Lisboa, Portugal, 1971.

Saiba mais sobre William Faulkner - aqui 


sábado, 23 de julho de 2022

" A Batalha de Dien Bien Phu" (Jules Roy) - O canto do cisne do colonialismo francês no Vietname (13 de Março a 7 de Maio de 1954)





Abertura do livro:

Jules Roy relata, nesta introdução, a chegada a Saigão (Vietname do Sul) do novo comandante-chefe das forças armadas francesas na Indochina - general Henri Navarre.

Substituía no cargo o seu companheiro de armas Raoul Salan.

Os franceses enfrentavam nos seus domínios coloniais da Indochina uma guerra feroz, que tivera o seu início em 1946 e que culminaria em Agosto de 1954, após a humilhante derrota de Dien Bien Phu.

Os americanos chegariam uns anos mais tarde para se empenharem numa guerra igualmente mortífera e sem glória...

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“19 de Maio de 1953.

Um comandante-chefe não é pessoa que se receba como um regedor qualquer.

Fardados de branco sob o calor sufocante do meio-dia, todos os generais e almirantes do Vietname do Sul esperam na pista do aeródromo de Than Son Nut, em Saigão, a aterragem do avião de longo curso de Paris, que sofreu um atraso de três quartos de hora, a fim de permitir que pousasse em primeiro lugar o Dakota do alto-comissário francês, que vem de Hanói.

A bordo do Constellation, o general Navarre contempla, sonhador, a imensa e temível extensão de pântanos e anéis líquidos, enrolados nas terras baixas onde o mar penetra, parcela do vasto reino que recebeu o encargo de defender.

As águas brilham à luz do Sol e as aldeias de colmo aninham-se sob os tufos de bambus gigantescos.

O avião dirige-se agora para o norte, sobrevoa o porto, a cidade e os seus jardins, rola no cimento da pista e pára.

Ao aparecer na escotilha do Constellation, Navarre não está apenas sufocado pelo calor de fornalha, que lembra o da escala de Calcutá.

Outro que não ele teria dificuldade em resistir ao cerimonial disposto para o receber.

Evidentemente, conhece todo este ritual desde os tempos em que transportava a pasta dos comandantes-chefes e dos marechais, mas, desta vez, é ele o príncipe esperado, é para ele que tocam as fanfarras e se queima o incenso.

Estes prazeres refinados que deliciariam Salan [seu antecessor] – agora em prolongadas visitas de despedida no Tonquim –, Navarre só os apreciará com um secreto prazer de que gostosamente prescindirá quando perceber qual o seu preço. (…)

(…) Navarre vê a seus pés todos os poderes. 

Se quiser, o trem da sua casa poderá ser igual ao dum rei. Com o seu pavilhão a drapejar ao vento, poderá, com um simples gesto ou assinatura, decidir da sorte ou desgraça de muita gente.

Os seus ditos e silêncios serão estudados e todos ficarão suspensos das suas resoluções. Far-se-á tudo para o poupar às inclemências do clima, a fim de o seu génio poder resolver mais facilmente todos os problemas.

Nesse dia, através da escolta que o acompanhou, limitar-se-á a entrever Saigão, embora pressinta já o ambiente feroz dos negócios, do ágio, do dinheiro que corre a rodos, das casas de diversão nocturna e da vida dissoluta que nunca se interrompe.

Nesta cidade sem pássaros, as flores não têm perfume. Apresentam colorido brilhante, mas são pesadas, carnais, obcecantes.

Estas bandas de música, estes apitos da polícia, esta roda-viva de automóveis carregados de estrelas e bonés doirados celebram a chegada dum novo duque da Indochina ou o começo duma liquidação com ar festivo?

(…) No fim do jantar que o alto-comissário ofereceu em sua honra, chega a notícia da queda, após dois meses de resistência, do posto de Muong Khoua, alcandorado num pico rochoso, na confluência da Nam Ou e da Nam Pak, sessenta quilómetros a sudoeste de Dien Bien Phu, nome este que Navarre ainda não tinha sequer ouvido.

Uma companhia de soldados laocianos e alguns auxiliares desapareceram.

Pela primeira vez, os viets teriam utilizado granadas com fósforo, quer apanhadas do municiamento do corpo expedicionário, quer vindas da China. (…)”


A Batalha de Dien Bien Phu - Jules Roy (1907-2000) - Publicado por Livraria Bertrand - Lisboa - Portugal, 1965.

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Se quiser saber mais sobre a batalha de Dien Bien Phu, clique aqui.

Se quiser saber mais sobre a guerra francesa na Indochina (1946-1954), clique aqui.

Fase dos combates em Dien Bien Phu



Assalto das tropas vietnamitas



Conquista de Dien Bien Phu pelos vietnamitas




A França derrotada: prisioneiros franceses em Dien Bien Phu



General Henri Navarre (1898-1983)


Dança popular do Vietname:


quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Aberturas de Grandes Livros - "A Maravilhosa Viagem" (Castro Soromenho - Portugal) - REPOSIÇÃO




(Capa da edição da Arcádia)





O navegador português Diogo Cão, a que se refere o autor,
coloca o padrão nas costas do Sul de Angola.




Casa do século XV, ainda hoje existente no centro da cidade de Vila Real (Trás-os-Montes, Portugal), onde a tradição garante ter nascido o navegador Diogo Cão.

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"A Maravilhosa Viagem", de Castro Soromenho (descrição das costas do Sul de Angola)


“Um mundo misterioso vem até às areias desérticas, soltas ao vento, onde se ergue negra penedia que se alonga pelo mar. 

Pequenos morros nus e escuros destacam-se aqui e ali, na costa, com pássaros marinhos ao sol. Ao redor, um mundo de areia. 

Uma asa negra de abutre ganha, ao longe, os céus do deserto. Sobranceiro ao grande mar africano, abrem-se os braços de um padrão.

Quando todo o areal luz ao sol e o céu é azul claro, sereno e límpido, enxerga-se na linha do horizonte, terras dentro, uma mancha.

Para as bandas do oceano, calmo como mar morto, é o céu sem fundo. Velhos marinheiros, que dobraram aquele Cabo Negro onde o seu descobridor plantou o padrão, assinalaram essa mancha, parada e enorme quando o céu se abre até aos confins do horizonte, mas nenhum afoitou passos para a sua descoberta.

Entre o mar e essa terra alta, estende-se o deserto de areias soltas. E os marinheiros, que outros mares do Sul iam singrar na descoberta de novas terras, não passaram das praias brancas. É dessa terra alta, como que metida no céu, que vem a noite sobre o deserto. A noite e o mistério sobre que tudo repousa.

Correndo a sua sombra no azul das águas, um pássaro apanha um peixe na ponta vermelha do bico e ganha as brisas do largo, perdendo a brancura das asas nos horizontes longínquos.
Outros seguem-lhe o voo largo e lento, de longe em longe interrompido subitamente, para em descidas vertiginosas picarem o peixe à flor da água.
E é já com as sombras da noite sobre os braços do padrão que o bando regressa, corta o céu da praia, solta gritos vibrantes e entra e perde-se no fundo da noite da terra erma.

Peixes voadores prateiam-se sobre o mar tranquilo. Nas cavernas das rochas, grilos vermelhos começam a cantar. E como que embalando o seu canto, as águas espumadas marulham nas areias ainda quentes do sol. A noite fecha-se, negra e funda, sobre o deserto e o mar. E tudo cai num grande silêncio. (…)

(…) A recordar os passos do homem por aquelas terras sem nome de gentio - pois Cabo Negro foi a legenda que lhe deu o descobridor - só existe o padrão, enegrecido por mil e mil sóis.

Ergueu-o, em 1485, Diogo Cão, na viagem em que os ventos mais longe levaram as velas da nau da Descoberta. (…)”.


A Maravilhosa Viagem - Castro Soromenho (1910-1968) - Publicado por Editora Arcádia, Lisboa, Portugal, 1961.

África Minha
(Out of Africa)
(I)

(II)


quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Quando Napoleão Bonaparte devassava a Europa ... (Extraído de "El-Rei Junot" ) (Raul Brandão - Portugal)



“Napoleão marcha sobre o mundo. Revolve tudo. Assola, destrói e saneia. Remexe as nações bolorentas e espessas, os povos no marasmo, as cortes de aparato: a Espanha, a Alemanha, a Itália e o Papa, tudo a soldadesca num ímpeto derruba, levando-o em cacos diante de si.

Sobre a Europa extravasa esses homens, numa perpétua agitação, a geração do Terror, e cria outras ideias, espalha outras ânsias. Por cima das ruínas e da morte paira um desmedido sonho de aflição…

Porém a matéria só na verdade gera a matéria. O que sacode as almas é uma força espiritual, que Napoleão, colocado por acaso na sua frente, desvirtua e desnorteia. O mundo transformou-se – o homem interior é que se transformou, e só assim se compreende, primeiro a exaltação dos exércitos napoleónicos; depois as vitórias consecutivas, as hostes arcaicas em farrapos, as cortes desmanteladas, os generais derrotados, a Europa revolvida de lés a lés. (…)

(…) São estas as personagens: a Inglaterra com o mar, as esquadras, os cofres abarrotados de oiro e um misto de ódio, de orgulho e de sonho; Bonaparte com exércitos após exércitos, levas impetuosas e exaltadas.

A Europa atónita espera, desconfiada e dividida, com as suas cortes inimigas, cheias de preconceitos e rancores, de espiões, de intrigas, de generais derrotados, de diplomatas cerimoniosos levados à ponta de baioneta, e de agentes de Pitt com os bolsos cheios de oiro, concitando obstáculos e atritos entre farrapos do cenário antigo – docéis, tronos, cerimónias, pompas.

Isolar a ilha, separá-la do mundo e arruinar-lhe o negócio, era o plano de um; era o plano do outro reunir os escorraçados e os batidos, insuflar-lhes vida e oiro – oiro sem fim, oiro às pazadas – até aniquilar a França.

A Inglaterra há-de ser sempre o inimigo de todos os poderosos que se atrevam a sonho maior que o seu. (…)”


El-Rei Junot - Raul Brandão (1867-1930) (Publicado por Atlântida Editora, Coimbra, Portugal, 1974).

Saiba mais sobre Raul Brandãoaqui




quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Aberturas de Grandes Livros - "As Vinhas da Ira" (John Steinbeck - Estados Unidos)






“Para a região vermelha e parte da região cinzenta de Oklahoma, as últimas chuvas caíram suavemente, sem penetrarem fundo na terra escalavrada.
Os arados cruzaram e recruzaram os campos molhados. As últimas chuvas deram um avanço rápido ao milho e espalharam à beira das estradas moitas de ervas daninhas e de relva, de modo que a região vermelha e a região cinzenta começaram a desaparecer sob um tapete verde.

Nos últimos dias de Maio, o céu tornou-se pálido, e as nuvens, que tinham pairado em altos flocos por tanto tempo, durante a Primavera, dissiparam-se. O Sol faiscava sobre o milho em crescimento dia após dia, até que, ao longo do gume de cada baioneta verde, se estendeu uma linha acastanhada. (…)

(…) Chegou Junho. O Sol queimava mais incisivamente. A linha acastanhada das folhas do milho alargava-se, deslocando-se para o centro. As ervas daninhas tombavam enlanguescidas. O ar era transparente, e o céu estava mais pálido, e, de dia para dia, a terra perdia cor.

Nas estradas, onde o gado transitava e onde as rodas dos carros moíam o chão e as patas dos cavalos calcavam a terra, rompia-se a crosta de lama e formava-se a poeira.
Tudo o que se movia lançava a poeira no ar; um viandante levantava uma camada, que lhe chegava à cintura, uma carroça fazia-a subir até aos taipais e um automóvel deixava uma nuvem atrás de si. E só muito tempo depois a poeira acabava por assentar.

Em meados de Junho, apareceram dos lados do Texas e do Golfo nuvens muito densas, carregadas de chuva. Os homens, nos campos, olhavam para as nuvens, fungavam e estendiam os dedos húmidos, a ver de onde soprava o vento. (…)”

(As Vinhas da Ira - John Steinbeck - Editado por Livros do Brasil, Lisboa, Portugal, 1963)


Filme: The Grapes of Wrath

I - Da trilha sonora
(Red River Valley)


II - Cena final


John Steinbeck (1902-1968)
(Saiba mais sobre ele - aqui)
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quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Aberturas de Grandes Livros - "O ESTRANGEIRO" (Albert Camus - França)

 



“Hoje, a mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: Sua mãe falecida. Enterro amanhã. Sentidos pêsames. Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem.

O asilo de velhos fica em Marengo, a oitenta quilómetros de Argel. Tomo o autocarro das duas horas e chego lá à tarde. Assim, posso passar a noite a velar e estou de volta amanhã à noite. Pedi dois dias de folga ao meu patrão e, com uma razão destas, ele não mos podia recusar. Mas não estava com um ar lá muito satisfeito. Cheguei mesmo a dizer-lhe: A culpa não é minha. Não respondeu. Pensei então que não devia ter dito estas palavras.

A verdade é que eu não tinha nada que me desculpar. Ele é que tinha de me dar pêsames. Mas com certeza o fará, depois de amanhã, quando me vir de luto. Por agora, é um pouco como se a mãe não tivesse morrido. Depois do enterro, pelo contrário, será um caso arrumado e tudo passará a revestir-se de um ar mais oficial.



Tomei o autocarro às duas horas. Estava muito calor. Como de costume, almocei no restaurante do Celeste. Estavam todos com muita pena de mim e o Celeste disse-me: Mãe, há só uma. Quando saí, acompanharam-me à porta. Estava um bocado atordoado e tive que ir a casa do Manuel para lhe pedir emprestados um fumo e uma gravata preta. O Manuel perdeu o tio, há meia dúzia de meses.
Tive que correr para não perder o autocarro.

Esta pressa, esta correria e, talvez, também os solavancos, o cheiro da gasolina, a luminosidade da estrada e do céu, tudo isto contribuiu para que eu adormecesse no caminho. Dormi quase todo o tempo. E, quando acordei, estava apertado de encontro a um soldado, que me sorriu e me perguntou se eu vinha de longe. Disse que sim, para não ter que voltar a falar.


O asilo distava dois quilómetros da aldeia. Fui a pé. Quis ver imediatamente a mãe. Mas o porteiro disse-me que eu precisava, antes disso, de falar com o director. Como ele estava ocupado, esperei ainda um pouco. Durante este tempo, o porteiro não parou de falar. Depois, o director recebeu-me no seu gabinete. É um velhote que tem a Legião de Honra. Fitou-me com uns olhos muito claros. Depois apertou-me a mão durante tanto tempo que já não sabia como havia de a tirar.

Consultou um processo e disse-me: A senhora sua mãe entrou para aqui há três anos. O senhor era o seu único amparo. Julguei que me estava a fazer alguma censura e comecei a explicar-lhe. Mas ele interrompeu-me: Não tem nada que se justificar, meu filho. Estive a ler o processo da sua mãe. O senhor não lhe podia suportar as despesas. Ela precisava de uma enfermeira. O seu ordenado é modesto. E, no fim de contas, aqui ela era mais feliz. Eu disse: Sim, sr. director.
Acrescentou: Sabe o senhor, aqui ela tinha amigos, pessoas da mesma idade. Partilhava com eles motivos de interesse que são de um outro tempo. O senhor é novo e, ao pé de si, ela aborrecia-se com certeza.

Era verdade. Quando estava lá em casa a mãe passava o tempo a seguir-me em silêncio com os olhos. Nos primeiros dias de asilo, chorava muitas vezes. Mas era por causa do hábito. Ao fim de alguns meses, choraria se a tirassem do asilo, ainda devido ao hábito. Foi um pouco por isto que, no último ano, quase não a fui visitar. E também porque a visita me tomava o domingo – sem contar o esforço para ir até ao autocarro, comprar os bilhetes e fazer duas horas de viagem.

O director disse-me ainda mais coisas. Mas eu já quase não o ouvia. Em seguida, perguntou-me: Julgo que quererá ir ver a sua mãe? Levantei-me sem dizer nada e acompanhei-o até à porta. Nas escadas, explicou-me: Levámo-la para a nossa morgue particular. Para não impressionar os outros. Cada vez que algum morre, os outros ficam nervosos durante dois ou três dias, o que torna o serviço difícil.


Atravessámos um pátio onde havia muitos velhos, conversando em grupos, uns com os outros. Ao passarmos, calavam-se. E, atrás de nós, as conversas recomeçavam. Dir-se-ia um papaguear atordoado de periquitos.
À porta de uma pequena construção, o director deixou-me. Deixo-o agora, senhor Meursault. Estou às suas ordens, no escritório. Em princípio, o enterro está marcado para as dez horas da manhã. Pensámos que o senhor podia assim passar a noite a velar. Uma última coisa: parece que a sua mãe exprimiu várias vezes aos amigos o desejo de ter um enterro religioso. Tomei à minha conta este encargo. Mas queria pô-lo a par.

Agradeci-lhe. Embora sem ser ateia, enquanto viva a mãe nunca pensara na religião. Entrei. Era uma sala muito clara, caiada e coberta por uma vidraça. Mobilavam-na algumas cadeiras e cavaletes em forma de X. Dois deles, ao meio da sala, suportavam um caixão coberto.”


Veja neste blogue outro livro do autor, "A PESTE" - aqui

quarta-feira, 3 de março de 2021

Aberturas de Grandes Livros - "20 000 Léguas Submarinas" (Jules Verne - França)

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“O ano de 1866 foi assinalado por um acontecimento extraordinário, fenómeno inexplicável, que ninguém, por certo, olvidou ainda.
Não falando já nos rumores que agitavam as populações dos portos, de onde se transmitiam ao interior dos continentes, aqueles que mais interessados se mostraram foram os homens do mar.

Os negociantes, armadores, capitães de navios, mestres e contramestres da Europa e da América, oficiais das marinhas de guerra de todas as nações, e, depois destes, os Governos dos diversos estados dos dois continentes, todos se preocuparam com esse facto até ao ponto mais alto.

Na verdade, já por diversas vezes algumas embarcações se tinham encontrado no mar com uma coisa enorme, objecto longo, fusiforme, fosforescente, e infinitamente maior e mais rápido do que uma baleia.

Os factos relativos a esse aparecimento, que constavam nos diversos livros de bordo, eram suficientemente concordes na estrutura do objecto ou ser em questão, na velocidade inaudita dos seus movimentos, na força surpreendente da sua locomoção e na vida particular de que parecia dotado.

Se era cetáceo, excedia em volume todos quantos a ciência tinha até então classificado. (…)


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(…) Que ele existia era inegável e, se atendermos a essa disposição inata que o cérebro humano tem para o maravilhoso, facilmente se compreenderá a sensação produzida no mundo inteiro por tão sobrenatural aparecimento.

Era impossível tomá-lo como fábula.
Efectivamente, a 20 de Julho de 1866, o paquete Governor Higginson, da Calcuta and Burnach Steam Navigation Company, tinha encontrado a citada massa móvel a cinco milhas a leste das costas da Austrália.

A princípio, o capitão Baker julgou-se em presença de algum escolho desconhecido, e já se preparava para lhe determinar a situação exacta quando duas colunas de água, provenientes do estranho objecto, ou animal, subiram, silvando, até à altura de cinquenta metros.

Portanto, a não ser que o escolho estivesse sujeito às expansões intermitentes de um géiser, o Governor Higginson encontrara-se com algum mamífero aquático, até ali ignorado, que deixava sair pelas ventas colunas de água, misturadas com ar e vapor.




Facto similar foi igualmente observado em 23 de Julho do mesmo ano, nos mares do Pacífico, pelo Cristobal Colon, da West India and Pacific Steam Navigation Company. O que demonstrava que aquele cetáceo fora do comum era capaz de deslocar-se de um ponto a outro em inaudita velocidade, uma vez que, com três dias de intervalo, o Governor Higginson e o Cristobal Colon haviam-no observado em duas zonas do mapa separadas por mais de setecentas léguas marítimas de distância.

Quinze dias mais tarde, a duas mil léguas dali, o Helvetia, da Compagnie Nationale, e o Shannon, do Royal Mail, navegando em sentidos opostos na parte do Atlântico compreendida entre os Estados Unidos e a Europa, trocaram avisos situando o monstro, respectivamente, a 42º 15' de latitude norte e a 60º 35' de longitude a oeste do meridiano de Greenwich.

Por essa observação simultânea, julgou-se poder estimar o comprimento mínimo do mamífero em mais de trezentos e cinquenta pés ingleses, uma vez que o Shannon e o Helvetia eram menores do que ele, a despeito de medirem cem metros da roda da proa ao cadaste.




Ora, as baleias de maior porte - as que frequentam as paragens das ilhas Aleutas - jamais ultrapassaram cinquenta e seis metros de comprimento, se é que chegavam a tanto.

Após esses reiterados incidentes, novas observações efectuadas a bordo do transatlântico Le Pereire, uma abordagem entre o Etna, da linha Inman, e o monstro, um relatório elaborado pela fragata francesa La Normandie, bem como um seriíssimo levantamento obtido pelo estado-maior do comodoro Fitz-James, a bordo do Lord Clyde, mexeram profundamente com a opinião pública.

Nos países de humor leviano troçaram do fenómeno, mas nas nações graves e pragmáticas - a Inglaterra, os Estados Unidos, a Alemanha - foi grande a preocupação.

Em todos os quadrantes, nos grandes centros urbanos, o monstro entrou em voga. Foi cantado nos cafés, enxovalhado nas revistas, representado nos teatros. Os pasquins viram nele uma boa oportunidade de plantar notícias de todo o calibre (...)".


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Recorde o 'trailer' do filme que a Walt Disney produziu, em 1954, com base nesta famosa obra de Jules Verne (saiba mais sobre este autor - aqui).




Banda sonora do filme
(Paul J. Smith):