quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Aberturas de Grandes Livros - "O ESTRANGEIRO" (Albert Camus - França)

 



“Hoje, a mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: Sua mãe falecida. Enterro amanhã. Sentidos pêsames. Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem.

O asilo de velhos fica em Marengo, a oitenta quilómetros de Argel. Tomo o autocarro das duas horas e chego lá à tarde. Assim, posso passar a noite a velar e estou de volta amanhã à noite. Pedi dois dias de folga ao meu patrão e, com uma razão destas, ele não mos podia recusar. Mas não estava com um ar lá muito satisfeito. Cheguei mesmo a dizer-lhe: A culpa não é minha. Não respondeu. Pensei então que não devia ter dito estas palavras.

A verdade é que eu não tinha nada que me desculpar. Ele é que tinha de me dar pêsames. Mas com certeza o fará, depois de amanhã, quando me vir de luto. Por agora, é um pouco como se a mãe não tivesse morrido. Depois do enterro, pelo contrário, será um caso arrumado e tudo passará a revestir-se de um ar mais oficial.



Tomei o autocarro às duas horas. Estava muito calor. Como de costume, almocei no restaurante do Celeste. Estavam todos com muita pena de mim e o Celeste disse-me: Mãe, há só uma. Quando saí, acompanharam-me à porta. Estava um bocado atordoado e tive que ir a casa do Manuel para lhe pedir emprestados um fumo e uma gravata preta. O Manuel perdeu o tio, há meia dúzia de meses.
Tive que correr para não perder o autocarro.

Esta pressa, esta correria e, talvez, também os solavancos, o cheiro da gasolina, a luminosidade da estrada e do céu, tudo isto contribuiu para que eu adormecesse no caminho. Dormi quase todo o tempo. E, quando acordei, estava apertado de encontro a um soldado, que me sorriu e me perguntou se eu vinha de longe. Disse que sim, para não ter que voltar a falar.


O asilo distava dois quilómetros da aldeia. Fui a pé. Quis ver imediatamente a mãe. Mas o porteiro disse-me que eu precisava, antes disso, de falar com o director. Como ele estava ocupado, esperei ainda um pouco. Durante este tempo, o porteiro não parou de falar. Depois, o director recebeu-me no seu gabinete. É um velhote que tem a Legião de Honra. Fitou-me com uns olhos muito claros. Depois apertou-me a mão durante tanto tempo que já não sabia como havia de a tirar.

Consultou um processo e disse-me: A senhora sua mãe entrou para aqui há três anos. O senhor era o seu único amparo. Julguei que me estava a fazer alguma censura e comecei a explicar-lhe. Mas ele interrompeu-me: Não tem nada que se justificar, meu filho. Estive a ler o processo da sua mãe. O senhor não lhe podia suportar as despesas. Ela precisava de uma enfermeira. O seu ordenado é modesto. E, no fim de contas, aqui ela era mais feliz. Eu disse: Sim, sr. director.
Acrescentou: Sabe o senhor, aqui ela tinha amigos, pessoas da mesma idade. Partilhava com eles motivos de interesse que são de um outro tempo. O senhor é novo e, ao pé de si, ela aborrecia-se com certeza.

Era verdade. Quando estava lá em casa a mãe passava o tempo a seguir-me em silêncio com os olhos. Nos primeiros dias de asilo, chorava muitas vezes. Mas era por causa do hábito. Ao fim de alguns meses, choraria se a tirassem do asilo, ainda devido ao hábito. Foi um pouco por isto que, no último ano, quase não a fui visitar. E também porque a visita me tomava o domingo – sem contar o esforço para ir até ao autocarro, comprar os bilhetes e fazer duas horas de viagem.

O director disse-me ainda mais coisas. Mas eu já quase não o ouvia. Em seguida, perguntou-me: Julgo que quererá ir ver a sua mãe? Levantei-me sem dizer nada e acompanhei-o até à porta. Nas escadas, explicou-me: Levámo-la para a nossa morgue particular. Para não impressionar os outros. Cada vez que algum morre, os outros ficam nervosos durante dois ou três dias, o que torna o serviço difícil.


Atravessámos um pátio onde havia muitos velhos, conversando em grupos, uns com os outros. Ao passarmos, calavam-se. E, atrás de nós, as conversas recomeçavam. Dir-se-ia um papaguear atordoado de periquitos.
À porta de uma pequena construção, o director deixou-me. Deixo-o agora, senhor Meursault. Estou às suas ordens, no escritório. Em princípio, o enterro está marcado para as dez horas da manhã. Pensámos que o senhor podia assim passar a noite a velar. Uma última coisa: parece que a sua mãe exprimiu várias vezes aos amigos o desejo de ter um enterro religioso. Tomei à minha conta este encargo. Mas queria pô-lo a par.

Agradeci-lhe. Embora sem ser ateia, enquanto viva a mãe nunca pensara na religião. Entrei. Era uma sala muito clara, caiada e coberta por uma vidraça. Mobilavam-na algumas cadeiras e cavaletes em forma de X. Dois deles, ao meio da sala, suportavam um caixão coberto.”


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