segunda-feira, 27 de maio de 2019

Grandes Livros - A PESTE (Albert Camus)

 

O Estrangeiro e A Peste, romances complementares quanto ao significado, são dois momentos capitais na obra de Camus.
Se O Estrangeiro termina em pleno absurdo, A Peste conclui com a lúcida aceitação do destino humano.
Pelo seu sentido humanista e por uma consumada arte literária, A Peste é considerada uma das mais puras obras-primas do nosso tempo.

Na manhã de um dia 16 de abril dos anos de 1940, o doutor Bernard Rieux sai do seu consultório e tropeça num rato morto. Este é o primeiro sinal de uma epidemia de peste que em breve toma conta de toda a cidade de Orão, na Argélia. Sujeita a quarentena, esta torna-se um território irrespirável e os seus habitantes são conduzidos até estados de sofrimento, de loucura, mas também de compaixão de proporções desmedidas.

Uma história arrebatadora sobre o horror, a sobrevivência e a resiliência do ser humano, A Peste é uma parábola de ressonância intemporal, um romance magistralmente construído, que, publicado originalmente em 1947, consagrou em definitivo Albert Camus como um dos autores fundamentais da literatura moderna.

A Peste é publicada em Portugal pela Editora Livros do Brasil. Os extractos abaixo transcritos pertencem a uma edição da década de 1960 (capa seguidamente reproduzida). O livro continua disponível na editora a um preço que ronda os 15 €.
Colecção Dois Mundos.
Páginas: 334.
LEITURA MUITO RECOMENDADA PELA TORRE.


“Os curiosos acontecimentos que servem de assunto a esta história produziram-se em 194…, em Orão. Segundo a opinião geral, não estavam aí no seu devido lugar, antes saíam um pouco do habitual.
À primeira vista, Orão é, com efeito, uma cidade vulgar, que não passa de uma prefeitura francesa na costa argelina.
A própria cidade, confessemo-lo, é feia. Com o seu aspecto calmo, é preciso algum tempo para se perceber o que a torna diferente de tantas outras cidades comerciais em todas as latitudes. Como imaginar, por exemplo, uma cidade sem pombas, sem árvores e sem jardins, onde não se sente o bater de asas nem o sussurro de folhas, uma cidade neutra, para dizer tudo? Apenas no céu se lê a mudança das estações.

A Primavera só se anuncia pela qualidade do ar ou pelos cestos de flores trazidos por rapazitos dos arredores: é uma Primavera que se vende nos mercados. Durante o Verão, o sol incendeia as casas demasiado secas e cobre as paredes de uma poeira cinzenta; então só é possível viver à sombra das persianas corridas. No Outono, pelo contrário, é um dilúvio de lama.
Os dias bonitos só vêm no Inverno. (…)




Na manhã do dia 16 de Abril, o doutor Bernard Rieux saiu do seu consultório e tropeçou num rato morto, no meio do patamar. Nesse momento, afastou o bicho sem lhe prestar atenção e desceu a escada. Chegado à rua, porém, veio-lhe a ideia de que esse rato não estava no seu lugar e voltou atrás para prevenir o porteiro.

Perante a reacção do velho Michel, sentiu melhor o que a sua descoberta tinha de insólito. A presença desse rato parecera-lhe apenas estranha, enquanto que para o porteiro ela constituía um escândalo. A posição deste último era, aliás, categórica: não havia ratos em casa. Por mais que o médico lhe afirmasse que havia um no patamar do primeiro andar e, provavelmente, morto, a convicção de Michel permanecia íntegra. Não havia ratos na casa, e era, pois, provável que tivessem trazido aquele de fora. Em resumo, tratava-se de uma partida.

Nessa mesma noite, Bernard Rieux, de pé no corredor do edifício, procurava as chaves antes de subir para sua casa, quando viu surgir do fundo obscuro do corredor um rato enorme, de passo incerto e pelo molhado.
O animal parou, pareceu procurar o equilíbrio, correu em direcção ao médico, parou de novo, deu uma volta sobre si mesmo com um pequeno guincho e parou, por fim, deitando sangue pela boca entreaberta. O médico contemplou-o um momento e subiu. (…)


No dia seguinte, 17 de Abril, às oito horas, o porteiro deteve o médico e acusou três brincalhões de mau gosto de haverem posto três ratos mortos no meio do corredor. Deviam tê-los apanhado com grandes ratoeiras, pois estavam cheios de sangue. O porteiro ficara algum tempo à porta, segurando os ratos pelas patas, esperando que os culpados se traíssem por algum sarcasmo. Mas nada acontecera.
- Ah – dizia Michel -, hei-de acabar por apanhá-los.

Intrigado, Rieux decidiu começar a sua volta pelos bairros exteriores, onde habitavam os mais pobres dos seus clientes. A recolha do lixo fazia-se aí muito mais tarde e o automóvel, rolando ao longo das ruas direitas e poeirentas, roçava os caixotes do lixo deixados à beira dos passeios. Numa rua que percorria assim, o médico contou uma dúzia de ratos lançados sobre restos de legumes e trapos sujos. (…)




Em todo o caso, foi mais ou menos por esta época que os nossos concidadãos começaram a inquietar-se, pois a partir do dia 18 as fábricas e os depósitos apareceram enxameados de centenas de cadáveres de ratos.
Em alguns casos foi necessário acabar de matar os bichos, cuja agonia era demasiado longa. Mas desde os bairros exteriores até ao centro da cidade, por toda a parte onde o doutor Rieux passava, por toda a parte onde os nossos concidadãos se reuniam, os ratos esperavam em montes, nos caixotes do lixo ou junto às sarjetas, em longas filas.

A imprensa da tarde ocupou-se do assunto a partir desse dia e perguntou se a municipalidade se propunha ou não agir e que medidas de urgência tencionava adoptar para proteger os seus munícipes dessa repugnante invasão.
A municipalidade não se tinha proposto coisa nenhuma, mas começou por reunir em conselho para deliberar.

Foi dada ordem ao serviço de luta contra os ratos para proceder à sua recolha todas as manhãs, ao romper da alva. Acabada a recolha, dois carros de serviço deviam conduzir os animais ao posto de incineração dos lixos a fim de serem queimados.




Porém, nos dias que se seguiram a situação agravou-se.
O número de roedores apanhados ia crescendo e a recolha era cada manhã mais abundante. A partir do quarto dia, os ratos começaram a sair para morrerem em grupos. Das arrecadações, das caves, dos esgotos, subiam em longas filas titubeantes, para virem vacilar à luz, girar sobre si mesmos e morrer perto dos seres humanos.

À noite, nos corredores ou nas ruelas, ouviam-se distintamente os seus guinchos de agonia. De manhã, nas ruas, encontravam-se junto aos passeios, com uma pequena flor de sangue no focinho pontiagudo, uns inchados e pútridos, outros rígidos e com os bigodes ainda hirtos.

Na própria cidade, encontravam-se em pequenos montes, nos patamares e nos pátios. Vinham também morrer isoladamente nos vestíbulos administrativos, nos recreios das escolas, por vezes nos terraços dos cafés. Os nossos concidadãos, estupefactos, encontravam-nos nos locais mais frequentados da cidade. A Praça de Armas, as avenidas, o Passeio do Front-de-Mer apareciam conspurcados de longe a longe.

Expurgada, ao amanhecer, dos animais mortos, a cidade voltava a encontrá-los pouco a pouco, cada vez mais numerosos, durante o dia. Dir-se-ia que a própria terra onde estavam plantadas as nossas casas se purgava dos seus humores, que deixava subir à superfície furúnculos e podridões que, até aqui, a minavam interiormente. (…)




As coisas foram tão longe que a Agência Ransdoc – todas as informações sobre qualquer assunto – anunciou, na sua emissão radiofónica de informações gratuitas, seis mil duzentos e trinta e um ratos apanhados e queimados, só no dia 25.

Este número, que dava um sentido claro ao espectáculo quotidiano que a cidade tinha perante os seus olhos, aumentou a agitação. Até então, as pessoas tinham-se apenas queixado de um espectáculo um pouco repugnante.
Compreendia-se agora que este fenómeno, de que não se podia avaliar a amplitude nem precisar a origem, tinha qualquer coisa de ameaçador.
Só o velho espanhol asmático continuava a esfregar as mãos e a repetir com uma alegria senil: Eles saem, eles saem.”




Albert Camus nasceu na Argélia, em Mondovi, província de Constantina, a 7 de Novembro de 1913, e morreu num acidente de automóvel em Janeiro de 1960, ao regressar a Paris de uma pequena digressão pela província.

Foram difíceis as condições em que Albert Camus efectuou os seus estudos na Universidade de Argel. Foi obrigado a recorrer a diversos empregos para custear as despesas da vida de estudante: vendedor de acessórios de automóvel, meteorologista, empregado num escritório, manga-de-alpaca na Prefeitura da Polícia. Ao mesmo tempo entregava-se aos desportos e animava um grupo teatral, L’Équipe.

Licenciado em Filosofia, a doença impediu-o de levar mais longe a carreira de professor. Entrou para o jornalismo. Com a invasão da França ingressou na Resistência, e a Libertação encontrou-o redactor do jornal Combat.
O seu nome subira entretanto ao primeiro plano das Letras francesas e mundiais. Em 1957 sobreveio a consagração do Prémio Nobel da Literatura.

A sua obra é uma das mais influentes nas gerações do pós-guerra, tanto pelo valor humanístico da sua crítica dos homens e da vida, como pelo brilho, pureza e sobriedade do seu estilo.
Ancorada rijamente ao nosso tempo, está pois destinada a ultrapassar os limites da época que a viu nascer.

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