quinta-feira, 2 de maio de 2019

Receita de Mulher (1) (Escrita por Vinicius de Moraes)



As muito feias que me perdoem
mas beleza é fundamental.
É preciso que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
qualquer coisa de dança,
qualquer coisa de haute couture em tudo isso
(ou então que a mulher se socialize elegantemente,
em azul,
como na República Popular Chinesa).

Não há meio-termo possível.
É preciso que tudo isso seja belo.
É preciso que, súbito,
 tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada
e que um rosto adquira de vez em quando
essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.

É preciso que tudo isso seja sem ser,
mas que se reflita e desabroche
no olhar dos homens.
É preciso, é absolutamente preciso
que isso tudo seja belo e inesperado.




É preciso que umas pálpebras cerradas
lembrem um verso de Éluard
e que se acaricie nuns braços
alguma coisa além da carne:
que se os toque como ao âmbar de uma tarde.

Ah, deixai-me dizer-vos
que é preciso que a mulher que está ali
como a corola ante o pássaro
seja bela
ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo
e que seja leve como um resto de nuvem:

mas que seja uma nuvem com olhos e nádegas.
Nádegas é importantíssimo.
Olhos, então, nem se fala,
que olhem com uma certa maldade inocente.
Uma boca fresca (nunca húmida!)
móvel, acordada
é também de extrema pertinência.

É preciso que as extremidades sejam magras;
que uns ossos despontem,
sobretudo a rótula no cruzar das pernas,
e as pontas pélvicas
no enlaçar de uma cintura semovente.



Gravíssimo, porém, é o problema das saboneteiras: (*)
uma mulher sem saboneteiras
é como um rio sem pontes.
Indispensável que haja uma hipótese de barriguinha,
e em seguida a mulher se alteie em cálice,
e que seus seios sejam uma expressão greco-romana,
mais que gótica ou barroca
e possam iluminar o escuro
com uma capacidade mínima de cinco velas.

Sobremodo pertinente
é estarem a caveira e a coluna vertebral
levemente à mostra;
e que exista um grande latifúndio dorsal!

Os membros que se terminem como hastes,

mas bem haja um certo volume de coxas
e que elas sejam lisas,
lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem
no entanto sensível à carícia em sentido contrário.

É aconselhável na axila uma doce relva
com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!)


Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
de forma que a cabeça dê por vezes a impressão
de nada ter a ver com o corpo,
e a mulher não lembre flores sem mistério.

Pés e mãos devem conter elementos góticos discretos.
A pele deve ser fresca
nas mãos, nos braços, no dorso e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias
tenham uma temperatura
nunca inferior a 37º centígrados,
podendo eventualmente
provocar queimaduras do primeiro grau.

Os olhos, que sejam de preferência grandes
e de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra;
e que se coloquem sempre
para lá de um invisível muro de paixão
que é preciso ultrapassar.

Que a mulher seja em princípio alta
ou, caso baixa,
que tenha a altitude mental dos altos píncaros.

Ah, que a mulher dê sempre a impressão
de que se fechar os olhos
ao abri-los ela não mais estará presente
com seu sorriso e suas tramas.

Que ela surja, não venha;
parta, não vá
e que possua uma certa capacidade
de emudecer subitamente
e nos fazer beber o fel da dúvida.

Oh, sobretudo
Que ela não perca nunca,
não importa em que mundo
não importa em que circunstâncias,
a sua infinita volubilidade de pássaro;

E que acariciada no fundo de si mesma
transforme-se em fera sem perder sua graça de ave;
e que exale sempre o impossível perfume;
e destile sempre o embriagante mel;
e cante sempre o inaudível canto da sua combustão;
e não deixe de ser nunca
a eterna dançarina do efêmero;
e em sua incalculável imperfeição
constitua a coisa mais bela e mais perfeita
de toda a criação inumerável.


(*) Saboneteira: cada uma das duas depressões situadas logo acima da clavícula, mais visíveis em pessoas magras.


Autor: Vinícius de Moraes (Brasil)

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