quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Quando Napoleão Bonaparte devassava a Europa ... (Extraído de "El-Rei Junot" ) (Raul Brandão - Portugal)



“Napoleão marcha sobre o mundo. Revolve tudo. Assola, destrói e saneia. Remexe as nações bolorentas e espessas, os povos no marasmo, as cortes de aparato: a Espanha, a Alemanha, a Itália e o Papa, tudo a soldadesca num ímpeto derruba, levando-o em cacos diante de si.

Sobre a Europa extravasa esses homens, numa perpétua agitação, a geração do Terror, e cria outras ideias, espalha outras ânsias. Por cima das ruínas e da morte paira um desmedido sonho de aflição…

Porém a matéria só na verdade gera a matéria. O que sacode as almas é uma força espiritual, que Napoleão, colocado por acaso na sua frente, desvirtua e desnorteia. O mundo transformou-se – o homem interior é que se transformou, e só assim se compreende, primeiro a exaltação dos exércitos napoleónicos; depois as vitórias consecutivas, as hostes arcaicas em farrapos, as cortes desmanteladas, os generais derrotados, a Europa revolvida de lés a lés. (…)

(…) São estas as personagens: a Inglaterra com o mar, as esquadras, os cofres abarrotados de oiro e um misto de ódio, de orgulho e de sonho; Bonaparte com exércitos após exércitos, levas impetuosas e exaltadas.

A Europa atónita espera, desconfiada e dividida, com as suas cortes inimigas, cheias de preconceitos e rancores, de espiões, de intrigas, de generais derrotados, de diplomatas cerimoniosos levados à ponta de baioneta, e de agentes de Pitt com os bolsos cheios de oiro, concitando obstáculos e atritos entre farrapos do cenário antigo – docéis, tronos, cerimónias, pompas.

Isolar a ilha, separá-la do mundo e arruinar-lhe o negócio, era o plano de um; era o plano do outro reunir os escorraçados e os batidos, insuflar-lhes vida e oiro – oiro sem fim, oiro às pazadas – até aniquilar a França.

A Inglaterra há-de ser sempre o inimigo de todos os poderosos que se atrevam a sonho maior que o seu. (…)”


El-Rei Junot - Raul Brandão (1867-1930) (Publicado por Atlântida Editora, Coimbra, Portugal, 1974).

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