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sábado, 23 de julho de 2022

" A Batalha de Dien Bien Phu" (Jules Roy) - O canto do cisne do colonialismo francês no Vietname (13 de Março a 7 de Maio de 1954)





Abertura do livro:

Jules Roy relata, nesta introdução, a chegada a Saigão (Vietname do Sul) do novo comandante-chefe das forças armadas francesas na Indochina - general Henri Navarre.

Substituía no cargo o seu companheiro de armas Raoul Salan.

Os franceses enfrentavam nos seus domínios coloniais da Indochina uma guerra feroz, que tivera o seu início em 1946 e que culminaria em Agosto de 1954, após a humilhante derrota de Dien Bien Phu.

Os americanos chegariam uns anos mais tarde para se empenharem numa guerra igualmente mortífera e sem glória...

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“19 de Maio de 1953.

Um comandante-chefe não é pessoa que se receba como um regedor qualquer.

Fardados de branco sob o calor sufocante do meio-dia, todos os generais e almirantes do Vietname do Sul esperam na pista do aeródromo de Than Son Nut, em Saigão, a aterragem do avião de longo curso de Paris, que sofreu um atraso de três quartos de hora, a fim de permitir que pousasse em primeiro lugar o Dakota do alto-comissário francês, que vem de Hanói.

A bordo do Constellation, o general Navarre contempla, sonhador, a imensa e temível extensão de pântanos e anéis líquidos, enrolados nas terras baixas onde o mar penetra, parcela do vasto reino que recebeu o encargo de defender.

As águas brilham à luz do Sol e as aldeias de colmo aninham-se sob os tufos de bambus gigantescos.

O avião dirige-se agora para o norte, sobrevoa o porto, a cidade e os seus jardins, rola no cimento da pista e pára.

Ao aparecer na escotilha do Constellation, Navarre não está apenas sufocado pelo calor de fornalha, que lembra o da escala de Calcutá.

Outro que não ele teria dificuldade em resistir ao cerimonial disposto para o receber.

Evidentemente, conhece todo este ritual desde os tempos em que transportava a pasta dos comandantes-chefes e dos marechais, mas, desta vez, é ele o príncipe esperado, é para ele que tocam as fanfarras e se queima o incenso.

Estes prazeres refinados que deliciariam Salan [seu antecessor] – agora em prolongadas visitas de despedida no Tonquim –, Navarre só os apreciará com um secreto prazer de que gostosamente prescindirá quando perceber qual o seu preço. (…)

(…) Navarre vê a seus pés todos os poderes. 

Se quiser, o trem da sua casa poderá ser igual ao dum rei. Com o seu pavilhão a drapejar ao vento, poderá, com um simples gesto ou assinatura, decidir da sorte ou desgraça de muita gente.

Os seus ditos e silêncios serão estudados e todos ficarão suspensos das suas resoluções. Far-se-á tudo para o poupar às inclemências do clima, a fim de o seu génio poder resolver mais facilmente todos os problemas.

Nesse dia, através da escolta que o acompanhou, limitar-se-á a entrever Saigão, embora pressinta já o ambiente feroz dos negócios, do ágio, do dinheiro que corre a rodos, das casas de diversão nocturna e da vida dissoluta que nunca se interrompe.

Nesta cidade sem pássaros, as flores não têm perfume. Apresentam colorido brilhante, mas são pesadas, carnais, obcecantes.

Estas bandas de música, estes apitos da polícia, esta roda-viva de automóveis carregados de estrelas e bonés doirados celebram a chegada dum novo duque da Indochina ou o começo duma liquidação com ar festivo?

(…) No fim do jantar que o alto-comissário ofereceu em sua honra, chega a notícia da queda, após dois meses de resistência, do posto de Muong Khoua, alcandorado num pico rochoso, na confluência da Nam Ou e da Nam Pak, sessenta quilómetros a sudoeste de Dien Bien Phu, nome este que Navarre ainda não tinha sequer ouvido.

Uma companhia de soldados laocianos e alguns auxiliares desapareceram.

Pela primeira vez, os viets teriam utilizado granadas com fósforo, quer apanhadas do municiamento do corpo expedicionário, quer vindas da China. (…)”


A Batalha de Dien Bien Phu - Jules Roy (1907-2000) - Publicado por Livraria Bertrand - Lisboa - Portugal, 1965.

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Se quiser saber mais sobre a batalha de Dien Bien Phu, clique aqui.

Se quiser saber mais sobre a guerra francesa na Indochina (1946-1954), clique aqui.

Fase dos combates em Dien Bien Phu



Assalto das tropas vietnamitas



Conquista de Dien Bien Phu pelos vietnamitas




A França derrotada: prisioneiros franceses em Dien Bien Phu



General Henri Navarre (1898-1983)


Dança popular do Vietname:


terça-feira, 30 de novembro de 2021

Velhos filmes - "ZULU"

 




I - Da banda sonora de Zulu
(Autor: John Barry)



II - Cena do filme


sábado, 7 de agosto de 2021

O general António de Spínola e Otelo Saraiva de Carvalho na guerra da Guiné-Bissau (2) - O dia em que o general não quis olhar de baixo para cima...



O então capitão Otelo Saraiva de Carvalho, que cumpriu serviço militar na antiga colónia portuguesa da Guiné-Bissau (de 1970 a 1973), narra no livro Alvorada em Abril diversos episódios do seu convívio com o general António de Spínola, à época governador e comandante-chefe das Forças Armadas naquele território.

Líder carismático e temerário, mestre nos grandes gestos e na forma de lhes dar publicidade – e já famoso no país e fora dele por causa disso -, Spínola raramente sai sob luz favorável dessas memórias do seu subordinado (como se viu aqui).

Resulta da obra que Otelo não gostava nem um pouco do general, talvez porque tenha caído por diversas vezes no seu desagrado ao ponto de se ver publicamente contrariado e repreendido por ele.

Terá sido por isso que passou a valorizar mais os defeitos do que as qualidades de Spínola. Como ele próprio confessa, via nele [em Spínola] o adversário que se admira e respeita e não o chefe que se ama. Não me deslumbrava de forma alguma. Antes fazia nascer em mim a quase necessidade física de o afrontar.




Não deixa de ser irónico que, após o golpe de Estado de 25 de Abril de 1974, Otelo tenha assistido, contrariado, mas sem nada poder fazer, à entrega do poder a Spínola (feito presidente da Junta de Salvação Nacional que passou a governar o país).

Não era aquilo que ele, e outros revoltosos, pretendiam fazer (eles pensavam noutra figura para esse cargo – o discreto, lacónico e algo ambíguo general Costa Gomes).

Porém, o prestígio de Spínola em Portugal era, nessa altura, esmagador e imbatível – sendo praticamente impossível afastar das suas mãos, naquele dia, as rédeas do poder.




Um dos episódios da Guiné-Bissau que melhor demonstram o que antecede deu-se em 10 de Junho de 1973, no então chamado Dia da Raça, data escolhida para homenagear, em vida ou postumamente, aqueles que, segundo os critérios reinantes, mais se haviam distinguido nas acções anti-guerrilha.

Nesse dia, mergulhado nas funções de retaguarda que lhe incumbiam, Otelo de Carvalho viu-se responsável pela organização das cerimónias na Praça do Império, em Bissau. No comando das “operações”, diligenciou, pois, para que tudo decorresse a contento.
Tratou da disposição das tropas, das bandeiras, das fanfarras, das tribunas para as altas entidades, os familiares e os convidados. Tudo previsto, tudo calculado, repetido até ao pormenor, resumiu Otelo, convencido de que nada poderia falhar.

O momento alto das cerimónias era, naturalmente, o da imposição de condecorações, que tinha lugar logo a seguir aos discursos.
Os condecorados do dia, bem ensaiados, sabiam perfeitamente o que fazer: em grupos de quatro ou cinco galgavam a escadaria do palácio, perfilavam-se perante Spínola, faziam continência e esperavam que alguma das entidades presentes lhes impusesse a medalha conquistada (podia ser, ou não, o governador).




No patamar da escadaria, Otelo Saraiva de Carvalho controlava de perto o desenrolar da cerimónia e a sequência das condecorações.
Spínola, e as demais entidades condecorantes, lá iam pendurando ao peito dos homenageados, negros e brancos, sem incidentes, a expressão da gratidão pátria.
Otelo, descansado, via como as coisas fluíam normalmente, conforme o planeado, tudo indicando que seria um dia perfeito.

Todavia, já a cerimónia ia adiantada, algo de inesperado aconteceu: o comandante-chefe, general Spínola – logo ele… - havia interrompido a tarefa e, claramente agastado, de medalha na mão, diante de um militar guineense, resmungou para Otelo: Isto aqui não está bem. Este gajo que está à direita devia estar à esquerda e aquele que está à esquerda é que devia estar aqui.
E continuava com a medalha suspensa.




Otelo procurou acalmá-lo, dizendo que estava a controlar a sequência das condecorações: não vislumbrando qualquer lapso, pediu ao general que continuasse.
Spínola, ainda que visivelmente contrariado, lá se decidiu a pendurar aquela medalha no peito do herói. Tudo parecia ter voltado aos carris, mas foi sol de pouca dura.

Sem que nada o fizesse prever, o governador tornou a interromper a cerimónia e, por sua iniciativa e em directo comando, fez com que se alterassem as posições dos homens a condecorar, com passos laterais à direita e à esquerda, numa enorme confusão extraprograma, até que cada militar ficou, exactamente, na posição indicada por ele.

O "Velho" baralhou todo o esquema organizativo, sobressaltou-se Otelo. Felizmente, por qualquer espécie de milagre, não houve, apesar das trocas de posições, medalhas erradamente atribuídas e a cerimónia chegou ao fim sem outros incidentes.




À tarde, como era costume, houve um lanche ao ar livre para os militares condecorados, com a presença dos familiares.
O general Spínola, que presidia ao repasto, chamou o chefe da repartição de quem Otelo dependia, um major, e disse-lhe que as coisas tinham corrido muito bem nessa manhã. Mas rematou: Só foi pena aquele engano, aquela troca dos rapazes na altura das condecorações, porque de resto estão de parabéns.

O major, aliviado, agradeceu e confessou que, de facto, o erro tinha sido da sua repartição – devido à inexperiência… -, mas que a pronta reacção do general tinha permitido dominar a situação sem problemas de maior.

Otelo, que ouvia a conversa, sentiu-se indignado e, munido de fotografias da cerimónia do ano anterior, procurou demonstrar a Spínola que não tinha havido erro nenhum.
O general, zangado, interrompeu-o abruptamente: Homem, esteja calado, não me interessam os seus argumentos. Já lhe disse que os homens estavam trocados. Otelo tentou insistir, mas Spínola cortou bruscamente a conversa: Acabou, já lhe disse. Não me interessam os seus argumentos.




Mais tarde, falando com alguém melhor conhecedor da maneira de ser e das particularidades de Spínola, Otelo julgou ter descoberto o verdadeiro motivo de toda a confusão criada – a interrupção da cerimónia, a alteração das posições dos militares e a teimosia do general quanto à justeza do que tinha feito.

Segundo Otelo, tinha sido inadvertidamente descuidado um importante pormenor na distribuição das medalhas pelas diversas entidades que acompanhavam Spínola: é que, por duas vezes (e por mero caso) tinham calhado ao comandante-chefe dois militares guineenses de elevada estatura, muito mais altos do que ele.
Assim, no momento da condecoração, o general fora obrigado a olhar para cima, ficando pendurado no peito do homem.

E Otelo, com razão ou sem ela, encerra o episódio com um comentário melancólico: Daí o agastamento do general. Ele não podia confessar ser este o verdadeiro motivo da sua atitude. Logo, o que estava errado era a colocação dos militares! Nem mesmo a melhor organização pode resistir a estes imponderáveis…


sábado, 31 de julho de 2021

O general António de Spínola e Otelo Saraiva de Carvalho na guerra da Guiné-Bissau (1) - O dia em que Spínola se pôs à frente das balas de um soldado africano das tropas portuguesas

 

Spínola com os seus oficiais no teatro de operações.
De camuflado, monóculo, luvas e pingalim.


O general António Sebastião Ribeiro de Spínola foi, entre 1968 e 1973, o penúltimo governador e comandante-chefe das Forças Armadas portuguesas na então colónia da Guiné-Bissau.

No ano seguinte ao do termo da comissão, e após o golpe de Estado de 25 de Abril de 1974 em Portugal, seria mandatado pelos revoltosos para receber o poder das mãos do primeiro-ministro Marcelo Caetano, entretanto cercado no quartel do Carmo, em Lisboa. Tornar-se-ia nesse mesmo dia presidente da Junta de Salvação Nacional e, posteriormente, Presidente da República de Portugal (cargo que ocuparia por breves meses).


Na Guiné-Bissau, colónia difícil, pantanosa, de pequena expressão territorial (pouco mais de um terço da superfície de Portugal) e ameaçada por bases inimigas localizadas em países limítrofes (Senegal, Guiné-Conacri), as tropas portuguesas enfrentavam a mais difícil das três frentes em que combatiam na época (as outras eram Angola e Moçambique).

No ano de 1973, as Forças Armadas dispunham, na Guiné-Bissau, de 58 000 homens, dos quais 36 000 oriundos de Portugal e cerca de 22 000 recrutados localmente para as chamadas Forças Africanas (Comandos e Fuzileiros Africanos, Milícias, Autodefesas, etc.).

No comando absoluto deste efectivo, o general António de Spínola combinava as acções de combate no terreno (onde ele comparecia com frequência, correndo os riscos inerentes) com campanhas maciças de propaganda e de acção psicológica, visando a conquista de adesões entre as populações autóctones.

Spínola cumprimenta um dos militares guineenses das Forças Armadas portuguesas

O recentemente falecido coronel Otelo Saraiva de Carvalho, que viria a ser o estratega do golpe de 25 de Abril de 1974, achava-se em comissão de serviço na Guiné-Bissau desde 1970.
Detentor, na altura, do posto de capitão, não pertencia propriamente às forças operacionais, pois fora colocado na Repacap (Repartição de Assuntos Civis e Acção Psicológica). Essa posição permitiu-lhe uma relativa aproximação ao general Spínola, cujo perfil e desempenho pôde observar durante os anos em que coexistiram naquele teatro de guerra.

No seu livro Alvorada em Abril, publicado em 1977, Otelo de Carvalho procura delinear o retrato do famoso general. Torna-se evidente, ao correr de dezenas de páginas, que não morria de amores pelo comandante-chefe (a quem ele, e outros camaradas, chamavam o Velho). Nas suas próprias palavras: Admirando o Velho como chefe militar, não o respeitava como homem.

Assim, ainda que lhe reconheça o carisma, as extraordinárias capacidades de liderança, a enorme coragem física, a invulgar resistência e a inesgotável capacidade de trabalho, Otelo atribui a Spínola o propósito de apenas desejar aproveitar a comissão na Guiné para se projectar para voos mais altos. A sua ambição é um cavalo selvagem que mal consegue dominar. Sabe o que quer e para onde vai. A Presidência da República atrai-o com uma força irresistível.


Autoritário, sanguíneo, por vezes irascível, o general Spínola – segundo Otelo - conduzia os seus batalhões da Guiné através do medo. Com um perfil operacional inconfundível – de camuflado, monóculo, luvas e pingalim – o comandante-chefe tinha o hábito de poisar sem aviso junto de qualquer unidade, procurando detectar falhas, negligências ou o mais pequeno sinal de incompetência.

Foi assim que muitos comandantes se viram afastados dos postos perante formaturas dos seus homens, o que equivalia, praticamente, à morte militar do oficial atingido. Mas o Velho, ainda de acordo com Otelo, colhia depois o fruto dessas acções de terror auto-infligidas, obtendo das forças no terreno um elevadíssimo nível de operacionalidade e eficácia – tudo à custa de dezenas de noites insones, nervos esfrangalhados e envelhecimentos precoces.

O general Spínola mostrava-se particularmente atento à divulgação, pelos meios de comunicação social, da sua acção governativa e do seu modo de fazer a guerra. Quase sempre seguido pela imprensa e pelos meios televisivos, raro era o dia em que não tomava lugar num helicóptero para visitar um ou mais destacamentos militares, contactar populações nativas, inspeccionar a instrução de novas companhias de milícias, presidir a juramentos de bandeira ou inaugurar vários melhoramentos no território.

Tudo isto  lhe granjeou, na Guiné, em Portugal e em muitos países estrangeiros, um prestígio imenso e uma auréola de “herói militar” que o transformou na personagem central de numerosas reportagens e figura frequentíssima em capas de revistas.

Otelo, porém, admitindo embora as excelsas qualidades militares do general, achava que este as aplicava, embora invocando permanentemente “a Pátria”, em exclusivo proveito próprio, para seu engrandecimento e satisfação narcísica da sua vaidade e da sua ambição pessoal. Os seus defeitos sobrepujavam as qualidades (…) Medularmente vaidoso e autoritário, sempre o reconheci totalmente incapaz de se atribuir o mínimo erro ou de debitar a mais suave autocrítica. Sendo detentor da razão e da verdade absolutas, era com displicência e sem remorso que liquidava o bode expiatório escolhido para arcar com as responsabilidades de qualquer falhanço pessoal.

Spínola passando revista a tropas guineenses do Exército Português

 A propósito da irresistível (por vezes quase suicida) inclinação de Spínola para o exibicionismo e a auto-promoção, Otelo de Carvalho narra um extraordinário episódio ocorrido entre o general e um membro das milícias africanas, na povoação de Tite, margem sul do rio Geba.

Por essa altura, em Janeiro de 1971, estava de visita à Guiné-Bissau um jornalista norte-americano, Jimmy Hoagland, correspondente do Washington Post em Nairobi. Otelo, que dominava bem o idioma inglês, servia-lhe de cicerone nas suas andanças pela colónia. Num dia em que o general Spínola tinha resolvido ir a Tite para assistir à sessão final de instrução da milícia africana, Otelo levou o visitante até lá e apresentou-o ao comandante-chefe.

Spínola passou revista aos novos combatentes, falou à formatura e presenciou com agrado as evoluções de ordem unida. De repente, perguntou: Qual é, de todos os instruendos, o melhor atirador? Os oficiais responsáveis fizeram avançar um negro baixo, de olhos vivos: É este, meu general. Chamamos-lhe “o Americano”. Jimmy Hoagland achou graça à coincidência e houve gargalhada geral entre os circunstantes.

Spínola perguntou ao rapaz: Então, olha lá: como é que gostas mais de fazer fogo com a espingarda? De pé, de joelhos, deitado ou sentado? O soldado respondeu que preferia ficar deitado no chão. Bom, então agora quero ver a tua pontaria a cem metros do alvo. Deitas-te aqui e vais apontar e disparar para o alvo que eu indicar.

O soldado obedeceu, encostou a arma à cara e preparou-se para fazer fogo. Ante o espanto geral, o general encaminhou-se calmamente para a zona dos alvos-silhueta, a cem metros de distância, e postou-se junto de um deles. O comandante do batalhão, aflito, apressou-se a acompanhá-lo, mas o general ordenou: Vá lá pró pé dos outros. O comandante, um tenente-coronel, insistiu em ficar, mas Spínola não esteve pelos ajustes. Vá lá para trás, já lhe disse. O comandante, que suava frio, retirou enfim.

Spínola junto dos alvos da carreira de tiro

O general apontou com o pingalim para um dos alvos, a um escasso metro de distância dele, e comandou: Estás a ver este? Atira para ele.
O comandante do batalhão, cada vez mais angustiado, torcia as mãos. O Americano, de olhos esbugalhados, esperava a ordem para disparar. Spínola impacientou-se: Então o que é que há?
O comandante ripostou: Estamos à espera de que o meu general saia daí!
Spínola, furioso, voltou à carga: Não saio nada daqui. O gajo que dispare. Se é bom atirador, não falha o alvo. Vamos lá, depressa.
Jimmy Hoagland, o jornalista, perguntava a Otelo: Mas o homem é doido ou quê? Ele sabe que o “Americano” só tem 49 dias de instrução acelerada e nunca tinha visto antes uma espingarda?

O comandante do batalhão, sem outra saída, deu finalmente voz de fogo e fechou os olhos. Spínola, ao lado do alvo, não se mexia. O Americano disparou uma, duas, três… dez vezes.
Após cada um dos dez tiros, o general apontava o impacte da bala com o pingalim e elogiava o atirador – que não falhou uma única vez.

Toda a gente soprou de alívio quando a série de disparos terminou e Spínola chamou toda a gente para que se apreciassem os resultados. O Americano passara no teste – e o general convencera-se de que também passara no teste do jornalista norte-americano.
Piscando o olho a Otelo, revelou o que lhe ia na alma: Então o que disse o jornalista disto? Ficou de boca aberta, não? Nunca tinha visto uma coisa assim.
Otelo retorquiu: Ele já me deu a sua opinião.
- Ah! Sim? E então?
- Diz que o meu general é doido.
E Otelo rematou assim a narrativa: Spínola, feliz, exultante, ria à gargalhada. Traduzi para Jimmy. Riu também.


Veja mais um episódio passado entre estas duas personagens - aqui

Saiba mais sobre o general António de Spínola - aqui
Saiba mais sobre o coronel Otelo Saraiva de Carvalho - aqui


sábado, 10 de julho de 2021

O projectado e medonho império colonial de Hitler na Europa (Rússia - 1941)

 

Tropas alemãs invadem a União Soviética


O objectivo de construir um império da Alemanha no Leste da Europa, sobretudo à custa da Rússia comunista, era há muitos anos defendido por Adolf Hitler, que se baseava na necessidade de expandir o “espaço vital” do povo germânico.

Ele não fazia segredo da sua admiração pelo império colonial britânico, especialmente pela sua “jóia da Coroa”, a Índia, onde centenas de milhões de seres humanos eram subjugados e “mantidos na ordem” por uns poucos milhares de soldados. A ideia de Hitler consistia em reproduzir na Rússia aquilo que os britânicos tinham feito na Índia.

Ainda que a invasão da União Soviética tivesse sido apresentada ao povo alemão como uma acção preventiva ("fazemos isto antes que eles tomem a iniciativa de nos fazerem o mesmo"), o propósito final era o da construção desse império.

Foi por isso que, a 22 de Junho de 1941, Hitler lançou sobre a União Soviética mais de três milhões de homens, apoiados por milhares de tanques, aviões e veículos blindados.


Hitler examina os mapas das operações militares

As primeiras semanas dos combates pareceram mais do que auspiciosas aos invasores, que aprisionaram centenas de milhares de soldados soviéticos e destruíram no solo grande parte da aviação de guerra de Estaline.

Hitler, e os seus generais, exultavam, considerando que a guerra estava ganha. Chegou a prever-se, tal a velocidade e a mortífera eficácia do avanço, uma desmobilização parcial do exército invasor, já considerado excedentário.

Como relata Ian Kershaw na sua excelente biografia do ditador alemão, este revelou aos que o rodeavam, nessas semanas triunfais, as suas ideias delirantes – e criminosamente desumanas - acerca do sonhado império colonial na Rússia. 

Depois da guerra, cujo final se previa para breve, grandes extensões seriam ocupadas por soldados-camponeses alemães, capazes de cultivarem a terra e de a defenderem em caso de necessidade.

Tropas alemãs na Rússia: um rasto de destruição e morte


A fim de que os alemães tivessem espaço para se instalar, milhões de seres humanos seriam deportados para as terras inóspitas de além-Urais. A sobrevivência desses deslocados não constituía qualquer preocupação para Hitler, para o qual seria preferível que eles morressem à fome: na sua visão doentia, o povo russo era sub-humano e não servia para mais nada além do trabalho forçado imposto pela violência.

O comunismo seria impiedosamente erradicado através da execução sumária de qualquer indivíduo tido como influente ou “perigoso”. Moscovo e Leninegrado (São Petersburgo) seriam arrasadas “para exemplo”.

A Crimeia seria transformada numa espécie de colónia de férias de luxo, para onde os cidadãos alemães viajariam, ao longo de magníficas autoestradas (a construir), nos “carros do povo” que todos possuiriam (os famosos Volkswagen).

Soldados russos a caminho do cativeiro


Quanto à justificação que assistia à Alemanha para fazer tudo isto, Hitler era de uma franqueza brutalmente cruel: o seu direito era o da força. No entendimento dele, um povo culturalmente superior (como ele considerava os germânicos relativamente aos eslavos) não necessitava de outros argumentos para se apoderar das terras alheias…

Segundo Kershaw, ele resumia a questão da seguinte forma:

Se agora causo mal aos russos, a razão é que, caso contrário, seriam eles a causar-me mal. O querido Deus faz com que as coisas sejam assim. Ele, subitamente, atira as massas da humanidade para a Terra e cada um tem de olhar por si próprio e encontrar maneira de se safar. Uma pessoa tira uma coisa a outra. E, no fim, só se pode dizer que o mais forte ganha. Isto é, afinal de contas, a ordem mais judiciosa das coisas.


Última fotografia de Hitler, à entrada do seu "bunker", em Berlim (1945)


Dentro de poucas semanas, este sonho grandioso e maligno principiaria a esfumar-se, uma vez que se provou, em duros combates no terreno, que Hitler e os seus conselheiros tinham subestimado grosseiramente o poderio militar soviético e a capacidade de resistência dos russos.

Menos de quatro anos depois, em finais de Abril de 1945, o ansiado “império colonial alemão na Europa” acabaria reduzido ao espaço exíguo e insalubre de um “bunker” miserável de Berlim, transformado no primeiro túmulo de um ditador louco e suicida…

sábado, 15 de maio de 2021

Maria Quitéria de Jesus - Heroína da Independência do Brasil (1792-1853) - [REPOSIÇÃO]

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Maria Quitéria
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Maria Quitéria de Jesus nasceu no dia 27 de Julho de 1792, no sítio Licurizeiro, em São José das Itaporocas (Cachoeira), na Bahia.
 A sua história foi objecto de divergências entre os historiadores, começando logo no tocante à filiação. Mas o mais provável é que tenha sido a primeira filha dos brasileiros Gonçalo Alves de Almeida e Quitéria Maria de Jesus, que morreu quando a filha tinha apenas nove anos.

A criança assumiu o comando da casa e a criação dos dois irmãos mais novos. Preocupado com os filhos, Gonçalo casou-se pela segunda vez, mas a esposa morreu pouco tempo depois. Gonçalo casou-se de novo e teve mais três filhos com esta esposa - que, diga-se de passagem, não via com bons olhos os modos independentes de Maria Quitéria.

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Maria Quitéria com a sua farda especial
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Mulher bonita, altiva e corajosa, Maria Quitéria montava, caçava e manejava armas de fogo. Tornou-se soldado em 1822, quando o Recôncavo Baiano lutava contra os portugueses a favor da consolidação da independência do Brasil.

O historiador Bernardino José de Souza, autor de Heroínas Baianas, explica que, no dia 6 de Setembro daquele ano, o Conselho Interino do Governo da Província se instalou na Vila de Cachoeira, a 80 km da Serra da Agulha, local onde morava a família de Maria Quitéria.
O Conselho defendia o movimento pró-independência da Bahia e visava obter adesões voluntárias para reforçar as suas tropas.

Maria Quitéria mostrou-se interessada em se alistar, mas foi advertida pelo pai de que "mulheres não vão à guerra".
Ela, então, fugiu: ajudada por sua irmã Teresa, cortou os cabelos, vestiu a farda de seu cunhado e tomou emprestado o seu sobrenome, Medeiros.

Ingressou no Regimento de Artilharia, onde permaneceu até ser descoberta, semanas depois.
Foi então transferida para o Batalhão dos Periquitos e à sua farda foi acrescentado um saiote.

D. Pedro I proclama a independência do Brasil
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Maria Quitéria fez-se notada pela destreza no manejo das armas e pela bravura em combate. No recontro da Pituba, em Fevereiro de 1823, atacou uma trincheira inimiga e fez vários prisioneiros.

Em Abril do mesmo ano, na barra do Paraguaçu, ao lado de outras mulheres e com água pelo peito, avançou contra uma barca portuguesa e impediu o desembarque dos adversários.

Em Julho seguinte, quando o Exército Libertador entrou na cidade de Salvador, ela foi saudada e homenageada pela população.

No dia 20 de Agosto foi recebida no Rio de Janeiro pelo próprio imperador D. Pedro I (um português tornado brasileiro), que lhe concedeu a Condecoração de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro e um soldo de alferes de linha.

Maria Quitéria aproveitou a ocasião para pedir a D. Pedro uma carta solicitando ao pai que a perdoasse.

Estátua de Maria Quitéria (Salvador - Bahia - Brasil)
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A heroína retornou à fazenda Serra da Agulha e, meses depois, casou-se com o lavrador Gabriel Pereira de Brito, com quem teve uma única filha, Luísa Maria da Conceição.

Em 1835, já viúva, mudou-se para Feira de Santana, a fim de intervir no inventário de seu pai. Impaciente com a morosidade da Justiça, partiu para Salvador, onde morou até ao final da vida sobrevivendo unicamente com o soldo de alferes.

Faleceu no dia 21 de Agosto de 1853, com 61 anos.

Existe uma medalha militar e uma comenda na Câmara Municipal de Salvador que levam o seu nome.

Por determinação ministerial, a imagem de Maria Quitéria passou a estar presente em todos os quartéis, estabelecimentos e repartições militares do país.

Por decreto presidencial de 28 de Junho de 1996, ela foi reconhecida como Patrona do Quadro Complementar de Oficiais do Exército Brasileiro.

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(Extraído, com adaptações, de: Memória VivaMulheres Pioneiras)
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Bibliografia: Heroínas Baianas, de Bernardino José de Souza; As heroínas do Brasil, de Consuelo Pondé de Sena; Dicionário das Mulheres do Brasil, organizado por Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil; Mulheres Brasileiras, da Galeria da Fundação Osório e Nossas Mulheres, edição especial da revista Cláudia de Abril de 2000 em comemoração dos 500 anos do Brasil.

Hino do Império Brasileiro: