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terça-feira, 23 de fevereiro de 2021
A democracia de Espanha no fio da navalha (Golpe militar de 23-Fevereiro-1981)
Pelas seis horas e vinte e três minutos da tarde, no dia 23 de Fevereiro de 1981 (completam-se hoje, precisamente, 40 anos), o tenente-coronel Antonio Tejero Molina, à testa de duas centenas de guardas civis, irrompeu de pistola em punho no Congresso dos Deputados de Espanha, em Madrid, e, de mão esquerda erguida num gesto teatralmente imperioso, ordenou que os presentes se atirassem imediatamente para o chão.
A maioria obedeceu, escondendo-se por trás das cadeiras em que assistiam à sessão daquele dia. As excepções foram muito poucas e, por isso, mais honrosas.
O que estava em curso com aquela inopinada invasão era uma tentativa (mais uma) de subversão da ordem constitucional há poucos anos implantada no país.
Francisco Franco, vencedor da Guerra Civil (1936-1939), morrera em Novembro de 1975, depois de ter governado a Espanha, com mão rija e implacável, durante perto de quatro décadas.
Deixara expressamente como sucessor, a título de rei, Juan Carlos I. Na mente do velho ditador, como na de muitos dos seus seguidores, o novo soberano - criado e educado dentro do regime, sob apertada vigilância - seria o melhor garante da sobrevivência do franquismo após o desaparecimento físico do seu criador.
Todavia, e ainda que as Forças Armadas e o aparelho do Estado continuassem a contar, ao mais alto nível, com elevado número de simpatizantes e saudosos de Franco, as coisas não se passaram como este havia planeado.
O rei Juan Carlos, agora Chefe de Estado, não assumiu o comportamento previsto. Optando pela via das reformas, conseguiu mesmo que o país fosse guinando, aos poucos, em direcção à democracia plena.
Os partidos políticos foram legalizados (incluindo o Partido Comunista), houve eleições legislativas (1977) e, por referendo popular, em Dezembro de 1978, a Espanha teve finalmente a sua Constituição democrática (que contemplava a monarquia parlamentar e abria caminho às autonomias das diversas regiões do país).
Os franquistas, de uma forma geral, e, particularmente, os que sobreviviam ainda nas Forças Armadas e nos centros de poder civil, não apreciaram a evolução dos acontecimentos (sobretudo a legalização dos comunistas e as previsíveis autonomias regionais). E alguns resolveram agir.
O vice-presidente do Governo, tenente-general Gutiérrez Mellado (de costas, agarrado por guardas), tenta arrojadamente opor-se aos golpistas. À direita, semi-encoberto, Tejero Molina contempla a cena e ordena que Mellado se torne a sentar. À esquerda, nas escadas, o presidente do Governo, Adolfo Suárez (que estava demissionário na altura), precipita-se para o defender. Foi então que se ouviram disparos que lançaram o pânico entre os deputados.
O tenente-coronel Tejero Molina, da Guarda Civil, era um desses descontentes, inconformados com a desagregação do regime que saíra da Guerra Civil.
Franquista até à medula, impulsivo e adepto de intervenções violentas, já tinha estado anteriormente implicado numa tentativa de golpe que lhe valera uns meses de prisão.
Mal saiu da cadeia regressou à actividade conspirativa, a qual haveria de culminar com esta invasão do Palacio de las Cortes e com o sequestro dos deputados e ministros ali presentes.
Os três principais protagonistas do golpe de 23 de Fevereiro: Tejero, Del Bosch e Armada.
Mas Tejero era apenas um homem de mão do golpe militar. Como se provaria em tribunal, por trás dele estavam duas figuras poderosas das Forças Armadas: os generais Alfonso Armada e Jaime Milans del Bosch.
Armada fora, há muitos anos, instrutor militar e preceptor de Juan Carlos I. Mais recentemente, exercera o cargo de secretário-geral da Casa do Rei, sendo considerado bastante próximo do soberano.
Milans del Bosch era capitão-general da Região Militar de Valência e dispunha de poder militar considerável (milhares de homens e dezenas de tanques). Enquanto Tejero levava a cabo a intervenção no Palacio de las Cortes, ele fez sair os seus tanques em direcção a Madrid.
Nessa altura, Del Bosch contava com a suposta influência de Alfonso Armada junto do rei Juan Carlos, por forma a obter a adesão ao golpe das restantes Regiões Militares de Espanha.
Tanques de Milans del Bosch rumam a Madrid.
Tejero Molina nunca fez segredo de que se tratava de uma figura secundária (embora importante) da acção em curso. Aliás, nas diversas intervenções que fez perante os deputados, naquele dia 23, anunciou que em breve receberiam a visita de um militar de prestígio que tomaria o poder nas suas mãos.
Tudo indica que os revolucionários se deixaram conduzir por alguns equívocos, contraditórios entre si, que condenariam o golpe ao malogro.
Alfonso Armada pensava numa "revolução suave", em que ele próprio ficaria à frente de um governo integrado pelos dirigentes dos diversos partidos políticos (com socialistas, comunistas e gente de direita).
Milans del Bosch não agia nesse comprimento de onda: adepto de Franco, tal como Tejero, cogitava na imposição pura e simples, pela força, de um governo militar.
Tejero Molina, ideologicamente mais próximo de Del Bosch, diria mais tarde, quando Armada se avistou com ele no Palacio de las Cortes, que não se tinha arriscado daquela maneira para abrir as portas a um Governo integrado por socialistas e comunistas.
O rei Juan Carlos I fala aos espanhóis ao princípio da madrugada de 24 de Fevereiro de 1981. O golpe militar tinha falhado.
Mas o que fez gorar por inteiro as expectativas dos golpistas foi a atitude do rei Juan Carlos. Não obstante algumas hesitações e ambiguidades, o soberano decidiu opor-se frontalmente, através de várias iniciativas, à acção revolucionária.
Em primeiro lugar, não autorizou que Alfonso Armada se dirigisse aos capitães-generais das Regiões Militares (o general pretendia fazê-lo em nome do rei, muito provavelmente para os convidar a aderir ao golpe).
Assim, quem falou com esses chefes militares foi o próprio Juan Carlos, e de todos obteve a garantia de que se manteriam nos quartéis sem dar qualquer apoio ao avanço de Del Bosch.
Em segundo lugar, o rei contactou directamente o general Milans del Bosch, que se encaminhava para Madrid, e ordenou-lhe que retornasse aos aquartelamentos de Valência. A princípio renitente, e depois de algumas insistências do rei ao longo da madrugada, o general acabou por obedecer.
Mas o mais importante foi porventura a mensagem que Juan Carlos dirigiu aos espanhóis (transmitida pela TV à 1h 14m da madrugada de 24 de Fevereiro). As palavras do rei precipitaram definitivamente o falhanço do golpe militar:
A Coroa, símbolo da permanência e da unidade da pátria, não pode de nenhuma maneira tolerar que alguns, por meio de actos ou atitudes, possam travar pela força o processo democrático que a Constituição consagrou através da livre expressão do povo espanhol.
Na manhã de 24 de Fevereiro, até o impulsivo Tejero Molina percebeu que tudo estava perdido. Dezassete horas depois do sequestro, mandou soltar os deputados e governantes que tinha em seu poder e resolveu render-se.
A única coisa que pediu é que não fossem julgados os que, com patente inferior à de tenente, o tinham acompanhado naquela desesperada aventura.
Tejero Molina, há pouco mais de um ano (Outubro de 2019), no cemitério de Mingorrubio onde Francisco Franco foi inumado após ter sido retirado da sua sepultura no Vale dos Caídos.
Em 1983, os três principais responsáveis do golpe - Tejero, Del Bosch e Armada - foram condenados a 30 anos de prisão, mas nenhum deles cumpriria integralmente a pena (foram ainda condenadas, embora a penas inferiores, cerca de três dezenas de pessoas).
Alfonso Armada saiu em liberdade no ano de 1988, e Del Bosch em 1990.
O último a ser libertado, em Dezembro de 1996, foi Tejero Molina. Contando actualmente 88 anos de idade, jamais enjeitou as convicções políticas e a sua admiração por Francisco Franco.
Quando, em Outubro de 2019, o antigo ditador foi retirado do seu túmulo, no Vale dos Caídos, para receber nova sepultura em El Pardo-Mingorrubio (arredores de Madrid), Tejero fez questão de comparecer no cemitério para acompanhar a cerimónia.
Provando que muitas das feridas da Guerra Civil (aqui)continuam por fechar no tecido político espanhol, o antigo golpista foi acolhido com aplausos e expressões de júbilo por parte de algumas centenas de pessoas. Gritaram continuadamente o seu nome e prometeram-lhe obediência em caso de necessidade: Às suas ordens, meu coronel!
Chamaram-lhe, ainda, Tejero, grande de Espanha.
Nota Final - Parte da história daquele 23 de Fevereiro de 1981 (o 23-F, como dizem os espanhóis) continua mergulhada em sombras e interrogações sem resposta. Muitos documentos da época continuam classificados e, portanto, fora do alcance dos investigadores, tal como se acham interditas as gravações das conversas telefónicas entre os principais intervenientes.
Quando - e se - algum dia vierem a público, será talvez possível esclarecer alguns comportamentos menos conhecidos, pondo fim, de uma vez por todas, às dúvidas, suspeitas e controvérsias que se mantêm há quatro décadas.
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