Nos Estados Unidos, com a queda das máscaras, os cúmplices de Donald Trump - ao mais alto nível - vão saltando para o palco a cada dia que passa. Sobretudo no Partido Republicano, onde não faltam os que se empenham em branquear a todo o custo o que foi a criminosa carreira do seu ídolo durante a presidência.
Desculpam-lhe o comportamento, as mentiras, os embustes, as difamações, os atentados contra as regras da democracia, contra as instituições, contra a saúde pública, contra a decência. Um pesadelo que Trump decidiu rematar, sem escrúpulos, à vista de toda a gente - numa espécie de apoteose da irresponsabilidade e da loucura -, com o comando de uma insurreição contra a democracia do seu país: a invasão do Capitólio, que produziu cinco vítimas mortais e enormes danos, alguns talvez irreparáveis, nas estruturas democráticas da nação.
É urgente que este homem seja investigado, detido, acusado e, muito provavelmente, condenado. Para que o crime não sirva de modelo a outros alienados. E para que o Partido Republicano finalmente se regenere, extirpando os tumores que o corroem e que, para além de perigoso, o tornam indigno do seu passado. (Senhores, lembrem-se ao menos de Abraham Lincoln!)
Sobre o que foi a acção de Trump e sobre os perigos que se escondem no seu horrendo legado, o conceituado jornalista Miguel Sousa Tavares escreveu há dias um texto notável, de que respigamos alguns excertos (*).
"(...) Um homem não faz um país nem inventa 75 milhões de seguidores do nada. Sobretudo um homem tão desprovido de qualidades, de competências e de simples decência (...).
Donald Trump não despertou uma América que não existia. Aquela multidão de arruaceiros que assaltou o Capitólio saiu das profundezas da América onde sempre esteve, agarrada às suas latas de cerveja Bud, às suas espingardas de assalto, à sua alarve ignorância do mundo, à sua arrogante crença na supremacia de uma América branca, racista e anti-elitista, e excitada por pregadores evangelistas que confundem a virtude com o sucesso e o pecado com a pobreza.
O que durante décadas segurou a democracia americana, evitando que os nostálgicos do Far-West triunfassem sobre os herdeiros da Constituição, foi o célebre e tão louvado sistema de poderes e contrapoderes. Mesmo o poder de um Presidente, o maior de todos eles, sendo necessário, encontrar-se-ia sempre limitado pelos poderes do Congresso, dos tribunais ou da imprensa.
Nestes quatro anos tenebrosos da sua presidência, Trump esteve à beira de conseguir subverter tudo isso, esteve à beira de conseguir subverter a democracia americana por via aparentemente legal e através da intimidação e da total ausência de escrúpulos. Por pouco não tomou conta da Câmara dos Representantes, e só agora, na saída, perdeu, por culpa própria, a maioria no Senado, onde os republicanos se curvaram durante todo o seu mandato, dóceis e amedrontados, a todas as suas tropelias.
Isso permitiu-lhe escapar a um impeachment, mesmo ficando claro que chantageara um governo estrangeiro para que este abrisse uma investigação criminal contra Joe Biden, e que, tanto aí como noutros casos, havia uma inexplicável conivência entre ele e Vladimir Putin.
E permitiu-lhe nomear três juízes ultraconservadores para o Supremo Tribunal de Justiça e gabar-se, no seu discurso na base de Andrews, de haver nomeado mais uns 300 juízes federais de direita para tribunais em todo o país.
Depois do Congresso, o poder judicial.
Restava a imprensa, que começou logo a ser atacada no dia da posse, com uma estratégia que, de tão absurda, se viria a revelar quase inatacável: a teoria dos "factos alternativos" (...).
E o que fez Donald Trump com este imenso poder conquistado pela mentira, pela manipulação e pela intimidação?
Na frente externa, conspirou ou conciliou com os inimigos da América - a Rússia e a Coreia do Norte -, apoiou todos os ditadores disponíveis, com excepção de Cuba e Venezuela, levou as relações com a China a um nível perigoso e contraproducente, retirou os Estados Unidos de todos os acordos multilaterais, incluindo o Acordo de Paris contra as alterações climáticas, cuja verdade também negou, e insultou e indispôs-se com todos os aliados tradicionais.
Na frente interna, fez o seu muro na fronteira com o México e separou pais de filhos emigrados, desregulou a economia e aumentou as desigualdades sociais e económicas, destruiu quanto pôde o Obamacare, abriu o Alasca à exploração petrolífera e recomendou aos americanos que bebessem lixívia contra a covid.
Um momento houve em que se sentiu de tal maneira poderoso e impune, de tal maneira amado na sua bestialidade humana, que chegou a declarar que podia sair aos tiros na 5.ª Avenida que nada lhe aconteceria. Se tivesse um cavalo teria feito dele senador. [como fez Calígula, o louco imperador romano]
No fim só perdeu porque levou longe de mais o seu delírio e a sua loucura de poder: assustou um número suficiente de eleitores, de juízes e de congressistas para ainda poder ser travado.
Mas não é certo que a herança que deixa, esta "guerra incivil", como lhe chamou Joe Biden, será possível de curar apenas com as bonitas palavras do novo Presidente dos Estados Unidos.
Não é certo que os apelos à unidade e a trazer de novo "a América a liderar em nome do bem", esses belos princípios que dantes tocavam a reunir a grande nação americana, ainda signifiquem o mesmo para a sua grande maioria.
A besta saiu do covil, andou à solta durante quatro anos e vai continuar por aí à solta numa rede social perto de si.
A turbamulta dos assaltantes do Congresso, representando dezenas de milhões de outros, descobriu que a sua liberdade tem o fascínio e o poder de destruir a liberdade de todos os outros.
E que essa é a fraqueza da democracia.
Não sei se Joe Biden terá feito bem em estender-lhe a mão e não a espada."
Sem comentários:
Enviar um comentário