Pequenas e grandes histórias da História e mensagens mais ou menos amenas sobre vidas, causas, culturas, quotidianos, pensamentos, experiências, mundo...
Diz que era uma velhinha que sabia andar de
lambreta. Todo dia ela passava pela fronteira montada na lambreta, com um bruto
saco atrás.
O pessoal da Alfândega - tudo malandro velho - começou
a desconfiar da velhinha.
Um dia, quando ela vinha na lambreta com o
saco atrás, o fiscal da Alfândega mandou ela parar. A velhinha parou e então o
fiscal perguntou assim pra ela:
- Escuta aqui, vovozinha, a senhora passa por
aqui todo dia, com esse saco aí atrás. Que diabo a senhora leva nesse saco?
A velhinha sorriu com os poucos dentes que lhe
restavam e mais outros, que ela adquirira no odontólogo, e respondeu:
- É areia!
Aí quem sorriu foi o fiscal. Achou que não era
areia nenhuma e mandou a velhinha saltar da lambreta para examinar o saco.
A
velhinha saltou, o fiscal esvaziou o saco e dentro só tinha areia. Muito
encabulado, ordenou à velhinha que fosse em frente. Ela montou na lambreta e
foi embora, com o saco de areia atrás.
Mas o fiscal continuava desconfiado ainda. Talvez a
velhinha passasse um dia com areia e no outro com muamba dentro daquele
maldito saco.
No dia seguinte, quando ela passou na lambreta com o saco atrás,
o fiscal mandou parar outra vez. Perguntou o que é que ela levava no saco e ela
respondeu que era areia, uai!
O fiscal examinou e era mesmo.
Durante um mês seguido o fiscal interceptou a
velhinha e, todas as vezes, o que ela levava no saco era areia.
Diz que foi aí que o fiscal se chateou:
- Olha, vovozinha, eu sou fiscal de alfândega com 40 anos de serviço. Manjo essa coisa de contrabando pra burro. Ninguém me tira da cabeça que a senhora é contrabandista.
- Mas no saco só tem areia! - insistiu a
velhinha. E já ia tocar a lambreta, quando o fiscal propôs:
- Eu prometo à senhora que deixo a senhora
passar. Não dou parte, não apreendo, não conto nada a ninguém, mas a senhora
vai me dizer: qual é o contrabando que a senhora está passando por aqui todos
os dias?
- O senhor promete que não "espalha"?
- quis saber a velhinha.
Uma das plantas que mais chamaram a atenção dos portugueses, recém-chegados ao Brasil, foi aquela que denominaram erva-santa, também conhecida por fumo, pétum e petigma.
Era o tabaco.
Alguns jesuítas, como o padre Fernão Cardim (1549-1625), deixaram notas interessantes sobre o novo e estranho vegetal. Referiram, com espanto, o hábito de "beber fumo" que os índios gostosamente patenteavam a partir da combustão das suas folhas.
Diz, entre outras coisas, Cardim:
Costumam estes gentios beber fumo de petigma, ou erva-santa.
Esclarecia que os índios secavam a planta e que a introduziam num canudo feito de folha de palma:
e pondo-lhe o fogo numa ponta metem a outra na boca, e assim estão chupando e bebendo aquele fumo, e o têm por grande mimo e regalo; e deitados em suas redes gastam em tomar estas fumaças parte dos dias e das noites.
A alguns faz muito mal, e os atordoa e embebeda; a outros faz bem e lhes faz deitar muitas reimas [catarro; expectoração] pela boca.
O hábito de "beber fumo" viria posteriormente a ser criticado por alguns padres. Todavia, naquela altura, os eventuais malefícios da planta eram fartamente compensados pelos benefícios que ela, alegadamente, proporcionava.
Acrescenta ainda Cardim sobre o fumo:
As mulheres também o bebem, mas são as velhas e enfermas, porque ele é muito medicinal, principalmente para os doentes de asma, cabeça ou estômago.
Não tardou muito até que os portugueses seguissem, nisto como noutras coisas, o exemplo dos índios:
e daqui - informa Cardim com um laivo de censura - vem grande parte de os portugueses beberem este fumo, e o têm por vício, ou por preguiça, e imitando os índios gastam nisso dias e noites.
Muitos dos primeiros colonizadores do Brasil tornaram-se fumadores inveterados.
Um dos mais famosos foi o donatário da capitania sulista do Espírito Santo, o infeliz Vasco Fernandes Coutinho, fidalgo português que acabou, pobre e desvalido, a sua aventura brasileira, envolto nas fumaças esbranquiçadas e melancólicas do vício recém-adquirido...
Bibliografia:
Fernão Cardim - Tratados da Terra e Gente do Brasil.
O embaixador de Inglaterra em Portugal, Alexander Ellis, escreveu o seguinte texto no momento em que deixou o cargo (divulgado pelo jornal Expresso em 18 de Dezembro de 2010).
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Portugueses:
2010 tem sido um ano difícil para muitos; incerteza, mudanças, ansiedade sobre o futuro.
O espírito do momento é de pessimismo, não de alegria. Mas o ânimo certo para entrar na época natalícia deve ser diferente. Por isso permitam-me, em vésperas da minha partida pela segunda vez deste pequeno jardim, eleger dez coisas que espero bem que nunca mudem em Portugal.
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1. A ligação intergeracional
Portugal é um país em que os jovens e os velhos conversam - normalmente dentro do contexto familiar. O estatuto de avô é altíssimo na sociedade portuguesa - e ainda bem. Os portugueses respeitam a primeira e a terceira idade, para o benefício de todos.
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2. O lugar central da comida na vida diária
O almoço conta - não uma sandes comida com pressa e mal digerida, mas uma sopa, um prato quente, etc., tudo comido à mesa e em companhia. Também aqui se reforça uma ligação com a família.
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3. A variedade da paisagem
Não conheço outro pais onde seja possível ver tanta coisa num dia só, desde a imponência do rio Douro até à beleza das planícies do Alentejo, passando pelos planaltos e pela serra da Beira Interior.
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4. A tolerância
Nunca vivi num país que aceite tão bem os estrangeiros. Não é por acaso que Portugal é considerado um dos países mais abertos aos emigrantes pelo estudo internacional MIPEX.
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5. O café e os cafés
Os lugares são simples, acolhedores e agradáveis; a bebida é um pequeno prazer diário, especialmente quando acompanhado por um pastel de nata quente.
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6. A inocência
É difícil descrever esta ideia em poucas palavras sem parecer paternalista; mas vi no meu primeiro fim-de-semana em Portugal, numa festa popular em Vila Real, adolescentes a dançar danças tradicionais com uma alegria e abertura que têm, na sua raiz, uma certa inocência.
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7. Um profundo espírito de independência
Olhando para o mapa ibérico parece estranho que Portugal continue a ser um país independente.
Mas é - e não é por acaso.
No fundo de cada português há um espírito profundamente autónomo e independentista.
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8. As mulheres
O Adido de Defesa na Embaixada há quinze anos deu-me um conselho precioso:
Jovem, se quiser uma coisa para ser mesmo bem feita neste país, dê a tarefa a uma mulher.
Concordei tanto que me casei com uma portuguesa.
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9. A curiosidade e o conhecimento sobre o mundo
A influência de "lá" é evidente cá, na comida, nas artes, nos nomes.
Portugal é um pais ligado, e que quer continuar ligado, aos outros continentes do mundo.
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10. Que o dinheiro não é a coisa mais importante no mundo
As coisas boas de Portugal não são caras.
Antes pelo contrário: não há nada melhor do que sair da praia ao fim da tarde e comer um peixe grelhado, acompanhado por um simples copo de vinho.
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Não se morre de saudade (Carlos do Carmo):
Não se morre de saudade De saudade eu não morri Nem morro nesta ansiedade De viver, morrendo em ti
Não sou a flor que tu beijas Nem o Deus das tuas preces Não serei o que desejas Mas sou mais do que mereces
No banco verde da esperança Estou sentado à tua espera Continuo a ser criança No meu jardim de quimera
Sou pausa do teu recreio Sou o brinquedo quebrado És o livro que não leio Porque está sempre fechado
Traz a bola e vem brincar Traz o arco e vem correr Traz a corda e vem saltar Meu amor, p’ra eu te ver...
Diz que eram dois leões que fugiram do Jardim
Zoológico. Na hora da fuga cada um tomou um rumo, para despistar os
perseguidores. Um dos leões foi para as matas da Tijuca e outro foi para o
centro da cidade. Procuraram os leões de todo jeito mas ninguém encontrou.
Tinham sumido, que nem o leite.
Vai daí, depois de uma semana, para surpresa
geral, o leão que voltou foi justamente o que fugira para as matas da Tijuca.
Voltou magro, faminto e alquebrado. Foi preciso pedir a um deputado do PTB que
arranjasse vaga para ele no Jardim Zoológico outra vez, porque ninguém via
vantagem em reintegrar um leão tão carcomido assim.
E, como deputado do PTB
arranja sempre colocação para quem não interessa colocar, o leão foi
reconduzido à sua jaula.
Passaram-se oito meses e ninguém mais se
lembrava do leão que fugira para o centro da cidade, quando, um dia, o bruto
foi recapturado.
Voltou para o Jardim Zoológico gordo, sadio, vendendo saúde.
Apresentava aquele ar próspero do Augusto Frederico Schmidt que, para certas coisas,
também é leão.
Mal ficaram juntos de novo, o leão que fugira
para as florestas da Tijuca disse pro coleguinha:
– Puxa, rapaz, como é que
você conseguiu ficar na cidade esse tempo todo e ainda voltar com essa saúde?
Eu, que fugi para as matas da Tijuca, tive que pedir esmola, porque quase não
encontrava o que comer, como é então que você… vá, diz como foi.
O outro leão então explicou:
– Eu meti os
peitos e fui me esconder numa repartição pública. Cada dia eu comia um
funcionário e ninguém dava por falta dele.
– E por que voltou pra cá? Tinham acabado os funcionários?
– Nada disso. O que não acaba no Brasil é funcionário público. É que eu cometi
um erro gravíssimo: comi o diretor, idem um chefe de seção, funcionários
diversos, ninguém dava por falta.
No dia em que eu comi o cara que servia o
cafezinho… me apanharam.
O semanário O Cruzeiro foi uma das mais conhecidas e divulgadas revistas brasileiras, também muito popular em Portugal.
Pertencente ao grupo dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand (o Chatô), publicou-se entre 1928 e 1975.
Pela suas páginas desfilaram figuras como Carlos Lacerda, Rachel de Queiroz, Carlos Estêvão, Millôr Fernandes, O Amigo da Onça, Jean Manzon e muitos, muitos mais...
... tal como David Nasser (foto abaixo), fantástico jornalista, repórter, cronista - e, também, compositor musical (Nêga do Cabelo Duro...).
Filho de imigrantes libaneses, nasceu em 1917 e faleceu em 1980.
Distinguiu-se sobretudo pelas suas crónicas polémicas, de uma coragem, contundência e paixão incomuns.
Profissional controverso, usando métodos por vezes pouco ortodoxos, acabou por tornar-se figura incontornável do jornalismo brasileiro.
Continua a ser hoje um prazer passar os olhos pelo seu estilo inconfundível (como no sentido e magnífico texto que dedicou a Trás-os Montes, província nortenha de Portugal - reveja aqui).
Publica-se adiante uma prosa de homenagem que José Cândido de Carvalho (grande escritor, que evocámos aqui) lhe dedicou em 1964. Respeita-se a grafia brasileira.
David Nasser
"Uma tarde, lá pelos tempos de 1937, dava entrada na redação de “A Noite” um moço de andar marinheiro, meio adernado no vestir, de fala mansa e olhar de relâmpago.
O velho Castelar de Carvalho, com suas longas barbas de judeu das Escrituras, disse mais ou menos assim:
- Se eu fôsse dono desta baiúca (a baiúca era o seu querido jornal) botava êsse sujeitinho de 20 anos na balança e pagava o pêso dêle em ouro. Vale por uma redação inteira e equipada.
Olhei para o lado. O sujeitinho que Castelar de Carvalho queria contratar, a poder de barras de ouro do Banco do Brasil, era David Nasser em pessoa, de paletó-saco e jornal na mão.
Agora o velho Castelar é uma saudade e o ano de 1937 apenas uma lembrança de calendário. Mas a frase ficou: - Vale por uma redação inteira.
É claro que outros anos passaram e outras tardes morreram. A profecia do velho Castelar havia de ganhar corpo e alma. David Nasser firmou nome como um dos grandes mestres do jornalismo nesta e noutras praças nacionais e mundiais, incluindo Europa, Paris e Bahia.
Sua geografia perdeu a noção de fronteiras – o mundo passou a viajar na mala de David, ao lado de suas escôvas e passaportes.
Uma noite estava em Lisboa, na Havaneza de Eça de Queiroz. Outra noite, ao lado de uma fogueira, num naco do Saara, entrevistando um rei do areal qualquer.
O assunto às vezes não prestava. Mas o talentão de David recauchutava tudo, emprestava tonalidades de ouro (e ouro de lei) ao latão mais desmoralizado.
Nessas suas andanças de Marco Pólo há bilhetes e cartas de príncipes com trono e sem trono, de milionários, de mágicos, de ministros, de poetas e bandidos.
David Nasser em 1947
Perguntei a David, num dia de confidências, quais os tipos de sua predileção: - Os vagabundos.
Sim, ele tem um fraco todo especial, todo davidiano, pelos vagabundos, pelos andarilhos, pelos humildes.
As melhores histórias que gosta de contar são as histórias simples do povo, dos joões da silva, dos joaquins pereiras que falam maravilhosamente pela pena dêsse mestre da crônica e do panfleto.
Nisso, David está com a Bíblia: o reino dos céus não foi feito para os comerciantes de atacado, nem para os açambarcadores de feijão e açúcar. E nem para os burros.
Com o tempo, excelente mestre de estilo e vivência, David perdeu certas asperezas e mandacarus. Sua prosa de hoje tem claridades de cristal lavado. Cintila. É um poderoso escritor a serviço do jornalismo.
Sua crônica semanal é lida, e guardada, por milhões de brasileiros. No seu elenco há figuras de drama e de circo-de-cavalinho. A injustiça funciona nêle como mordida de cobra. Seja a injustiça no varejo ou no atacado, feita a um pequeno funcionário do montepio mais municipal ou ao político caído em desuso.
Os moinhos de vento de Dom Quixote estão sempre às ordens de David Nasser. Sancho Pança não faz parte de sua família espiritual. Nunca comeu de seu pão nem bebeu de seu vinho.
Certo político caixa-baixa, esperto como um esquilo, queria por fôrça ser destratado, em prosa ou em verso, por David Nasser. Procurei saber os motivos. O homenzinho, piscando o olhinho miúdo, foi taxativo: - Levo uma sova, meu caro, mas todo mundo vai tomar conhecimento da minha existência. Viro vedete nacional.
Engano do pobre político municipal. David não bate em gente de meio metro. Suas paradas, as mais ruidosas do Brasil, são na base dos jotas: JK, Jânio ou João Goulart. Não faz por menos. Sua pólvora não é para passarinho de vôo curto. Ou águia, ou tiro ao alvo.
Cá entre nós: gosto de ver David Nasser nessas batalhas campais. Há nelas cintilar de espadas, brilho de aço em noites de lua cheia. David é um mestre perfeito no ataque-arte que êle domina como ninguém neste país. Desmonta o adversário como um velho relojoeiro desmonta um relógio.
O tal político municipal, um esquilo de esperteza, tinha razão. Levava meia dúzia de brilhantes sarrafadas, mas comprava lugar na glória. Mesmo a poder de arnica e esparadrapo.
David Nasser (1917-1980)
Pois vos digo que são essas as minhas pequenas memórias de David Nasser. Todos nós, jornalistas de pequena cabotagem ou das largas navegações, temos um pouco de D’Artagnan, de personagem de capa e espada.
Alguns, no rolar dos anos, deixam o chapéu de plumas e o florete. Vão ser funcionários do Fomento Rural ou do Instituto da Piaçava. David não. Nasceu herói de Alexandre Dumas e vai até ao fim dos tempos, assim, cada vez mais mosqueteiro, cada vez mais D’Artagnan.
Um dia, que espero em Deus esteja longe, baterá David às portas de São Pedro. O velho chaveiro, já um tanto gasto em anos e em santidade, não tirará as trancas do reino eterno com a presteza que merece uma figura e a sensibilidade de David Nasser. E já estou vendo o mosqueteiro sacar da espada e gritar bem alto: - Pedro, acautelai-vos!
É assim, glorioso e armado, que David entrará no céu." (*)
(*) - Autor: José Cândido de Carvalho (Publicado em O Cruzeiro, Rio de Janeiro, Brasil, 18 de Julho de 1964).