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sábado, 8 de abril de 2023

quarta-feira, 11 de março de 2020

Ao Criador do Homem (Oração Antiga do Peru)



A aurora terrestre
veste-se de luz
para prestar homenagem
ao Criador do Homem.


Os altos céus
fazem correr as nuvens
e humilham-se
perante o Criador do Homem.

 

O Senhor das Estrelas,
nosso pai, o Sol,
espalha a sua cabeleira
aos seus pés.

O vento, por sua vez,
sacode o cimo das árvores,
agita os seus ramos
e verga-os até ao chão.

No coração das árvores
cantam os pássaros
e prestam homenagem
ao Senhor da Terra.

Todas as flores,
esplêndidas e belas,
se desdobram em cores
e em perfumes.

O fundo do lago,
um espelho de água,
é a morada feliz
dos peixes vivazes.

A forte torrente,
com a sua canção rouca,
canta os louvores
de Viracocha. (*)

E também o rochedo
se cobre de verdura
e, na ravina, a floresta
oferece as frescas flores.

E os habitantes da montanha,
o Povo das Serpentes,
a seus pés deslizam rápidos.
A vicunha no alto das montanhas,
a viscacha dos rochedos,
fazem os seus covis
à volta dele.

Também o meu coração,
em cada aurora,
te presta homenagem,
meu Pai, meu Criador.

……………..

(*) - Viracocha - O principal deus dos Incas.

(A Oração dos Homens - Uma Antologia das Tradições Espirituais
- Editora Assírio e Alvim - Lisboa - 2006)

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Pizarro e a Conquista Espanhola do Peru (4.ª e última parte)


(Extraído da obra de William H. Prescott  History of the Conquest of Peru, With a Preliminar View of the Civilization of the Incas - New York - 1843)
(Tradução e adaptação da Torre da História Ibérica)

Continuação de:

1.ª parte (06-Fevereiro-2019) (ver aqui)
2.ª parte (14-Fevereiro-2019) (ver aqui)
3.ª parte (21-Fevereiro-2019) (ver aqui)

"Pizarro não deu inicialmente ouvidos às terríveis sugestões acerca da sorte do Inca, ou, pelo menos, assim o aparentou, mostrando uma visível repugnância em sacrificar o prisioneiro. Havia muito poucos que o acompanhassem em semelhante atitude, e entre eles contava-se Hernando de Soto, que considerava injusto um tal desenlace, por não estar provado o crime de Atahualpa.
Neste estado de coisas, o chefe espanhol decidiu enviar um pequeno destacamento a Guamachucho, para reconhecer o país e averiguar o que havia de verdade nos rumores da insurreição.
Após a partida do destacamento a agitação entre os soldados cresceu de tal forma que Pizarro, não conseguindo resistir à pressão, consentiu que se preparasse o julgamento de Atahualpa. Era decerto decoroso e mais seguro emprestar ao assunto uma aparência de isenção. Organizou-se um tribunal a que presidiram como juízes os dois capitães, Pizarro e Almagro. Nomeou-se um fiscal e concedeu-se um defensor ao prisioneiro.


Eram doze as acusações formuladas contra o Inca. As mais importantes eram a de que havia usurpado a coroa e assassinado o seu irmão Huascar; além disso, havia dissipado as rendas públicas desde a conquista do país pelos espanhóis, dotando com elas os seus parentes e favoritos; acusavam-no também dos crimes de idolatria e de adultério, vivendo publicamente casado com muitas mulheres; apontavam-lhe, por último, que tinha tratado de sublevar os seus vassalos contra os espanhóis.
Estas acusações, muitas das quais se referiam aos costumes do país ou às relações pessoais do Inca – sobre que os invasores espanhóis não possuíam qualquer jurisdição -, eram absurdas. A única a ter alguma importância, se fosse verdadeira, era a última, mas a sua debilidade era tamanha que os julgadores se viram na necessidade de acrescentar-lhe as outras. O artifício indicia que estava já decidida a morte do Inca.

Foram ouvidos alguns testemunhos índios, e as suas declarações, quando passaram pelo crivo da interpretação de Felipillo (um natural da terra que odiava Atahualpa), sofreram graves deturpações, ao sabor dos interesses dos invasores. Rapidamente se concluiu a audição das testemunhas, a que se seguiu uma discussão acalorada acerca das vantagens e das desvantagens que resultariam da morte do Inca.
A questão era de mera conveniência. Por fim declararam-no culpado, não sabemos se de todos os crimes que lhe eram atribuídos, e foi condenado a ser queimado vivo na grande praça de Caxamalca; a sentença deveria executar-se naquela mesma noite, sem sequer se esperar o regresso do destacamento enviado a Guamachucho, cujas informações poderiam confirmar ou desmentir os rumores relativos à insurreição dos índios.
Como fosse julgada necessária a aprovação do padre Valverde, apresentou-se-lhe uma cópia da sentença para que a assinasse, o que ele fez sem vacilações, declarando que, em sua opinião, o Inca merecia em qualquer caso a morte.



Houve, sem embargo, alguns presentes no tribunal que manifestaram a sua discordância acerca destas acções arbitrárias, considerando-as como uma enorme ingratidão para com os favores recebidos do Inca, o qual só tinha sofrido agravos em troca. Declararam que os testemunhos acusatórios eram insuficientes para uma condenação daquelas, e negaram que o tribunal reunisse autoridade para sentenciar um príncipe soberano no centro dos seus próprios domínios. Havendo necessidade de um julgamento, sustentavam eles, o prisioneiro deveria ser embarcado para Espanha e julgado ante o Imperador, único ser que possuía o direito de decidir a sua sorte.
Porém, a grande maioria dos presentes, que era de dez contra um, respondeu a estas objecções afirmando que estava convencida do crime de Atahualpa, e que tomava sobre si a responsabilidade do acto. A disputa subiu de tom a ponto de quase se ter verificado uma violenta ruptura. Mas, por fim, convencidos de que a resistência seria inútil, os opositores remeteram-se ao silêncio, limitando-se a elaborar um protesto escrito contra os procedimentos em curso, que deveriam deixar uma mancha indelével sobre os que neles tomassem parte.

Quando Atahualpa, o Inca, recebeu a notícia da sentença, manifestou grande desgosto e angústia, pois, apesar de nos últimos tempos desconfiar de que o pudessem condenar à morte, havia mantido um fio de esperança quanto à atitude dos captores. Por um instante a certeza do seu trágico destino debilitou-lhe o ânimo e fê-lo exclamar, de lágrimas nos olhos: Que fiz eu, que fizeram os meus filhos para merecer tal sorte? E, sobretudo, que fizemos para merecê-la das tuas mãos – acrescentou, dirigindo-se a Pizarro – quando tu não achaste mais do que amizade e afecto no meu povo, quando reparti contigo os meus tesouros, quando de mim não recebeste senão benefícios? Depois, em tom dramático, suplicou que lhe perdoassem a vida, prometendo dar todas as garantias que se lhe exigissem para segurança de todos os espanhóis que compunham o exército e oferecendo o dobro do resgate que já havia pago se lhe dessem tempo para reuni-lo.
Uma testemunha ocular assegura que Pizarro se manifestou visivelmente afectado ao separar-se do Inca, a cujos rogos não podia aceder porque isso significaria opor-se à vontade do exército e à sua própria convicção de que a desaparição do Inca era indispensável à pacificação do país.
Atahualpa, vendo que não conseguia dissuadir o conquistador, recobrou a sua habitual serenidade e desde aquele momento submeteu-se ao seu destino com a atitude e o valor de um guerreiro índio.

Publicou-se a sentença do Inca, ao som das trombetas, na grande praça de Caxamalca. E, duas horas depois de o sol se pôr, os soldados reuniram-se ali, empunhando tochas, para presenciarem a execução.
Era o dia 29 de Agosto de 1533. Atahualpa saiu a pé, preso por cadeias de ferro, em direcção ao local do suplício. O padre Vicente de Valverde seguia a seu lado procurando consolá-lo e realizando uma derradeira tentativa de que ele desistisse das suas crenças supersticiosas e abraçasse a religião dos vencedores; tudo porque pretendia salvar a alma da sua vítima no Além, ele que tão espontaneamente o havia condenado a tão terrível expiação neste mundo terreno.




Durante a prisão de Atahualpa o padre Valverde havia-lhe exposto repetidas vezes as doutrinas do cristianismo, e o monarca índio, escutando-o embora com paciência, não se mostrara nunca disposto a renunciar às crenças dos seus antepassados. Agora, contudo, na hora solene e terrível da execução, o padre dominicano jogou o último lance. Com Atahualpa já amarrado para o suplício, tendo ao redor as tochas que haviam de incendiar a sua pira funerária, Valverde, erguendo a cruz, rogou-lhe que se convertesse e que se deixasse baptizar: se o fizesse, a horrorosa sentença da fogueira seria comutada na pena mais suave do garrote.

O desditoso monarca perguntou se era mesmo verdade o que se lhe dizia, e, tendo obtido a confirmação de Pizarro, consentiu em abjurar da sua religião e em receber o baptismo. A cerimónia foi levada a cabo pelo padre Valverde e o neófito recebeu o nome de Juan de Atahualpa, em honra de S. João Baptista, em cujo dia se verificou aquele sucesso.
Atahualpa manifestou desejo de que os seus restos fossem trasladados para Quito, sua terra natal, para que fossem conservados com os dos seus antepassados por linha materna. Depois, volvendo-se para Pizarro, pediu-lhe como último favor que tivesse compaixão dos seus jovens filhos e os acolhesse à sua protecção e amparo.
Depois, recuperando a serenidade habitual, que por instantes o havia abandonado, submeteu-se tranquilamente à sua sorte, enquanto os espanhóis que o rodeavam entoavam o credo pela salvação da sua alma.
Assim pereceu o último dos Incas – como se se tratasse de um vulgar malfeitor.

O corpo do Inca permaneceu no local da execução durante toda a noite. Na manhã seguinte levaram-no para a igreja de S. Francisco, erigida pelos conquistadores, onde se celebraram as exéquias com grande solenidade.
Pizarro e os principais cavaleiros assistiram de luto, e as tropas escutaram com devota atenção o ofício de defuntos celebrado pelo padre Valverde. A cerimónia foi interrompida por gritos e choros vindos das portas do templo, que se abriram repentinamente, dando entrada a um numeroso grupo de índias – esposas e irmãs do falecido. Invadindo a grande nave, cercaram o corpo dizendo que não era aquele o modo correcto de celebrar os funerais de um Inca, e declarando-se dispostas a sacrificar-se sobre a sua tumba para o acompanharem no país dos espíritos.
Os circunstantes, ofendidos com tal procedimento, informaram as invasoras de que Atahualpa havia morrido cristão e de que o seu novo Deus aborrecia tais sacrifícios. Depois intimaram-nas a que saíssem da igreja, e muitas delas, ao retirarem-se, suicidaram-se na esperança de acompanhar o seu amado senhor nas brilhantes mansões do Sol.


Os restos de Atahualpa, não obstante a súplica que havia feito, foram depositados no cemitério de S. Francisco. Mas correu mais tarde que os índios, mal os espanhóis saíram de Caxamalca, o trasladaram em segredo para Quito.
Os colonos que posteriormente ali se estabeleceram supunham que tinham sido enterradas com o Inca algumas riquezas.
Efectuaram escavações – mas não acharam nem o corpo nem tesouros."

(FIM DA 4.ª E ÚLTIMA PARTE)

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Pizarro e a Conquista Espanhola do Peru (3.ª Parte)


(A partir da obra de William H. Prescott - History of the Conquest of Peru, With a Preliminar View of the Civilization of the Incas - New York - 1843)
(Tradução e adaptação da Torre da História Ibérica)

Ver:
1.ª parte - 06-Fevereiro-2019
2.ª parte - 14-Fevereiro-2019

"A vinda de Almagro modificou consideravelmente os cálculos de Pizarro, pois este ficava em condições de empreender operações activas e de prosseguir a conquista. O único obstáculo era o resgate pedido em troca do Inca, Atahualpa, que os espanhóis tinham esperado pacientemente. O tesouro aumentou muito quando regressaram os emissários enviados a Cuzco para esse efeito, embora não se alcançasse ainda o limite estipulado. Mas a cobiça dos conquistadores esgotou-lhes a paciência, e passaram quase todos a reclamar com veemência a imediata repartição do ouro. Esperar mais expô-los-ia a um ataque dos inimigos, que não deixariam de se sentir atraídos por tal engodo. A maior parte dos ocupantes queria abandonar Caxamalca e marchar directamente para Cuzco, acreditando que encontrariam mais ouro na capital. E insistiam que não havia tempo a perder, para impedirem que os habitantes escondessem os seus tesouros.

Esta última consideração fez com que Pizarro se decidisse, pois não tinha dúvidas de que não conseguiria assenhorear-se do império sem se apoderar da capital. Determinou, assim, sem mais demora, que se procedesse à distribuição do tesouro. No entanto, tornava-se necessário reduzi-lo a barras de igual tamanho, peso e qualidade, uma vez que o saque se compunha de uma infinita variedade de objectos em que o ouro apresentava diferentes graus de pureza. Viam-se bandejas, taças, jarros e vasos de todas as formas e tamanhos, ornamentos e utensílios dos templos e dos palácios reais, curiosas imitações de plantas e animais diversos. Entre os vegetais mais representados figurava o milho, com os seus grãos dourados cobertos de largas folhas de prata, das quais pendiam fios do mesmo metal. Também era notável uma fonte com o seu brilhante jorro de ouro e pássaros e animais da mesma matéria brincando nas águas do recipiente. A delicadeza do trabalho de alguns objectos e a beleza e a naturalidade da sua forma cativaram a admiração geral.

Confiou-se aos ourives índios a tarefa de fundir o tesouro, forçando-os a desfazer o que com as suas próprias mãos haviam produzido. Eles trabalharam dia e noite, mas tal era a quantidade do material que gastaram no trabalho um mês inteiro. Quando tudo ficou reduzido a barras de igual valor, procedeu-se à verificação do peso na presença dos inspectores reais. A importância total ascendia a um milhão, trezentos e vinte e seis mil e quinhentos e trinta e nove pesos de ouro (o que equivaleria actualmente - 1843 - a cerca de três milhões e meio de libras esterlinas).

A História não oferece outro exemplo de semelhante saque, todo em metal precioso, ganho por uma pequena tropa de aventureiros como eram os conquistadores do Peru. O grande objectivo das expedições espanholas no Novo Mundo foi o ouro; e é espantoso que tão completamente o lograssem. É igualmente notável que a riqueza tão repentinamente adquirida, afastando-os das fontes menos copiosas mas mais seguras da prosperidade nacional, se lhes tivesse escapado mais tarde por entre os dedos, transformando-os numa das nações mais pobres da Cristandade.


Pizarro preparou com toda a solenidade a distribuição do tesouro. Reuniu as tropas na grande praça e invocou o auxílio do céu para executar aquele acto com consciência e justiça. Deduziu-se primeiro o quinto real (que incluía as peças retiradas do tesouro para serem enviadas como presente ao imperador, em Espanha). A parte de Pizarro ascendeu a cerca de cinquenta e sete mil pesos de ouro e dois mil e trezentos e cinquenta marcos de prata. Para seu irmão, Hernando, foram perto de trinta e dois mil pesos de ouro e a mesma importância de prata que reservara para si. Muitos dos restantes cavaleiros, que eram sessenta, receberam, individualmente, oito mil e oitocentos pesos de ouro e trezentos e sessenta e dois marcos de prata. A infantaria compunha-se de cento e cinco homens, e cada um recebeu, com pequenas variações, cerca de metade do que foi atribuído aos cavaleiros.

Finda a repartição do tesouro, parecia que já nada se opunha à marcha sobre Cuzco. Mas que havia de fazer-se de Atahualpa? Dar-lhe a liberdade seria deixar à solta o mais perigoso dos inimigos, um homem que não tardaria a ter ao seu redor toda a nação e cujas palavras seriam capazes, só por si, de dirigir toda a energia do seu povo contra os espanhóis, dilatando por muito tempo, ou mesmo frustrando, o processo de conquista. Mas mantê-lo cativo oferecia não menores dificuldades, pois a guarda de tão importante presa requeria a utilização de muita gente, o que prejudicava o esforço militar. E mesmo assim não se evitaria o perigo de que o prisioneiro fosse resgatado nas perigosas passagens das montanhas por onde teriam de marchar.


Enquanto isto, o Inca reclamava insistentemente a libertação. Embora não tivesse entregue a totalidade do resgate combinado, havia feito chegar às mãos dos espanhóis uma quantia imensa. E Atahualpa alegava que poderia ter entregue bastante mais, não fora a impaciência dos seus carcereiros. O resgate fora, sem dúvida, magnífico, e jamais qualquer potentado havia cumprido daquela forma. Atahualpa expunha as suas razões a muitos dos cavaleiros, especialmente a Hernando de Soto, com o qual ganhara alguma familiaridade. Soto falou do assunto a Pizarro, mas este não se abriu, encobrindo as intenções que lhe iam germinando no íntimo. Pouco tempo depois fez com que se preparasse um documento, no qual se dispensava o Inca do pagamento da parte restante do resgate. E ordenou que esse documento fosse publicamente apregoado, declarando ao mesmo tempo que a segurança dos espanhóis exigia que o Inca permanecesse na prisão até que aqueles recebessem novos reforços.

Entretanto, voltaram a correr rumores de que se preparava um levantamento geral dos índios e que isso era inspirado por Atahualpa. Pizarro confrontou-o com o que se dizia, mas ele negou tranquilamente, protestando a sua inocência. O Inca percebeu porém rapidamente as causas destas acusações e adivinhou-lhes muito provavelmente as consequências, vendo então o abismo que se lhe cavava diante dos pés. Estava rodeado de estrangeiros e de nenhum deles poderia esperar conselho ou protecção. Ele sabia que é geralmente curta a vida de um monarca prisioneiro. Fez tudo para convencer Pizarro que não representava qualquer ameaça e que não tinha nada a ver com os rumores que corriam entre os soldados: Não sou um pobre cativo nas tuas mãos? Como posso alimentar tais desígnios sabendo que seria eu a primeira vítima da insurreição?

Estes protestos de inocência produziram pouco efeito entre as tropas espanholas, que acreditavam ter-se já reunido um grande exército índio em Guamachucho, a menos de cem milhas dali. Dobraram-se as patrulhas e a cavalaria mantinha os cavalos sempre selados, ao mesmo tempo que a infantaria dormia de armas ao lado. Pizarro rondava de quando em quando, cuidando de que as sentinelas estivessem permanentemente a postos. Enfim, o pequeno exército espanhol achava-se preparado para resistir ao ataque que se esperava a todo o momento.
Os que têm medo não costumam ser muito escrupulosos quanto à escolha dos meios para afastar as causas do seu temor. Ouviram-se murmúrios misturados com terríveis ameaças contra o Inca, que consideravam autor destas maquinações. Muitos pediam a sua morte como necessária à segurança do exército."

Continua na 4.ª e última parte (em 28-Fevereiro-2019)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Pizarro e a Conquista Espanhola do Peru (2.ª Parte)


(Extracto da obra de William H. Prescott - History of the Conquest of Peru, with a Preliminar View of the Civilization of the Incas - New York - 1843)  (Tradução e adaptação da Torre da História Ibérica)

(Veja a 1.ª parte em 6-Fevereiro-2019: aqui)
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"Do número de mortos fala-se, como é costume, com grande discrição. O secretário de Pizarro diz que morreram dois mil índios. Um descendente dos Incas calcula o número de mortos em dez mil. A verdade deve achar-se, provavelmente, entre estes extremos. A matança foi incessante, pois nenhum obstáculo se lhe opôs. Sem embargo, ainda que o morticínio atingisse tais proporções foi também de curta duração, pois desenrolou-se no tempo que medeia entre o princípio e o fim do crepúsculo, que nos trópicos não excede meia hora. Período curto, de facto, mas suficiente para que nele se decidisse a sorte do Peru e caísse a dinastia dos Incas.

Naquela noite, Pizarro cumpriu a promessa que havia feito ao Inca de cear com ele. O banquete foi servido numa das quadras que confinavam com a grande praça, teatro da acção de horas antes, e que continuava pejada de cadáveres de vassalos do Inca. Sentaram o monarca cativo diante do seu vencedor. Ele parecia não compreender a extensão da sua desgraça; ou, se a compreendeu, manifestou um ânimo surpreendente. "Estas são as vicissitudes da guerra", disse. Se dermos crédito aos relatos dos espanhóis, ele manifestou a sua admiração pela forma como eles tinham conseguido aprisioná-lo no meio da sua gente. Acrescentou que tinha tido notícia dos movimentos dos brancos desde o instante em que desembarcaram, mas que, pela insignificância das tropas estrangeiras, menosprezara a sua força, convicto de que com o seu exército, muito superior em número, teria podido esmagá-las, em caso de necessidade, vencendo-as à sua chegada a Caxamalca. Explicou que quisera verificar por si próprio que espécie de homens eram aqueles - e por isso os havia deixado cruzar as montanhas - e que pensara escolher os melhores para o seu serviço, apoderando-se das suas armas maravilhosas e dos cavalos, dando morte aos restantes.

É possível que tal fosse o propósito de Atahualpa. Assim se explicaria que ele não tivesse ocupado as passagens nas montanhas, que lhe teriam proporcionado excelentes pontos de defesa. Mas já não é crível que um príncipe tão astuto como ele parece ter sido - segundo o testemunho generalizado dos conquistadores - revelasse desta maneira tão franca as suas intenções ocultas. As conversas com o Inca foram mantidas através do intérprete Felipillo, assim chamado porque havia optado por nome cristão, um jovem que segundo as evidências não tinha boa vontade para com Atahualpa e cujas traduções eram facilmente acolhidas pelos conquistadores, desejosos de arranjar pretextos para as suas sangrentas represálias.


Atahualpa contava naquela altura trinta anos de idade. Era bem constituído e mais robusto do que a maioria dos seus súbditos. A sua fronte era ampla e o seu rosto poderia ter-se considerado formoso se os olhos sanguinolentos não emprestassem às suas feições, no dizer dos espanhóis, uma expressão feroz. Era desembaraçado nas conversas, grave em suas maneiras, duro até à severidade com os vassalos, embora se mostrasse afável com os espanhóis.

Pizarro tratou com muita consideração o seu régio cativo e procurou aligeirar, já que a não podia apagar, a tristeza que a despeito da sua aparente resignação se pressentia no monarca. Aconselhou-o a que não se deixasse abater pelos reveses, porque sorte idêntica à sua haviam sofrido todos os príncipes que tinham oposto resistência aos brancos. Comunicou-lhe que estes tinham chegado àquele país para proclamarem o Evangelho, a religião de Jesus Cristo, e que não era de estranhar a sua vitória, pois que eram protegidos pelo escudo de Deus. Disse-lhe, ainda, que os céus tinham permitido a sua humilhação por ele se ter mostrado hostil para com os recém-chegados e pelo ultraje que havia praticado para com o Livro Sagrado. Mas Pizarro suplicou ao vencido que tivesse ânimo e que confiasse nele, pois os espanhóis eram uma raça generosa e que somente faziam guerra aos que se lhes opunham, mostrando-se clementes para os que se lhes submetiam.

Na manhã seguinte, o primeiro cuidado do chefe espanhol foi mandar limpar a cidade, utilizando-se dos prisioneiros para dar sepultura condigna às vítimas do massacre. Antes do meio-dia chegou uma multidão de índios, homens e mulheres, e, entre estas, muitas das esposas e criadas do Inca. Os espanhóis continuavam a não deparar com resistência, porque os guerreiros peruanos, ainda que superiores em número, haviam perdido o ânimo no momento em que tomaram conhecimento da captura do seu senhor. Também não tinham quem os guiasse, pois não reconheciam outra autoridade que não fosse a do Filho do Sol; e pareciam paralisados por uma espécie de estranho feitiço nas proximidades da sua prisão, mirando com temor supersticioso aqueles brancos que tinham tido a audácia de levar a cabo tão grande façanha.






O número de prisioneiros índios era tão grande que alguns dos conquistadores foram de opinião que se deveria matá-los a todos, ou, pelo menos, cortar-lhes as mãos, para que não se entregassem a actos de violência e para infundir terror a toda a nação.
Esta proposta veio sem dúvida da soldadesca mais baixa e feroz, mas o simples facto de ter sido possível evidencia a classe de gente que compunha a força de Pizarro. Este rechaçou a ideia, tão impolítica como cruel, e devolveu os índios aos seus lugares de origem, assegurando-lhes que a nenhum se faria dano enquanto não oferecessem resistência aos brancos. Os conquistadores ficaram no entanto com bastantes deles ao seu serviço e abasteceram-se com tal abundância que o menos importante dos soldados possuía tantos criados como um nobre rico e gastador.

Atahualpa, o Inca, não tardou a descortinar um apetite oculto sob as manifestações de zelo religioso dos seus vencedores. Consistia este numa insaciável sede de ouro, da qual pensou aproveitar-se para conseguir a liberdade. Com esta esperança, e apelando à cobiça dos captores, disse um dia a Pizarro que, se o libertasse da prisão, ele, Inca, comprometia-se a cobrir de ouro o chão do aposento em que se encontravam. Os que se achavam presentes escutaram-no com sorrisos incrédulos. Mas Atahualpa, vendo-se sem resposta, acrescentou enfaticamente que não somente cobriria o chão como encheria o quarto até que o ouro chegasse à sua altura. E, pondo-se em bicos de pés, fez com a mão um sinal na parede, o mais alto que pôde.

Assombraram-se os circunstantes, considerando estas promessas como a louca jactância de um homem que, para recuperar a liberdade, não media o sentido das palavras. Mas Pizarro ficou pensativo, pois tudo o que vira e ouvira à medida que se internava no país confirmava as maravilhosas notícias acerca das riquezas do Peru. Acedeu portanto à oferta de Atahualpa e, traçando uma linha vermelha na parede, à altura que o Inca havia indicado, mandou que um escrivão anotasse os termos do acordo. O aposento era de uns dezassete por vinte e dois pés, e a linha traçada na parede marcava uma altura de nove pés. Também se combinou que se enchesse duas vezes de prata o quarto imediato, de dimensões mais reduzidas, pedindo o Inca dois meses para cumprir o contrato. A seguir despachou correios até Cuzco e até às principais cidades do reino com ordens para se trazerem sem perda de tempo a Caxamalca todos os ornamentos e utensílios de ouro das residências reais, dos templos e dos demais edifícios públicos.

Atahualpa continuou entretanto a viver com os espanhóis, tratado com o respeito devido à sua categoria e gozando do espaço de liberdade compatível com a segurança da sua pessoa. Ainda que lhe fosse vedado sair à rua, podia passear-se pelos aposentos da sua habitação, sob a vigilância zelosa de uma guarda que conhecia demasiado bem o valor do cativo para permitir-se qualquer negligência.
Concedeu-se também ao Inca a companhia das suas mulheres favoritas, e Pizarro teve o cuidado de ordenar que não fosse perturbado o segredo das intimidades domésticas. Os seus vassalos tinham livre acesso ao soberano, que todos os dias recebia visitas de índios nobres que lhe ofereciam presentes e lhe manifestavam o desgosto que lhes causava a sua desgraça.

Nessas ocasiões, até os vassalos de maior condição não chegavam à sua presença sem primeiro descalçarem as sandálias. Os espanhóis testemunhavam com curiosidade estes actos de homenagem, ou, até, de humilhação servil, acolhidos pelo Inca com um ar de completa indiferença, como se se tratasse de actos corriqueiros. E ficavam impressionados com o carácter de um príncipe que, mesmo naquelas condições, era capaz de inspirar tais sentimentos de respeito aos súbditos.

Pizarro não desprezou a oportunidade que se lhe oferecia para comunicar as verdades da revelação ao prisioneiro, e tanto ele como o seu capelão Valverde trabalharam nesta boa obra. Atahualpa escutava-os com serenidade e aparente atenção. Nada pareceu comovê-lo mais do que o argumento com que o chefe militar terminou o seu discurso, a saber, que não podia ser verdadeiro o deus que o Inca adorava, pois tinha consentido que ele caísse nas mãos dos seus inimigos. O infeliz monarca reconheceu a força do argumento, dizendo que, de facto, a sua divindade o tinha abandonado no momento em que mais necessitava do seu amparo.


Várias semanas haviam decorrido desde que Atahualpa despachara os seus emissários em busca do ouro e da prata prometidos aos espanhóis pelo seu resgate. Porém, as distâncias eram grandes e os mensageiros regressavam lentamente, trazendo na maior parte peças maciças de prata, algumas de duas ou três arrobas de peso. Apesar disso, em poucos dias chegou um valor equivalente a trinta ou quarenta mil pesos de ouro e a cinquenta ou sessenta mil pesos de prata. Brilhavam de cobiça os olhos dos conquistadores ao contemplarem os reluzentes montões do tesouro que os índios traziam às costas, e que depois de cuidadosamente pesado e anotado era colocado em depósito sob forte custódia.

Então começaram a acreditar que se cumpririam as magníficas promessas do Inca. Mas, à medida que a sua cobiça se aguçava ao verem diante de si aquela fortuna que mal poderiam ter imaginado, aumentavam as suas exigências impacientes, não fazendo caso das distâncias e das dificuldades dos caminhos, e censurando vivamente a demora com que se executavam as ordens reais. Chegaram a suspeitar de que Atahualpa tivesse inventado o pretexto do seu resgate apenas com o propósito de estabelecer contacto com os vassalos mais distantes e que a demora fosse calculada com o objectivo de assegurar a execução de planos secretos. Circulavam rumores de sublevação entre os peruanos e manifestavam-se entre os espanhóis receios de um ataque repentino e generalizado aos seus acampamentos. As suas recentes riquezas faziam-nos redobrar de cautelas. Eles tremiam como o avarento no meio dos seus tesouros.

Pizarro pôs Atahualpa ao corrente destes rumores. O Inca reagiu com indignação, assegurando que nenhum dos súbditos se atreveria a desobedecer-lhe. Pizarro continuou a dispensar-lhe as maiores atenções. Ensinaram-lhe o jogo dos dados e, mais difícil, o do xadrez, no qual o prisioneiro chegou a tornar-se hábil, entretendo com ele o tédio do cativeiro.

Quanto aos vassalos, mantinha-se dentro do possível a cerimónia que lhe era devida. Era servido pelas esposas e pelas mulheres do seu harém. Na antecâmara estacionavam alguns nobres índios, que nunca chegavam à sua presença sem serem chamados. O serviço da sua mesa era de ouro e prata, e o seu traje, que mudava amiúde, era de lã de vicunha, tão fina que parecia seda. Na cabeça usava o Llautau, espécie de turbante de tecido muito delicado, dobrado em pregas de diversas cores brilhantes.

A imagem da soberania continuava a ser importante para ele, ainda que já não tivesse correspondência na realidade. Ninguém podia usar vestuário ou utensílio que tivesse pertencido a um soberano do Peru. Quando este os rejeitava, eram cuidadosamente depositados numa caixa apropriada e depois incinerados com ela. Constituiria um sacrilégio permitir uma utilização vulgar àquilo que o contacto com o Inca havia tornado sagrado.

Em meados de Fevereiro de 1533 ocorreu algo que mudou a situação dos espanhóis e teve uma influência desfavorável na sorte do Inca. Tratou-se da chegada a Caxamalca de reforços comandados por Almagro. Os soldados de Pizarro saíram a receber os companheiros e os dois capitães abraçaram-se entre demonstrações de cordialidade. Resolveram esquecer as desavenças passadas e declararam-se dispostos a auxiliar-se mutuamente na brilhante carreira que a conquista daquele império lhes oferecia.

Havia uma pessoa em Caxamalca em quem a aparição dos novos soldados espanhóis produzia uma impressão diferente. Era Atahualpa, o qual não somente viu nos recém-chegados outra nuvem de gafanhotos que ia devorar o seu país, como pressentiu nesta multiplicação dos seus inimigos uma diminuição das probabilidades de recuperar e manter a liberdade. Uma outra circunstância, insignificante em si mesma, mas à qual a superstição dava uma importância formidável, ocorreu também por estes dias. Alguns soldados viram no céu uma espécie de meteoro ou cometa e vieram dizê-lo a Atahualpa. O Inca observou o fenómeno durante alguns minutos e depois, com ar desconsolado, exclamou que se havia avistado o mesmo sinal nos céus pouco antes da morte de seu pai, Huayna Capac.
A partir daquele dia apoderou-se dele uma profunda tristeza, com o pressentimento de uma próxima desgraça."

Continuações nas seguintes datas:
3.ª parte - 21-Fevereiro-2019;
4.ª parte - 28-Fevereiro-2019.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Pizarro e a Conquista Espanhola do Peru (1.ª parte)




A conquista do Império Inca (Peru) pelos espanhóis de Francisco Pizarro, em meados do século XVI, representa um dos mais impressionantes episódios do longo processo de colonização lançado à escala mundial pelos povos ibéricos. É um quadro dramático e sangrento, onde convergem a ingenuidade, a cobiça, a brutalidade e, talvez como síntese de tudo, o desconhecimento ou o desprezo essenciais acerca dos valores do outro - que tão grandes tragédias produziram nestes históricos encontros de povos distintos.
Em 1843, William Hickling Prescott (nascido a 4 de Março de 1796, em Salem, Massachusetts) escreveu e publicou em Nova Iorque uma espantosa "Conquista do Peru", que o tempo entretanto transformou, com justiça, num clássico respeitado. É dessa obra memorável que hoje se extrai o relato da parte culminante desse infeliz encontro.

(William H. Prescott - History of the Conquest of Peru, with a Preliminar View of the Civilization of the Incas - New York - 1843)

(Tradução e adaptação da Torre da História Ibérica)
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"Dissiparam-se as sombras da noite e o sol brilhou na manhã do dia imediato, o mais memorável nos anais do Peru. Era sábado, 16 de Novembro de 1532. O som agudo das trombetas chamou os espanhóis às armas ao romper da alva, e Pizarro, dando-lhes conta em breves palavras do seu plano de ataque, tomou as disposições necessárias.

A praça era defendida em três lados por filas de pequenos edifícios, compostos por espaçosos salões providos de portas largas. Nelas colocou a cavalaria repartida em duas divisões, uma às ordens de seu irmão Hernando e outra sob o comando de Soto. Pôs a infantaria noutro edifício, reservando-se a ele próprio vinte homens seleccionados para acudir com eles onde se tornasse necessário. Pedro de Candia, acompanhado de alguns homens, ficou com a artilharia.

A todos se ordenou que permanecessem em seus postos até à chegada do Inca (Atahualpa). Quando este entrasse na praça deviam manter-se escondidos e atentos até que soasse o sinal, que seria um tiro de arcabuz; então deveriam sair dos edifícios com grandes gritos de guerra, caindo de espada em punho sobre os peruanos e apoderando-se da pessoa do Inca. Depois cuidou o chefe espanhol de que as armas das suas tropas permanecessem em bom estado e de que as rédeas dos cavalos levassem campainhas para que aumentasse com o seu ruído a perturbação dos índios. Distribuíram-se também pelas tropas abundantes provisões de boca para que nada faltasse ao bom êxito da empresa.

Adoptadas estas disposições, os eclesiáticos que seguiam na expedição celebraram uma missa com grande solenidade, rogando ao Deus das batalhas que estendesse o seu escudo protector sobre os soldados que iam pelejar para alargar os limites do império da Cruz; e todos com grande entusiasmo cantaram o Exurge Domine ("Levanta-te, Senhor, e julga a Tua própria causa").

Parecia uma reunião de mártires dispostos a dar as vidas em defesa da fé, e não um licencioso bando de aventureiros preparando um dos mais atrozes actos de perfídia recordados pela História.

Sem embargo, fossem quais fossem os defeitos dos cavaleiros castelhanos, eles não possuíam o da hipocrisia. Estavam perfeitamente convencidos de que pelejavam pela cruz, e esta convicção, ainda mais exaltada naquele momento, não lhes deixava espaço para pensarem noutros motivos eventualmente menos nobres. Os soldados de Pizarro, deste modo inflamados de ardor religioso, esperavam impacientes a chegada do Inca; e o seu chefe viu com satisfação que eles não faltariam, na hora crítica, com aquilo que deviam ao seu capitão e a si mesmos.






Já ia adiantado o dia quando se observaram movimentos no campo peruano, onde se realizavam grandes preparativos para se acercarem dos cristãos com toda a ostentação e cerimónia. Recebeu-se uma mensagem de Atahualpa, o Inca, informando o chefe espanhol de que iria visitá-lo armado, com os seus guerreiros, tal como os espanhóis tinham ido ao seu acampamento na noite anterior. A notícia não era muito agradável para Pizarro, ainda que não tivesse motivos para esperar o contrário. Mas opor-se ao propósito de Atahualpa faria com que este desconfiasse dos seus desígnios. Manifestou-lhe portanto a sua satisfação, assegurando ao Inca que, viesse ele como viesse, ele, Pizarro, recebê-lo-ia como amigo e irmão.

Já era meio-dia quando a comitiva dos índios se pôs em marcha, ocupando larga extensão da calçada. À frente vinha uma multidão de servos, cuja incumbência parecia consistir em limpar o caminho de qualquer vestígio de sujidade. Acima da tropa sobressaía o Inca, levado de liteira aos ombros dos seus principais nobres, enquanto outros da mesma categoria marchavam de ambos os lados, ostentando ornamentos tão brilhantes em suas pessoas que, segundo o dito de um dos conquistadores, reluziam como o sol. Mas a maior parte das tropas do Inca estavam formadas pelos campos, de um e de outro lado do caminho, ou espalhadas pelos prados extensos até perder de vista.

A real comitiva fez alto quando chegou a cerca de meia milha da cidade, e Pizarro viu com surpresa que Atahualpa se aprestava para mandar erguer as suas tendas, como se quisesse montar ali o seu acampamento. Logo chegou um mensageiro para anunciar aos espanhóis que o Inca permaneceria durante aquela noite no sítio onde se havia detido, e que na manhã seguinte faria a sua entrada na cidade.

Esta notícia desagradou muito a Pizarro, que compartilhava da impaciência generalizada da sua gente ao ver a lentidão com que se movimentavam os peruanos. As tropas mantinham-se em armas desde o amanhecer, as de cavalaria montadas em seus cavalos, as de infantaria nos seus postos, aguardando em silêncio a chegada do Inca. Reinava uma profunda calma em toda a cidade, somente interrompida, de quando em quando, pelo grito da sentinela que do ponto mais elevado anunciava os movimentos do exército índio. Pizarro tinha consciência de que não há nada mais perigoso para a disposição combativa e a constância de ânimo do soldado do que a inacção prolongada numa situação crítica como aquela; e temia que se evaporasse o ardor das suas tropas, sucedendo-lhe aquela sensação nervosa, natural até nos espíritos dos mais destemidos em tais instantes de crise, e que se não é temor anda lá por perto. Respondeu então rogando a Atahualpa que mudasse de propósito, acrescentando que tinha tudo preparado para o receber e obsequiar e que o esperava para cear naquela mesma noite.



Esta mensagem fez com que o Inca mudasse de intenções. Desarmando as tendas mandou retomar a marcha, avisando primeiro a Pizarro de que iria deixar naquele ponto a maior parte dos seus guerreiros e de que entraria na praça apenas acompanhado de alguns deles, pois preferia passar a noite em Caxamalca. Ao mesmo tempo ordenou que se preparasse alojamento para ele e para a sua comitiva num dos grandes edifícios de pedra da cidade, o qual, por ter a figura de uma serpente esculpida na parede, era conhecido como A Casa da Serpente. Nenhuma notícia poderia ter sido mais agradável para os espanhóis do que esta. Parecia que o monarca índio ansiava por precipitar-se em direcção ao laço que se lhe tinha preparado. O fanático comandante não pôde deixar de ver nisto o dedo da Providência. (...) Atahualpa, por seu turno, procedia cheio de confiança e de boa-fé. Ele era detentor de um poder tão absoluto no seu império que jamais poderia suspeitar de um ataque à sua pessoa. Talvez não pudesse imaginar que um pequeno grupo de homens, reunidos em Caxamalca, tivesse a audácia de pensar em apoderar-se de um poderoso monarca no meio do seu próprio exército. Ele não conhecia o carácter espanhol.

Pouco faltava para o pôr-do-sol quando a vanguarda da comitiva real transpôs as portas da cidade. À frente vinham as centenas de servos incumbidos da limpeza do percurso e de entoar cânticos de triunfo que aos ouvidos dos conquistadores, segundo um deles, soavam como canções do inferno. Depois marchavam outras companhias de índios de diferentes classes, cobertos de indumentárias variadas. Alguns cobriam-se de vistosos tecidos brancos, coloridos como as casas de xadrez. Outros seguiam todos de branco, empunhando martelos e maças de prata e cobre. Sobressaindo entre os seus vassalos via-se o Inca Atahualpa, no cimo de umas andas em que havia uma espécie de trono de ouro maciço, de inestimável valor. O palanquim, guarnecido de chapas de ouro e prata, apresentava-se coberto das brilhantes plumas dos pássaros tropicais. Os adornos do monarca eram muito mais ricos do que os da noite precedente. Pendia do seu pescoço um colar de esmeraldas de brilho e tamanho extraordinários. O aspecto do Inca era grave e majestoso; e do alto mirava a multidão com o ar tranquilo de um homem acostumado a mandar.

Ao entrarem as primeiras filas da procissão na vasta praça (que, segundo um antigo cronista, era muito maior do que qualquer outra em Espanha), a multidão apartou-se à direita e à esquerda de maneira a deixar caminho livre à comitiva real. Tudo se fez com ordem admirável. Permitiu-se ao monarca atravessar a praça em silêncio e nem um único espanhol se deixou avistar. Logo que entraram cinco ou seis mil homens, Atahualpa mandou fazer alto e, lançando em todas as direcções uns olhares cheios de curiosidade, perguntou: Onde estão os estrangeiros?
Naquele momento, frei Vicente de Valverde, religioso dominicano, capelão de Pizarro, e mais tarde bispo de Cuzco, apareceu com o seu Breviário, ou, segundo dizem outros, com a Bíblia numa mão e um crucifixo na outra. Aproximando-se do Inca disse-lhe que vinha por ordem do seu chefe explicar-lhe as doutrinas da verdadeira fé, objectivo com o qual os espanhóis tinham chegado ao país a partir de tão longe.

Depois passou a explicar-lhe o mais claramente que pôde o mistério da Santíssima Trindade e, referindo-se em seguida à criação do Homem, falou da sua queda, da sua redenção por Jesus Cristo, da crucificação e da ascensão do Salvador aos céus, depois de haver deixado o apóstolo Pedro por seu vigário na terra. Contou-lhe como os poderes concedidos por Jesus Cristo ao seu vigário haviam sido transmitidos aos sucessores daquele apóstolo, homens sábios e virtuosos que, sob o título de "papas", exerciam autoridade sobre todos os tronos e potentados da terra.

Manifestou-lhe que um dos últimos papas havia incumbido o imperador espanhol, o monarca mais poderoso do mundo, de conquistar e converter os naturais daquele hemisfério ocidental; e que o seu general, Francisco Pizarro, havia chegado para cumprir tão importante missão. Terminou pedindo-lhe que desistisse dos erros da sua fé e abraçasse a dos cristãos, a única que lhe podia salvar a alma. E que se reconhecesse tributário do imperador Carlos V, o qual em todo o caso o auxiliaria e protegeria como a um leal vassalo.

Pode duvidar-se de que Atahualpa, o Inca, tivesse entendido algum dos curiosos argumentos com que o religioso pretendeu estabelecer uma relação entre Pizarro e São Pedro. Mas é indiscutível que compreendeu perfeitamente que a finalidade do discurso consistia em persuadi-lo de que devia renunciar ao seu poder e reconhecer a supremacia de outro.

Cintilaram os olhos do monarca índio ao ripostar: Não quero ser tributário de nenhum homem, eu sou mais importante do que qualquer príncipe da terra. O vosso imperador pode ser um grande príncipe, não duvido disso, pois verifico que conseguiu enviar os seus vassalos de tão longe, através dos mares, e por isso mesmo desejo tratá-lo como irmão. Quanto ao papa de que me falas, ele não deve estar bom para tratar de dar reinos que não lhe pertencem. Quanto à minha religião, não pretendo desistir dela. O vosso Deus, segundo dizes, foi condenado à morte pelos mesmos homens que tinha criado. Mas o meu (acrescentou, apontando a sua divindade que então se escondia por trás dos montes) o meu vive ainda nos céus e é dali que vela pelos seus filhos.

Depois perguntou a Valverde com que autoridade lhe dizia aquelas coisas, ao que o frade respondeu exibindo-lhe o livro que tinha na mão. Atahualpa pegou no livro, percorreu algumas páginas e, sem dúvida irritado pelo insulto que havia recebido, atirou-o ao chão, para longe de si, exclamando: Diz aos teus companheiros que me darão conta das suas acções nos meus domínios, e que não me irei embora sem ter obtido plena satisfação dos agravos que me fizeram. O frade, altamente escandalizado pelo ultraje feito ao Livro Sagrado, apanhou-o do chão e correu a informar Pizarro do que o Inca tinha feito, exclamando ao mesmo tempo: Não vedes que enquanto estamos aqui perdendo tempo a falar com esse cão cheio de soberba, os campos vão-se enchendo de índios. Ide-vos a ele, que eu vos absolvo.

Pizarro compreendeu que havia chegado a hora. Agitou uma bandeira branca no ar, que era o sinal combinado. Logo soou o tiro fatal e, então, saindo o capitão e os seus oficiais para a praça, lançaram o antigo grito de guerra: Santiago! A eles!, o qual foi respondido pelo grito de combate de todos os espanhóis que se achavam na cidade, os quais saíram impetuosamente dos grandes salões em que se achavam escondidos e invadiram a praça com a cavalaria e a infantaria em coluna cerrada, arrojando-se contra a multidão de índios. Estes, colhidos de surpresa, atordoados pelo estrondo da artilharia e dos arcabuzes, cegos pelo fumo que em colunas sulfurosas se espalhava pela praça, encheram-se de terror e não sabiam por onde fugir para evitar o fim que adivinhavam próximo.




Nobres e plebeus caíram sob as patas dos cavalos, cujos donos distribuíam golpes à direita e à esquerda sem poupar ninguém. As suas espadas, rebrilhantes através da densa nuvem de fumo, lançavam o desalento nos corações dos desditosos índios, que testemunhavam pela primeira vez as terríveis manobras da cavalaria. Foi assim que não opuseram resistência, nem tão pouco possuíam armas para o fazer. Não tinham possibilidade de escapar, porque a entrada da praça se achava obstruída pelos corpos dos que tinham perecido durante a vã tentativa de fuga. E tal era a agonia dos vivos ante o terrível ataque, que uma multidão de índios, em seus esforços convulsivos, rompeu através de um muro de pedras e barro seco no qual abriram uma brecha de mais de cem passos, pela qual se escaparam para o campo, perseguidos todavia pela cavalaria que, galgando por sobre os escombros do muro derrubado, caiu sobre os fugitivos - matando os que pôde e dispersando os outros em todas as direcções.

O monarca índio, aturdido e cercado, viu cair em seu redor os seus mais fiéis vassalos sem compreender o que se estava a passar. A liteira em que se fazia transportar andava de um lado para o outro consoante os agressores acometiam por aqui ou por ali. E ele contemplava aquele espectáculo de desolação como um marinheiro solitário que, acossado na sua barca pelos elementos furiosos, vê brilhar os relâmpagos e soar os trovões com a convicção de que nada pode fazer para evitar a sua sorte.

Os espanhóis, por fim, cansados da sua obra de destruição e vendo que aumentavam as sombras da noite, temeram que a sua régia presa se lhes escapasse depois de tão grandes esforços; e alguns cavaleiros tentaram desesperadamente concluir de vez a tarefa, tirando a vida a Atahualpa. Mas Pizarro, que estava por perto, gritou bem alto: Que se guarde de tocar no Inca quem tenha estima pela própria vida! E, estendendo o braço para protegê-lo, foi ferido na mão por um dos seus soldados, ferida essa que foi a única sofrida pelos espanhóis durante o ataque.

Então a peleja redobrou de fúria em torno da régia liteira, a qual se sacudia cada vez mais até que, mortos muitos dos nobres que a sustinham, o Inca correu o risco de tombar brutalmente no solo. Pizarro e alguns dos seus acudiram a ampará-lo nos braços, evitando a queda. As insígnias imperiais foram imediatamente arrancadas a Atahualpa e o desgraçado monarca foi transferido para um edifício próximo onde ficou apertadamente vigiado.
Cessou então toda a tentativa de resistência.

A notícia da captura do Inca espalhou-se pela cidade e pelos campos, dissolvendo-se o encanto que poderia manter unidos os peruanos. Cada um pensou somente na própria salvação. Soou também o alarme entre os soldados índios acampados nas imediações, os quais, ao saber da fatal notícia, deitaram a fugir por todos os lados, perseguidos pelos espanhóis que, no arrebatamento do triunfo, se mostraram sem misericórdia. Por fim a noite, mais piedosa do que os homens, estendeu um manto protector sobre os fugitivos, e as tropas dispersas de Pizarro reuniram-se outra vez, ao toque das trombetas, na praça sangrenta de Caxamalca."

As continuações de "Pizarro e a Conquista Espanhola do Peru" serão publicadas nas seguintes datas:

               - 2.ª parte - 14-Fevereiro-2019 (ver aqui)
               - 3.ª parte - 21-Fevereiro-2019 (ver aqui)
               - 4.ª parte - 28-Fevereiro-2019 (ver aqui)