quinta-feira, 12 de junho de 2008

Pedro I de Castela e Leão (1.ª Parte) - Cruel ou Justiceiro?


Estátua de Pedro I

Pedro I de Castilla y León (Burgos, 1334 - Montiel, 1369), apelidado El Cruel pelos seus detractores, El Justiciero por seus partidários.
Era filho de Alfonso XI, El Onceno, e de Maria de Portugal (filha do rei português Afonso IV, o Bravo).
Reinou de 1350 a 1369, ano em que morreu às mãos do seu meio-irmão Enrique, conde de Trastâmara, que seria o futuro Enrique II de Castela e Leão. Pedro I foi o último soberano da Casa de Borgonha.


Contam-se coisas horrendas do seu reinado, muitas delas talvez exageradas pelos inimigos que acabaram por vencê-lo. Na infância foi ignorado pelo pai, e aí residirá a origem da iniludível distorção da sua personalidade.
O português João Afonso de Albuquerque foi seu valido, uma espécie de primeiro-ministro, e torna-se por vezes impossível determinar onde termina a vontade de um e começa a do outro. Acabaram desavindos, com Albuquerque metido na conspiração que haveria de conduzir (já depois da morte dele) ao inglório fim do soberano.

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" (...) No começo do seu reinado, Pedro I de Castela relaciona-se com o po­der como se mal acreditasse nele, como se a faculdade de mandar lhe fosse estra­nha e a tivesse re­cebido apenas de empréstimo. O seu vulto é ainda impreciso, quase desaparece no quebra-luz das velhas crónicas, enquanto ele se vai recom­pondo dos anos em que, sendo herdeiro da Coroa, o trataram como se não fosse nada.

Uma vez no trono tolera que se sirvam do seu punho para subscreverem as decisões, deixa que lhe utilizem a figura, a legitimidade e o prestígio do sangue que tem nas veias. O poder verdadeiro reside, em parte, na influência da mãe, que lhe aparou os medos, os despeitos e os fantasmas de uma infância de en­jeitado. Mas só em parte. Porque a força maior, e genuína, procede da inteligência, do engenho e do pulso de ferro com que o português João Afonso de Albuquerque dá corpo àquilo que entende necessário para tornar Pedro um rei vigoro­so e indiscutido. Por mais ou menos três anos o reizinho e o seu ministro são historicamente insepa­ráveis um do outro.

Como qualquer valido de um monarca tão poderoso, Albuquerque tem as costas largas. Assumirá deste modo, no juízo severo de alguns vindouros, não apenas as próprias responsabilidades, mas também as alheias. Ele age com in­des­mentível fidelidade à causa de Maria, a rainha viúva, e defende com intransigência o re­bento desta. O zelo posto na missão será de tal ordem que até Afonso IV de Portugal, que vo­tou ao pai de Albuquerque o ódio que sabemos, o reconhecerá a seu tempo.

Os con­se­lhos do valido são de uma dureza por vezes incomo­da­tiva? Não pode negar-se. Mas ao incitar o rei a proceder desta ou daquela forma, ele escolhe ca­minhos de autoridade semelhantes aos que se percorre­ram em Portu­gal, em Aragão e, até – lembremo-nos do defunto El Onceno -, no próprio reino de Castela. Nos sangrentos lances iniciais do novo reinado, o valido portu­guês, que conhece como poucos a personalidade do monarca, in­s­pira, sugere, persuade. Pedro escuta-o, conde­scende, autoriza to­dos os gestos. Mas, nalgu­mas ocasiões, saboreia, com evidente autonomia, o espectáculo do pavor, do vexame e do padecimento dos outros. (...)

Pode afiançar-se que não foi Albuquerque quem fez nascer em Pedro o que este exibirá mais tarde à vista de todos: o feitio desconfiado, o carác­ter volúvel, a astúcia maldosa, a insânia passional, o vício da crueldade, a volúpia das matanças.
Um dia, séculos após a morte deste rei, alguns sábios irão arrancar-lhe o esqueleto ao negrume bafiento do túmulo para perscrutarem as juntas dos ossos, os ângulos da face, as pro­porções do crânio. E afirmarão, depois de maduramente remexerem e reflectirem, que o homem a quem tais restos pertenceram foi, sem sombra de dúvi­da, um anor­mal. Pode ser que sim. Pode ser que as explicações se achem gravadas nestes despojos amarelentos. Como pode ainda suceder que a verdade se oculte nas histórias contadas pelos cronistas portugueses acerca dos demónios à solta no útero embruxado de Maria de Portugal, durante aquele Agosto longínquo de Burgos. Mas será porventura mais crível que as ra­zões se descubram na consanguinidade das ligações que deram origem a este rei­. Ou na sua infância transtornada, durante a qual o vimos gatinhar pelos bastidores do palco ibérico, atrás das saias, da revolta e do pranto da mãe re­pudiada.

Nada disto deve com justiça assacar-se a João Afonso de Albuquerque: nem as dimensões insólitas de um crânio; nem as travessu­ras avulsas de um bata­lhão de diabretes; nem o perigoso cruzamento de parentescos próximos; nem a se­creta e precoce maturação de um psicopata.
Acreditemos que o valido nada tem de santo. Todavia, postado diante da velha nobreza castel­hana, turbu­lenta e indócil por tradição, ele é um político próprio do tempo, um agente eficaz do seu rei, recorrendo a uma violência feroz, mas usual, neste século XIV manchado de trevas.

Durante perto de três anos, e pelo menos à superfície, Pedro e Albuquerque convivem uni­dos e concordan­tes. O ministro aplica-se na construção de um trono ab­soluto, cuidando, pelo reizinho, dos de dentro e dos de fora. Em 1351 e 1352 as cortes de Valladolid legislam, de forma notável, sobre a organi­zação social, a segurança e as actividades económicas de Castela. As relações com Por­tugal estreitam-se num encontro, promovido pelo valido em Ciudad Rodrigo, entre Pedro e o seu avô materno, Afonso IV.

Garante-se o sossego com Navarra e Aragão. De Granada não há nada a temer. E, como se viu, as oposições mais preocupantes estão liquidadas ou reduzidas à im­potência. O sangue que espirrou em Talavera de la Reina, em Burgos e em Aguilar constitui um aviso tremendo e fun­ciona como poderoso dis­suasor de quais­quer impulsos de rebeldia. Até os bas­tardos de Leonor de Guzmán se avizinham, submissos, do trono. Enrique de Trastâmara chegou a refugiar-se em Portugal depois do caso de Talavera, mas Afonso IV interce­deu por ele junto do neto castelhano e, por agora, as coisas sossegam e compõem-se.

O peso e o valimento do fidalgo português afiguram-se, assim, seguros e está­veis. Mas, numa altura incerta deste período inicial - que se estende de 1350 a 1353 -, alguma coisa se modifica no íntimo do rei em relação ao seu ministro. Al­buquerque sente que o terreno que pisa junto do monarca se está a tornar movediço.
Quando é que as coisas se alteraram? E o que foi que se passou? Ignora-se ao certo. Mas o mais provável é que estejamos perante um pro­cesso gra­dual.

Pedro começa porventura a contemplar o ministro com outros olhos quando toma consciência de que a fonte do poder é ele próprio, o rei, e não a sua mãe ou o valido.
Em Burgos, na câmara da morte de Garci-Laso, a rainha viúva optou por sair de cena e ninguém se atreveu a mexer um dedo apesar da impaciência do ministro - ficaram todos à espera das palavras do reizinho, as únicas que conside­ravam, de facto, decisivas. Este processo, repetido em diferentes ocasiões, contribui para incutir em Pedro a confiança e a sobranceria que, a prin­cípio, ninguém lhe descobre. De humilhado e esquecido ele ascende a todo-pode­roso e temido, um ser tocado por Deus, diante de quem qual­quer pessoa, pequena ou importante, dobra o joelho e a vontade. Pedro pode ter levado algum tempo a compenetrar-se disto, mas tal acaba, natural­mente, por acontecer.

Maria de Padilla

O que precipita o agravamento das relações do monarca com o seu ministro é a influência de uma mulher. Significativamente, não se trata daquela que o valido consegue arranjar a Pedro na corte francesa, durante o período das cortes de Valladolid. Com efeito, Albuquerque, apoiado por Maria de Portugal e pelo bispo de Palência, ajusta o casamento de Pedro com uma sobrinha do rei de França, filha do duque de Bourbon. Mas essa união com a menina Blanche, que acabará por consumar-se em 1353, não passa de um enlace polí­tico, chave de uma aliança franco-castelhana supostamente vantajosa para o Reino. Por tal motivo, não se espera que Pedro diga que sim ou que não: ele acata o com­binado com alguma indiferença, como compete a qualquer cabeça coroada di­ante de um negócio favorável ao trono.


É à margem destas manobras diplomáticas que o rei depara, nos seus iti­nerários, com uma jovem, miudinha de corpo mas cheia de encanto, que se lhe apodera do coração. Sucede o caso nos finais da Primavera de 1352, quando Pedro, interrompendo por uns tempos o cerco a Coronel, acorre às Astúrias para fazer face ao desassossego do bastardo Enrique. De passagem por Saha­gún, ele demora o olhar em Maria Díaz de Padilla, uma menina criada na companhia de Isabel de Menezes, esposa de Albuquerque.


Opinar-se-á mais tarde que o encontro terá resultado de um expediente do valido, desejoso de colocar gente de confiança na intimidade do rei. Não há provas disto, sendo talvez mais provável que Albuquerque esteja a facilitar, com uma donzela conhecida, a iniciação amorosa de um reizinho pouco vivido. É de qualquer modo um tio de Maria - Juan Fernández de Hinestrosa - quem a traz à presença de Pedro. A partir deste momento, que para os dois jovens parece ter sido de mágico e definitivo fascínio, nada tornará ao que era dantes. Maria de Padilla já não deixa o monarca: com ele viaja pelas Astúrias e pelas fronteiras de Aragão, e com ele desce à Andaluzia, onde Pedro vem rematar o assunto de Coronel. Por ocasião da morte deste, Maria de Padilla acha-se em Córdova, quase no termo de uma gravidez que, dentro de poucos dias, oferecerá ao rei, neste ano de 1353, a sua primeira filha, Beatriz.

Pouco depois do parto, Maria de Padilla transfere-se com Pedro para Torrijos, poucas léguas a noroeste de Toledo. O clima é de risos e de festa, e, nesta espécie de irrealidade, ninguém parece lembrar-se de que existe um compromisso sério com a França e com a menina Blanche de Bourbon. Nos finais de Fevereiro cai em Torrijos a notícia de que a noiva gaulesa chegou com o seu séquito a Valladolid. Acompanhada da nata da nobreza castelhana, ela espera que o monarca se digne vir ao seu encontro. Pedro, consternado, não se mexe. A demora é tanta que Albuquerque resolve dirigir-se a Torrijos para o convidar a cumprir os seus deveres.

Neste momento é já visível a mudança de atitude do soberano para com o ministro - uma distância ostensiva, uns laivos de enfado, talvez alguma desconfiança.
Maria de Padilla, amada e omnipresente, acabou por se impor no espírito de Pedro, e, em torno deste, enquista-se uma nova corte de favoritos, nem mais nem menos do que os familiares e os amigos de Maria. Aqui temos os seus irmãos - Diego Garcia de Padilla e Juan Garcia de Villagera. Ali, o tio Hinestrosa. Acolá, os amigos dos manos - Juan Tenório e Suer Pérez de Quiñones. E muitos outros se irão insinuando no espaço que outrora pertenceu a João Afonso de Albuquerque e à rainha-mãe.

O valido insiste com o rei: é urgente partir para Valladolid, onde se celebrará o casamento com Blanche. Pedro vai recalcitrando, reflecte em cada palavra e em cada gesto o efeito dos gestos e das palavras que recebeu de Maria de Padilla e dos conselheiros mais recentes. O problema de Albuquerque torna-se insolúvel, pois nenhuma mulher apaixonada suporta ver no homem amado, seja qual for a razão, influência maior do que a sua. Maria de Padilla, e os seus amigos, consideram que o valido é um obstáculo a suprimir para que o futuro possa pertencer-lhes.

Pedro está, sem dúvida, enamorado - e comporta-se como tal. Mas qual é a escolha que se lhe oferece?
Ou vai por Maria de Padilla ou vai por Albuquerque, não existem mais alternativas. Num lado tem ele o afecto e os mimos de uma doce jovenzinha, servidos num clima de alegre distensão. No outro aborrecem-no as frias razões de Estado, a incomodidade dos objectivos, a secura de sentimentos.

Junto da pequena e bonita Maria, Pedro acredita que os horizontes do poder têm os limites da sua vontade. À sombra do valido, austero e determinado, o espaço de manobra contém-se em fronteiras apertadas, as opções não abundam, o caminho tem sentido único. Portanto, assim que Maria sussurra e sugere alguma coisa, o rei deixa-se embalar pela sabedoria eterna e anestesiante da sedução feminina - e obedece mesmo quando pensa que manda. Com Albuquerque principiam as discordâncias e faísca o choque de vontades, naturais no processo de educação de um monarca absoluto.
A escolha de Pedro está feita, e, para ele, Albuquerque já acabou - embora o ministro não o saiba ainda." (...) (*)

(*) José Bento Duarte - Peregrinos da Eternidade - Crónicas Ibéricas Medievais - Editorial Estampa - Lisboa - 2003
(CONTINUA)

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