Pedro I de Castela e Leão |
Provavelmente co-responsável, com João Afonso de Albuquerque, pelo assassínio de Leonor de Guzmán - a bela nobre sevilhana que foi o grande amor da vida de seu pai, Alfonso XI, El Onceno -, e beneficiando, pelo menos, da cumplicidade vingativa de sua mãe (Maria de Portugal), Pedro I de Castela logra disfarçar-se ainda na sombra durante esse episódio sangrento.
A primeira aparição comprovada no palco de sangue que foi o seu reinado dá-se em Maio de 1351, na cidade de Burgos, onde, instigado pelo terrível Albuquerque, mandou proceder friamente à execução do adelantado Garci-Laso de la Vega.
É, tal como o narram os cronistas, um dos lances mais impressivos da Idade Média castelhana.
……….
" (...) A tragédia de Leonor de Guzmán deixa muita gente estarrecida, mas pode, de certo modo, confundir-se com o epílogo de um enredo passional. João Afonso de Albuquerque sabe, e o reizinho aprende depressa com ele, que é indispensável ir mais longe para que os nobres irrequietos entendam a natureza e o alcance do novo poder. Por isso, neste Maio de 1351 que se vai recamando de matizes sangrentos, a corte efectua um desvio por Burgos, onde Juan Núñez de Lara andou a espalhar, antes de se despedir da vida, as sementes do descontentamento.
Em Burgos permanecem alguns dos amigos do falecido, como o adiantado de Castela, Garci-Laso de la Vega. Albuquerque trabalha o espírito do soberano, alerta-o para o risco que representam para a Coroa as forças de que dispõe o adiantado.
Há factos recentes que jogam a favor destes avisos, como o assassínio, em Burgos, de um cobrador de impostos do rei. Que fez Garci-Laso, com toda a sua autoridade, perante um atentado de semelhante gravidade? Rigorosamente nada. E, agora que se aproximam da cidade, não vê Pedro como os burgaleses se propõem barrar-lhes a passagem?
Em boa verdade, na pureza das coisas, é a pessoa de Albuquerque que os habitantes da cidade querem ver pelas costas: mas hostilizar o valido não é o mesmo que desafiar a autoridade do rei? Pedro não tarda a convencer-se de que está diante de um covil de traidores. Ordena, então, que se dê entrada na cidade, e, num sábado de Maio, vai hospedar-se em casa do bispo. Maria, a rainha-mãe, que está por dentro do que se trama, expede nessa noite um recado para Garci-Laso de la Vega, advertindo-o de que por nada deste mundo se deve encontrar com o rei.
O relato do que vai ocorrer em Burgos com o adiantado de Castela permite que captemos pela primeira vez, na sua identidade genuína, a figura do novo monarca. Pedro abandona enfim as sombras para onde foi empurrado por duas personagens dominadoras – antes, o pai, agora Albuquerque - e adianta-se para a luz com a marca inconfundível da sua própria personalidade.
Na manhã de domingo, Garci-Laso resolve ignorar os avisos da rainha e encaminha-se, com alguns cavaleiros e escudeiros, até à residência real. Fresco, desprendido e seguro, é óbvio que ele se imagina protegido pela sua reputação e pelo seu poderio.
À chegada vislumbra alguns sinais que seriam preocupantes para outro homem mais cauteloso do que ele - um certo ar de estado de sítio, com magotes de guardas isolando os acessos ao palácio. A despeito disso, Garci-Laso entra de peito cheio. E é pouco depois de entrar que começa a perceber que cometeu uma imprudência sem remédio.
Na câmara onde se acha o rei estão também Albuquerque, a rainha-mãe, alguns nobres, um padre, vários homens de armas. Todos com cara de caso. Maria, perturbada, some-se de repente numa dependência contígua, e os companheiros do adiantado são num ápice retirados de cena. Garci-Laso compreende. Se acaso lhe acode uma ponta de dúvida, ela dissipa-se assim que soa na câmara a voz de Albuquerque: Alcaide, sabeis o que tendes de fazer?
O alcaide, Domingo Juan de Salamanca, está ainda posto em respeito pelo prestígio do adiantado. Hesita. Não lhe basta o mando do valido. Volve-se para o rei, pede-lhe que confirme. E Pedro ordena: Besteiros, prendei Garci-Laso. Subjugado por vários homens sem um esboço de resistência, o adiantado já se convenceu de que não sairá dali vivo. Roga, conformado, que lhe permitam confessar-se. Adianta-se o padre com o prisioneiro até ao vão de um portal que dá para a rua. E ali, espiado por uma quadrilha de algozes, Garci-Laso vai murmurando os seus pecados a troco da última absolvição.
As coisas arrastam-se. Albuquerque, arquitecto do poder total do rei, impacienta-se junto deste: Senhor, mandai o que se há-de fazer. E o jovem monarca determina que dois cavaleiros se dirijam ao confessionário improvisado com a sentença de Garci-Laso. Mas os besteiros não querem ainda acreditar. Um deles, Juan Ruiz de Oña, chega-se mesmo ao rei com a pergunta decisiva: Senhor, que mandais fazer de Garci-Laso? A vida do adiantado de Castela fica suspensa de um fio.
Convém reter este momento. Porque é exactamente agora que o verdadeiro Pedro surge da obscuridade, onde esteve encoberto até hoje, para se expor, de corpo inteiro, à autenticidade histórica. É nestes segundos dramáticos que ele assume, sílaba a sílaba, glacial e distante, as suas primeiras palavras letais: Mando-vos que o mateis.
Não é preciso mais nada, pois o que se escutou não veio do português Albuquerque, veio do mais poderoso dos homens de Castela. E os besteiros logo caem como feras sobre Garci-Laso. Juan Ruiz de Oña assenta-lhe no crânio um tremendo golpe de maça, Juan Fernández Chamorro apunhala-o, e depois crivam-no de golpes até o perceberem sem um sopro de vida. O próprio rei ordena que o cadáver seja lançado à rua.
Neste domingo de Maio, que se quer festivo, correm-se touros na cidade em honra do soberano. E Pedro fica para assistir à tropeada dos animais que passam bravios na rua, por cima do corpo de Garci-Laso, pisoteando-o, colhendo-o, desarticulando-o, levando-o de rojo num tumulto de cascos e de cornadas, como um boneco grotesco, empastado de sangue. Mais tarde, encaixado num ataúde, ele será exposto nas muralhas de Burgos como advertência às oposições.
Pedro contemplou em pessoa o espectáculo da morte e aspirou o odor do sangue. O futuro mostrará como apreciou tudo isso. Por agora, os actos de violência explicam-se como meios de afirmação do poder real. (...). (*)
(*) José Bento Duarte - Peregrinos da Eternidade - Editorial Estampa - Lisboa - 2003)
(CONTINUA)
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