sábado, 28 de setembro de 2019

" A Volta ao Mundo", de Ferreira de Castro (2) - Encontro com as Gueixas, no Japão





Na sua longa viagem, Ferreira de Castro chegou ao Japão pouco depois do começo da 2.ª Guerra Mundial (1939). Nessa altura, faltavam quase dois anos para o ataque nipónico a Pearl Harbor, o qual traria como consequência a entrada em força dos Estados Unidos na guerra. Mas o Japão não se achava em paz, estando empenhado, desde Julho de 1937, na brutal invasão da China (2.º conflito sino-japonês).

Apesar disso, o escritor pôde percorrer demoradamente várias cidades do país, legando-nos sobre essas visitas dezenas de páginas interessantíssimas. Em Tóquio, como não podia deixar de ser, decorreu o seu


Encontro com as Gueixas


“Os nossos companheiros metem-nos num dos restaurantes. Ao lado de cada um de nós senta-se uma gueixa. Japonês saturado da mulher e do ambiente doméstico, se pensa ir jantar fora de casa com um amigo, pensa, ao mesmo tempo, jantar com o amigo e com duas gueixas.

Pequeno ou grande burguês, industrial, financeiro, almirante, ministro do imperador, nenhum deles concebe banquete ou simples colação num restaurante sem a companhia destas raparigas. Por mor disso, muitas personagens nipónicas têm perdido a vida, porque algumas gueixas, senhoras de segredos de Estado e de conspirações que surpreendem durante os jantares, acabam por cometer funestas inconfidências. Mas tão arreigado está o hábito da companhia grácil, que se, um dia, as gueixas desaparecerem da vida nacional, haverá muitos infelizes entre os homens endinheirados do Japão…



As gueixas não são prostitutas. O seu nome significa, em japonês, “pessoas de arte”. Quase todas elas são vendidas, pelos pais, às donas das geishayas, quando se encontram ainda na infância, e, depois, metidas num dos vários colégios, destinados a educá-las, que existem em Tóquio e noutras cidades.
Ali, até aos quinze anos, aprendem as boas maneiras e a cultura artística que devem tornar grata a sua presença junto dos homens. Ensinam-lhes poesia, música e danças. Ministram-lhes, ao mesmo tempo, conhecimentos sobre a história nipónica e a geografia universal.

Ultimamente, dada a evolução do país, as gueixas aprendem, também, assuntos militares que possam interessar, durante os banquetes, aos ministros, aos almirantes e aos generais, pois estes preferem, hoje, falar de canhões, de navios de guerra e de soldados do que ouvir poemas clássicos…



Após tão variada educação, a nova gueixa está apta a comparecer nos restaurantes. Basta telefonar para a geishaya e ela acorre à chamada, com outras companheiras – tantas quantos são os senhores que pretendem comer em companhia feminina. A sua presença é paga à hora e incluída na conta do jantar, aumentada de uma sobretaxa, porque o Estado considera actualmente as gueixas como artigo de luxo.

O dinheiro vai daqui para a bolsa das matronas que exploram estas raparigas. As gueixas raramente vêem uma nota de banco. Vestidas e alimentadas pelas geishayas, creditam-lhes a quinta parte de quanto fazem, em desconto dos yenes que os pais receberam pela sua venda. Este dinheiro deve estar integralmente coberto antes de a gueixa atingir 25 anos, pois, com essa idade, já a têm por velha.



Há gueixas que, pela sua beleza ou pelo seu espírito, criam fama semelhante à das artistas em voga – e, para as ter à mesa de jantar, é necessário o candidato à sua companhia inscrever-se com dias e até semanas de antecedência… Quando se pede determinada gueixa, as matronas consideram que essa preferência vale dinheiro e cobram o dobro do preço de uma gueixa indeterminada.

(…) Junto dos seus clientes, as gueixas devem mostrar-se como figuras de encanto visual e espiritual e não como cortesãs. Elas podem sorrir maliciosamente e nublarem de voluptuosidade os seus olhos; nada mais, porém, lhes é consentido pelos regulamentos, nem aos que elas fazem companhia é permitido solicitar mais.

Se surgem paixões devem curar-se fora dos restaurantes, porque o contrário seria atentado aos bons costumes. Geralmente, a dona da geishaya, uma velha gueixa reformada, vende, por alto preço, a “primeira noite” da pupila. Depois disso, a nova gueixa é livre de amar quem quiser, desde que o não faça nas horas destinadas ao seu trabalho. E ela ama, quase sempre, um jovem nipónico que não tem dinheiro para ir aos restaurantes e que detesta, como é humano, todos os restaurantes onde a eleita vai exercer a profissão.



Das três gueixas que, esta noite, nos fazem companhia, nenhuma conta mais de vinte anos. Não são muito bonitas, mas são graciosas – bonecas de sorriso doce e delicados gestos. Ajoelhadas sobre as almofadas e corpo repousando nos calcanhares, enchem os nossos copos e dominam o riso perante a careta que nos provoca o “saké”, bebida feita de arroz. Têm sempre à mão uma caixa de fósforos para acender os nossos cigarros e mesmo palitos para servir os clientes…

Entendemos ser injusto e absurdo que, estando nós a jantar, elas não jantem também. Mas as três dizem-nos que não podem fazê-lo, por ser contra o regulamento do seu ofício. Comeram antes de vir para aqui e comerão novamente logo que daqui saiam. Falam inglês com uma suavidade que as próprias inglesas não conseguem ter. Todos os seus gestos foram estudados, mas, agora, elas portam-se com tanta naturalidade como se já tivessem nascido assim.


No restaurante, cheio de balões japoneses, há outros grupos de comensais e de gueixas e sente-se que, perante uma risada, uma harmonia de poema recitado, um trecho de música, estas três raparigas desejariam voltar a cabeça e ver o que se passa. Contudo, não o fazem. Por fim, uma delas recita, também, velhas poesias nipónicas, que, para nós, valem apenas pela sua melodia e pelo encanto que lhes dá a própria recitadora.
Em seguida, a “Ritmo de Fonte”, a mais nova das três, toca o seu “shamisen” e logo as demais dançam. Até há pouco, as danças ocidentais eram cultivadas na vida nocturna de Tóquio e algumas das próprias gueixas as executavam.

Ultimamente, porém, as autoridades proibiram todas as danças da Europa e da América, por as considerarem imorais e anti-nacionalistas. Assim, estas duas gueixas dançam com movimentos puramente nacionais – movimentos tão vagarosos e monótonos que nem os das sagradas virgens do templo de Nara…

Quando elas terminam, o nosso anfitrião decide ir mostrar-nos o famoso jardim de Asakusa.”





Fonte: Ferreira de Castro - A Volta ao Mundo (3.º vol., de um total de 3) - Livraria Editora Guimarães & C.ª - Lisboa - Portugal - Ano de 1952.

Ver a postagem (1) de "A Volta ao Mundo".

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