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sexta-feira, 28 de junho de 2019

Um conto exemplar do povo Cuanhama (Sul de Angola)

Angola, com as suas províncias.
O povo Cuanhama, que pertence ao grupo Ambó, vive no sul do país (na província do Cunene, que faz fronteira com a Namíbia).

O conto que abaixo se transcreve pertence a uma recolha efectuada pelo missionário espiritano Carlos Estermann, distinto etnólogo que dedicou a maior parte da sua vida ao estudo dos povos do Sul e, particularmente, do Sudoeste angolano.
Estermann, nascido alemão (na Alsácia, em 1896), chegou a Angola em 1924 e aqui faleceu em 1976.
Deixou uma obra vastíssima, ainda hoje indispensável referencial para qualquer investigador do tema. E ganhou com ela o direito de emparceirar com os mais ilustres espiritanos que o antecederam no Sul de Angola.

Quanto aos contos que apresenta na sua obra, ele faz esta importante prevenção:

O conto popular, tirado do seu ambiente natural (que é o de ser contado e ouvido), perde muito da sua espontaneidade e frescura. Isto é duplamente verdade quando se trata do conto africano. O seu ambiente é a noite, quando, depois do jantar, os habitantes da aldeia se reúnem em conversa amena em volta da fogueira.
Para narrar o conto, destaca-se um indivíduo que, em geral, fala de pé. Pouco a pouco, ele vai-se animando, modula a voz segundo os vários actores que intervêm na história e intercala interjeições - ora lamentosas ora explosivamente admirativas. Gesticula, não só com os braços, mas, conforme as exigências da narrativa, com o corpo todo.
O auditório toma parte activa, ficando às vezes como que electrizado. Manifesta de onde a onde, ruidosamente, a sua aprovação ou desaprovação, sublinha as partes hilariantes com risos estrepitosos e reage entendidamente às frases sarcásticas (…).


Recriado, deste modo, o "ambiente natural" do conto africano, estamos prontos para ouvir a seguinte história cuanhama:

 
O Leão e o Chacal
 
O leão tinha um bode.
O chacal possuía uma cabra.
O chacal foi ao leão e disse:
- Majestade, empresta-me o teu bode para fazer criação com a minha cabra. Quando esta tiver parido, eu virei trazer-te o bode com o respectivo pagamento.
O leão concordou.
Depois de ter ficado coberta, a cabra pariu dois cabritinhos: uma fêmea e um macho. Então, o chacal agarrou o bode e a pequena fêmea e levou-os ao leão, dizendo:
- Cá tens o teu bode e também o pagamento.
O leão perguntou ao chacal: Nasceu só esta cabrita?
- Nasceram dois - respondeu o chacal.
- Então, onde deixaste o outro?
- Um deles, o pequeno macho, ficou para mim, para fazer criação com a mãe.
O rei da floresta, quando ouviu isto, ficou zangado e disse:
- Vai já, já, procurar o outro cabrito, para mo entregares. Tu queres roubar-me? Se o meu bode não tivesse fecundado a tua cabra, teria ela, porventura, tido cabritos? Os dois cabritos são meus, pois o meu bode é que os gerou!
O chacal disse: - Isso não pode ser de maneira nenhuma! Tu queres roubar-me porque és rei! Vamos chamar todos os bichos da floresta para fazer um julgamento e vermos se sou eu que quero roubar-te ou se és tu que me queres roubar a mim.
Disse então o rei da floresta: - O animais da floresta vou mandá-los vir amanhã de manhã cedo. Mas, se eu tiver razão, hei-de acabar com toda a tua raça! 


Quando o chacal se separou do leão, foi à procura do cágado e disse-lhe:
- Amigo cágado, amanhã tenho um julgamento com o senhor da floresta. Vem defender-me. Pedi-lhe emprestado um bode para fecundar a minha cabra. Agora que esta pariu, diz o leão que ambos os cabritos são dele, porque foi o bode que os teve.
- Está bem - respondeu o cágado. - Encontrar-nos-emos amanhã na residência do rei, mas não deixes começar o julgamento sem eu estar presente. 

Na manhã seguinte, todos os animais se dirigiram ao local da reunião. Perguntou então o rei da floresta:
- Estão cá todos?
- Sim, viemos todos.
- Então vamos ao julgamento, para ver se chegamos a uma conclusão - disse o leão.
Disse o chacal: Não, senhor, não pode ser! Ainda falta chegar um.
- Quem é que falta?
- É o cágado.
Ficaram os bichos à espera, até que o sol se ergueu a prumo. O cágado não havia meio de chegar. Alguns impacientaram-se e disseram:
- Façamos o julgamento. Porque ficar à espera de um só? Será ele porventura mais inteligente do que nós?

Ainda não tinham acabado de falar quando o cágado se apresentou. Assim que ele chegou, disse a hiena:
- Ah! Sim! Foi este fedelho que fez de nós seus criados! É este bichinho de casca que pretende ser mais inteligente do que todos nós. Toda a manhã estivemos à tua espera, com o rei da floresta. O que andavas a fazer então? Todos os teus companheiros já vieram muito cedo. Tu és muito malcriado!
- Está calada e não me ralhes - disse o cágado. - Eu tive que fazer em casa porque o meu pai deu à luz!
Os bichos ficaram muito admirados com esta desculpa e perguntaram uns aos outros: - Todos vós que estais aqui presentes: quem é que viu um macho que desse à luz?
Ninguém sabia o que havia de responder ao cágado, ficaram todos embaraçados e disseram: - Nunca vimos um macho que parisse; são só as fêmeas que dão à luz. O teu pai deve ser o único a dar à luz nesta terra!
- Ah, sim? - disse o cágado. - Só o meu pai é que teve filhos? Então a causa do julgamento por que estais reunidos, qual é? Não sois vós que dizeis que o bode teve dois cabritos?
Então os bichos puseram-se de pé, resmungaram e disseram: - Aqui não há uma causa justa!
E assim o leão foi declarado vencido por todos os bichos e o chacal ficou com ambos os cabritos.

………

Nota do padre Carlos Estermann:

O sentido desta fábula é tão claro e a narrativa tão bem encadeada, que dispensa quaisquer comentários. Celebra ela o direito eterno e inviolável dos fracos contra os fortes e, por este lado, apesar da ingenuidade da exposição, emparceira com as obras mais sublimes da literatura mundial. Lembra-nos a "Antígona", de Sófocles, onde se proclamam os direitos não escritos e imutáveis que nenhum tirano poderá impunemente esmagar.


Fonte: Carlos Estermann, Etnografia de Angola (Sudoeste e Centro), Vol. 2, p. 290-291.
Publicado pelo Instituto de Investigação Científica Tropical
Lisboa - 1983

domingo, 22 de julho de 2012

"Rumo às Terras do Fim do Mundo" - Uma Aventura em Angola

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No quadro do protocolo há anos existente entre o Governo da Província do Kwanza-Sul (Angola) e a Câmara Municipal de Almada (Portugal), teve lugar, de 9 a 22 de Junho de 2012, o 6.º Raid Kwanza-Sul, que levou algumas dezenas de participantes angolanos e portugueses a percorrerem, em caravana automóvel, as províncias do Cunene e do Cuando-Cubango (as chamadas “Terras do Fim do Mundo”, no canto sudeste do País).

Nos cinco raids anteriores tinham já sido percorridas as outras 16 províncias. Trata-se de uma iniciativa que, muito para além das componentes lúdica e turística, tem como objectivo a aproximação e o aprofundamento de laços entre dois povos, o angolano e o português, que continuarão para sempre irmãos, apesar das – por vezes infelizes – vicissitudes políticas.


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À semelhança do que sucedeu nos três últimos raids, a organização fez agora editar um livro (“Rumo às Terras do Fim do Mundo” – ver capa na 1.ª foto) relacionado com o itinerário da caravana.

Nesta magnífica publicação de 184 páginas, com belíssimas e por vezes surpreendentes ilustrações, um grupo de autores convidados dá a conhecer, em artigos específicos, a história, a geografia, a cultura e os mais relevantes aspectos das regiões percorridas.

A edição é da PANGEIA (Lisboa) e a coordenação geral da obra pertenceu a Miguel Anacoreta Correia. A operacionalização mais directa, com um competente e sugestivo tratamento da informação, coube a Eleutéria Ornelas.

É um livro de leitura altamente recomendada, sobretudo para aqueles que se interessam pela História de Angola e de Portugal. (Preço: € 20).

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Segue uma visita guiada pelos 15 artigos da obra:

1 – De Luanda ao Bié Autora: Eleutéria Ornelas (Descreve-se a parte inicial do percurso, entre a capital, Luanda, e o Bié, no coração de Angola. Abundantes referências à realidade actual e à história das regiões percorridas).

2 – Bié. O centro de Angola e centro das bacias hidrográficas Autor: Ilídio do Amaral (A terra, a flora, os rios e a história do referido coração de Angola).

3 – O Cuando-Cubango. Como se ligou a Angola - Autores: Nuno Costa e Jorge Maceirinha (A forma como Portugal conseguiu, não obstante a poderosa e perigosa concorrência das grandes potências europeias, juntar ao território angolano a imensa região do sudeste que dá hoje corpo à província do Cuando-Cubango).
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4 – O caminho-de-ferro de Moçâmedes – Autor: Dolbeth e Costa (Epopeia da construção da difícil ferrovia que liga Moçâmedes - actual Namibe - ao interior - Lubango, Menongue… -, no Sudoeste de Angola).

5 – Menongue – Autor: João Loureiro (Como e por que razão nasceu Menongue, a antiga Serpa Pinto, de riquíssima e movimentada história).

6 – As batalhas do Cuito-Cuanavale – Autor: Jaime Nogueira Pinto (Descrição dos mortíferos combates da guerra civil angolana na região atravessada, com participação de forças locais – MPLA e UNITA – e estrangeiras – Cuba e África do Sul).


7 – Os Khoisan – Autor: Reinaldo Ribeiro, com adaptação de Manuel Vaz para este livro (Vida de um povo de fantásticos sobreviventes caçadores-recolectores, que se espalha pelo Sul de Angola, Namíbia, Botswana e áreas adjacentes).

8 – A travessia de Serpa Pinto – Autor: Manuel Vaz (Descrição da travessia que o mítico explorador português realizou, no século XIX, entre Angola e a África do Sul).

9 – A questão do Barotze – Autor: Francisco Gaspar (Mais uma árdua disputa de Portugal, no século XIX, para aumentar a sueste o território angolano, numa região que compreende hoje uma província da Zâmbia, Barotseland).




10 – Fronteira Leste - Raia d’África – Autor: José Carvalheira (Sobre a definição das fronteiras angolanas a leste, com mil e uma peripécias históricas e a acção relevante de Gago Coutinho, entre outros).

11 – Organização Social dos Cuanhamas – Autor: J. Lino da Silva (já falecido), com adaptação de José Bento Duarte para este livro (Sobre o habitat, a organização e a vida do povo Cuanhama, antigamente a mais poderosa tribo do grupo étnico dos Ambós).

12 – Mandume Autor: José Bento Duarte (Vida e morte de Mandume, último rei independente dos Cuanhamas, no Sul de Angola, que o general português Pereira de Eça teve de enfrentar em terríveis combates no ano de 1915. Acabaria morto pelos Sul-Africanos em 1917 e é hoje um herói venerado pelo povo angolano).




13 – Área Transfronteiriça Okavango-Zambeze – Autora: Amélia Cazalma (Minuciosa descrição de um importante projecto sócio-económico, actualmente em curso, que integra cinco países da região – Angola, Botswana, Namíbia, Zâmbia e Zimbabwe).

14 – Raids 1, 2, 3, 4, 5, 6 – Autor: Manuel Larangeira (Análise da importância deste e dos cinco raids anteriores para o turismo de Angola).

15 – A Finalizar – Autor: Miguel Anacoreta Correia (O coordenador do livro faz o encerramento do mesmo – e sintetiza: “estamos a contribuir para o amor a Angola, porque só se ama o que se conhece”)



Nota Final  – A obra abre com as mensagens do Governador da Província do Kwanza-Sul (Serafim Maria do Prado) e da Presidente da Câmara Municipal de Almada (Maria Emília Neto de Sousa).

É enriquecida por alguns poemas, da autoria de:

Carlos Aniceto Vieira Dias ( poema Muxima);
Luandino Vieira (Estrada);
Namibiano Ferreira (Saudação Matinal).


sábado, 14 de agosto de 2010

Cuanhamas do Sul de Angola (3) - Um Pouco do seu Quotidiano

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Um eumbo, ou aldeia cuanhama. Os Cuanhamas pertencem ao grupo étnico dos Ambós,
com mais quatro tribos: Cuamatos, Evales, Cafimas e Dombondolas.
Ocupam a parte central do Sul de Angola, fronteira à Namíbia.
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A vida matrimonial dos Ambós é normalmente de base poligâmica, sendo excepcional encontrar um par monogâmico. Consideram inferior esta última situação e só a aceitam quando não podem proceder de outra maneira.
Os chefes de certa importância – sobretudo se chefes de cantão – não vivem com menos de três ou quatro mulheres. O maior número de mulheres que encontrei foi em casa de um antigo chefe guerreiro, um lenga, que possuía quinze.
O homem tem de construir um conjunto de cubatas para uso pessoal de cada uma das suas mulheres.


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O homem tem o dever de visitar as suas mulheres, num ritmo alternado e regular, que depende do número de esposas.
A regra mais geral é a de passar quatro noites na cubata de cada uma.
De facto, não é a mulher que vem dormir na cubata do homem, mas sim o inverso.

É geralmente depois da conversa que se segue à refeição da noite, e para a qual todos os habitantes da casa se reúnem no pátio grande, que o marido convida a mulher com quem vai passar a noite.
Ele emprega para isso, invariavelmente, uma destas fórmulas:
Fulana, vai acender o fogo na nossa cubata!
Ou:
Fulana, vai estender as minhas mantas!
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De manhã cedo, não estando ausente ou doente, o marido passa diante das cubatas das suas mulheres dando-lhes a saudação matinal e informando-se se estão todos (esposas e filhos) de saúde.
Em seguida vai sentar-se no pátio grande e aí lhe levam as mulheres, em pequenos cântaros, uma cerveja ligeira chamada osikundu.

O homem prova, fica com a melhor e dá a outra aos rapazes crescidos. É o seu pequeno-almoço.
Mulheres e crianças pequenas contentam-se com os restos da ceia do dia anterior.
Tomada esta pequena refeição, começa o trabalho do dia.
Os rapazes vão ordenhar as vacas no curral e trazer o leite para as cabaças que servem de batedeiras na fabricação de manteiga.
Pouco depois, levam o gado para o pasto.

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A carga de trabalho das mulheres e das raparigas crescidas varia muito ao longo do ano.
Assim, durante o tempo do cultivo, que começa em fins de Outubro e termina em Abril, saem logo de manhã cedo para os campos e, durante a faina da sacha, nem sequer regressam a casa ao meio-dia.

Fora desta época, o trabalho é mais leve, e a mulher pode muitas vezes passar horas a ocupar-se com coisas de somenos importância, tais como: consertar a cinta de missangas ou acrescentar umas voltas ao cesto trançado com folhas de palmeira que começou há dias.

Pode ainda tomar para si algum tempo, recebendo visitas ou atardando-se pelos caminhos na conversa com vizinhas e amigas.
Será entretanto necessário ir buscar água e lenha para a refeição do meio-dia. Esta é menos importante do que a da noite, e a parte do marido e dos rapazes é em geral preparada por uma só mulher.
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Quanto à refeição da noite, podemos retratá-la da seguinte maneira: o marido senta-se, à espera, no lugar de honra do pátio grande. As esposas, uma a uma, vão-lhe levar uma pratada de pirão (papa espessa, obtida do cozimento da farinha) e uma tigela de conduto.
Ele escolhe o que lhe apraz, para ele e para os rapazes, e com estes se põe a jantar.
As mulheres comem cada uma na sua epata (conjunto das suas cubatas particulares), juntamente com as raparigas crescidas e as crianças de ambos os sexos.

Acabado o jantar, reúnem-se todos fraternalmente em volta do pai de família na “sala grande”.
É a hora do recreio comum, que não se dispensa.
Conversa-se à vontade.
Comentam-se os acontecimentos do dia, ou recordam-se as coisas dos tempos antigos.
É o momento propício para se contarem fábulas e resolver adivinhas.
A gente nova pede por vezes licença para ir a uma reunião dançante, onde muitas vezes passa a noite.
Depois de uma ou duas horas de conversa alegre, chega o momento de recolher. Cada um se despede e se retira para o seu canto.
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Adaptado de: Padre Carlos Estermann - Etnografia do Sudoeste de Angola - Vol. I - pág. 126-128 - Junta de Investigações do Ultramar - Lisboa - Portugal - 1960.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Cuanhamas do Sul de Angola (2) - Os Começos da Vida



“(…) As mulheres cuanhamas, como aliás todas as mulheres das tribos da região, com excepção das Bochimanes, recolhem às suas cubatas para terem os filhos, a não ser que as dores do parto as surpreendam longe de casa.
Durante a operação a parturiente é assistida por uma ou mais mulheres velhas, geralmente próximas parentes, que fazem as vezes de parteiras. É facilmente admitida mais uma ou outra espectadora – poucas, porque a cubata cuanhama é de dimensões muito reduzidas. Aos homens é vedada a entrada antes de tudo estar acabado.



A posição da parturiente é a “de joelhos”, com as nádegas apoiadas sobre os calcanhares. Ao referirem-se a um parto prolongado dizem (por exemplo): “Ela esteve de joelhos desde o nascer do Sol até ao meio-dia”, ou coisa parecida.
As secundinas (ositungwa) são enterradas na cabana. Se tardam a sair, chama-se uma especialista, que administra à parturiente um remédio, em cuja composição entram flores secas de uma variedade de aloés.
O cordão umbilical é cortado à faca e o umbigo da criança é esfregado com o fruto oleaginoso assado do arbusto omupeke.
Tratam, logo depois, de untar todo o corpo da criança com lukula (mistura de manteiga e de pó do cerne da árvore omuuva, de cor vermelho-vivo).


Uma vez que dentro da cubata tudo tenha decorrido normalmente, o pai da criança pode enfim entrar nela.
O que lhe interessa saber, em primeiro lugar, é o sexo do seu filho. Tratando-se de um rapaz, diz-se que nasceu um omu-kwati womafuma (ou seja, um “apanha rãs”).
Sendo rapariga, a ela se referem chamando-lhe omu-twi wouvalelo (isto é, uma “moleira de farinha para o jantar”).
Quatro dias depois do parto, pode a mãe sair da cubata. Antes, porém, já o pai procedeu à imposição de nome ao recém-nascido. Para esse efeito, veio ele tomar lugar no grande pátio, enquanto a mãe e as outras mulheres soltam gritos de alegria dentro da cubata da parturiente.

Os Cuanhamas não se embaraçam grandemente para encontrarem nomes.
Alguém que nasceu durante a noite (oufiku) será Haufiku (tratando-se de um rapaz), e Naufiku (sendo rapariga).
O mesmo acontece com a palavra ongula (“a manhã"), e teremos pois: Hangula (rapaz) e Nangula (rapariga).
Nandyala será alguém que veio ao mundo num ano de fome (ondyala).
Haimbodi é nome de rapaz cuja mãe teve de tomar muitos remédios (oimbodi) durante o período da gravidez. Uma rapariga será nesse caso Naimbodi.



Passado um mês ou mais, realiza-se a cerimónia do corte de cabelos (ekululo).
Chamam-se os convidados, de entre os parentes e os vizinhos. Todos se reúnem no pátio grande. O pai pega na criança e, com uma navalha bem afiada, corta-lhe os cabelinhos.
Senta-se a mãe em frente e vai recebendo pedaços de pirão preparados especialmente para ela, e que ela se esforça por engolir sem mastigar. É um ritual a que atribuem mágico poder.
As parentes e amigas acompanham a manducação da mãe da criança com gritos e cantos de alegria em que inúmeras vezes se repete o estribilho: Oike setueta oludalo? (“Que é que nos trouxe este parto?”).
Em seguida a mãe coloca em volta do pescoço e dos pulsos do pequeno um ou dois fios de missanga e cinge-o na mesma ocasião com uma cinta em volta do meio do corpinho.
Para uma rapariguita, acrescentará dois fios de missanga chamada ondyeva, fabricada com casca de ovos de avestruz. À medida que a rapariga cresce irá aumentando o número das fiadas, e isto até à festa da puberdade. É, com efeito, esta missanga o sinal distintivo da rapariga solteira.

A cerimónia do ekululo acaba num banquete geral para todos os convidados. Já antes disto foi necessário arranjar a pele com que a mãe traz os filho às costas (odikwa).
Ficam os filhos ao cuidado da mãe, que os amamenta durante um ano ou dois. Se o leite for insuficiente, ou se a mãe ficar grávida antes de o filho estar bastante forte, procura-se criá-lo com leite de vaca.

Neste último caso, o filho será quase sempre entregue a uma irmã ou prima da mãe que não tenha meninos pequenos. Sendo rapariga, a criança ficará geralmente a viver com a tia até ao casamento.
Quando os rapazes tiverem 4 ou 5 anos, acompanharão os mais velhos ao pascio de cabritos ou vitelos. As rapariguitas ajudam a mãe nos trabalhos caseiros (…)” (*)



(*) Extraído e adaptado de: Padre Carlos Estermann - Etnografia do Sudoeste de Angola (Vol. I) – Os Povos Não-Bantos e o Grupo Étnico dos Ambós – Junta de Investigações do Ultramar – Lisboa – Portugal – 1960.

domingo, 15 de março de 2009

Os Cuanhamas do Sul de Angola (1 - Tradições guerreiras)






"(...) Os ambós de Angola surgiram da miscigenação de um povo de caçadores nómadas - saídos, por volta do século XVII, da Donga, no Sudoeste Africano - com pastores estabelecidos entre os rios Cunene e Cubango.

Desse obs­curo encontro teriam brotado as cinco tribos angolanas do grupo - Cuanhamas, os mais numerosos, e Cuamatos, Evales, Cafimas e Dombondolas -, todas aparentadas com as tribos da Ovambolândia, no Sudoeste.


Estes povos orgulhosos, de elevadíssima estatura, ocupam ainda hoje um território de planuras levemente descaídas para sul, ao correr de outeiros de contornos sua­ves e de enormes clareiras escavadas no chão arenoso - as chanas -, cingidas por manchas de vegetação onde sobressaem os mutiatis, as acácias e os espinheiros.



Na época seca as chanas revestem-se de tufos de arbustos mirrados e de mantos de capim ressequido. Quando dominam as chuvas, de Outubro a Maio, a correnteza do rio Cuvelai transpõe as margens baixas e derrama-se pela terra sequiosa, inun­dando as depressões.

Numa explosão deslumbrante de odores e de verdes, as cha­nas transformam-se numa intrincada rede de lagoas, cujas águas, agitadas por turbi­lhões de peixes e de rãs, escorrem de modo quase imperceptível para sul, isolando as povoações e os homens, rumo à grande cova de Etosha, na Namíbia.



Dedicando os dias à caça, à agricultura de subsistência e, sobretudo, ao pasto­reio de numerosas manadas de gado bovino, os Ambós aguardavam com ansi­edade a chegada do tempo seco, a meio do ano, para soltarem o poderoso impulso da sua vocação guerreira. Capitaneados pelos lengas - chefes-de-guerra e conse­lheiros dos sobas -, realizavam expedições de guerrilha e saque num raio de cente­nas de quilómetros.

Ficaram sobretudo memoráveis as incursões dos Cuanhamas. Eles optavam com frequência por surtidas limitadas a oeste - na direcção do Humbe, da Camba ou do Quiteve -, e a nordeste, no país dos Ganguelas. Noutras ocasiões ou­savam levar as razias a locais tão remotos como o Quipungo e Caconda, onde os brancos saídos do mar se esforçavam por firmar posições.




Armados até aos dentes, os guerreiros viajavam protegidos por amuletos suspensos dos pesco­ços - chifres de bambi recheados de cinzas obtidas dos destemidos cora­ções de companheiros mortos em combate. Beneficiavam ainda da protecção do ondiai, um homem de virtude e magia.

O ondiai caminhava na dianteira com a sua moca enfei­tiçada, co­roada por uma pele de focinho de hiena. A moca girava no ar, apontando em todas as direcções, livrando a expedição de perigos potenciais e fazendo com que se er­guesse, quando necessário, um vento forte e rumoroso, que abafava os passos dos guerreiros.

Depois de homenagens rituais aos antepassados, as hordas caíam como maldições sobre os aldeamentos desprevenidos, espalhando o pavor e a morte. Retornavam quase sempre em triunfo aos eumbos, com ricos espólios de escravos e gado. (...)". (*)


(*) - FONTE - Senhores do Sol e do Vento - Histórias Verídicas de Portugueses, Angolanos e Outros Africanos - José Bento Duarte - Editorial Estampa - Lisboa - 1999) (1.ª edição)

Sobre este livro, ver mais pormenores - aqui