terça-feira, 31 de março de 2020

Receita para fazer um herói...

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Tome-se um homem,
feito de nada,
como nós,
e em tamanho natural.


Embeba-se-lhe a carne,
lentamente,
duma certeza aguda,
irracional,
intensa como o ódio
ou como a fome.


Depois, perto do fim,
agite-se um pendão
e toque-se um clarim.

Serve-se morto.
…..
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Poema de Reinaldo Ferreira - Portugal (1922-1959)


segunda-feira, 30 de março de 2020

Tino Rossi

Tino Rossi, França (1901-1983)
 
 
1 - Santa Lucia
 
 
 
2 - Amapola
 
 
 
 
3 - J'attendrai
 

domingo, 29 de março de 2020

Muito bem, senhor PM António Costa!

António Costa, Primeiro-Ministro de Portugal desde 2015.

Não deveria haver quem não percebesse que, após a devastação, a dor e o luto semeados pela terrível pandemia do covid-19, se seguirá uma convulsão económica de contornos ainda não totalmente definíveis, mas cujas consequências se podem desde já esperar dramáticas para muita gente. E que só um esforço internacional conjugado poderá ajudar a debelar a crise ou a torná-la menos brutal.

Na União Europeia, até há poucos dias, parecia a muitos que a ameaça comum (atendendo à sua natureza!) precipitaria finalmente a coesão e a solidariedade que não têm abundado em ocasiões anteriores. Mas eis que se adiantou já o grupo do costume - Alemanha, Holanda, Áustria, Finlândia e uns poucos de cúmplices servis - para boicotar o único caminho credível, de natureza económico-financeira, para superar a crise. Para esta gente, a "União" só conta quando lhes proporciona vantagens e ganhos, jamais quando lhes possa diminuir um pouco os superávites (tantas vezes construídos e acumulados à custa da fraqueza e da miséria dos restantes).

O papagaio amestrado de todos eles foi um pateta holandês - um tal Wopke Hoekstra - que faz de ministro das finanças da sua terra. Sugeriu este iluminado que a Espanha, e outros países que não mencionou, deveriam ser investigados por anteverem a sua incapacidade orçamental para, sozinhos, fazerem face ao que aí vem. (É claríssimo que têm razão, como em breve se constatará em dezenas e dezenas de países).

Mas, recordemos, já o antecessor deste idiota, também holandês, era pródigo em ofensas e preconceitos contra os povos do Sul da Europa, não sendo difícil descortinar em tudo isto a velha e arreigada pulsão racista e supremacista que os seus antepassados deixaram dolorosamente impressa, a golpes de crueldade, sangue e morte, nas páginas da História. E que, pelos vistos, subsiste nos seus detestáveis descendentes.

Quem tomou as dores da Espanha e de outros ofendidos (como a Itália, igualmente martirizada pela pandemia) foi o Primeiro-Ministro do pequeno Portugal, o Dr. António Costa. Já lhe adivinhávamos o percurso quando subiu ao poder (ver aqui).
Costa é dos poucos políticos portugueses da actualidade com o perfil, a inteligência, a coragem, a capacidade de liderança, a honestidade e, sobretudo, a humanidade requeridos a um estadista.

António Costa é, de facto, um verdadeiro estadista, como tem demonstrado ao longo das crises que superou no seu mandato - e, sobretudo, durante o momento dramático que todos estamos a viver. E tudo isso contra uma comunicação social partidarizada, parcialíssima e manipuladora que lhe é geralmente hostil - a ele e àquilo que representa...

Desta vez, António Costa adiantou-se e classificou de "repugnantes" as palavras do mentecapto holandês (que mais não são do que a tradução, porventura inepta, do pensamento geral do grupo). E explicou, com meridiana clareza, o que se deveria esperar de uma verdadeira União Europeia - e o que se poderá ter como resultado se o "bando dos quatro" persistir no suicidário caminho da ganância e do egoísmo…

Muito bem, senhor Primeiro-Ministro!



quinta-feira, 26 de março de 2020

Aberturas de Grandes Livros - "Gabriela, Cravo e Canela" (Jorge Amado - Brasil)



“Naquele ano de 1925, quando floresceu o idílio da mulata Gabriela e do árabe Nacib, a estação das chuvas tanto se prolongara além do normal e necessário que os fazendeiros, como um bando assustado, cruzavam-se nas ruas a perguntar uns aos outros, o medo nos olhos e na voz:
- Será que não vai parar?
Referiam-se às chuvas, nunca se vira tanta água descendo dos céus, dia e noite, quase sem intervalos.
- Mais uma semana e estará tudo em perigo.
- A safra inteira…
- Meu Deus!

Falavam da safra anunciando-se excepcional, a superar de longe todas as anteriores.

Com os preços do cacau em constante alta, significava ainda maior riqueza, prosperidade, fartura, dinheiro a rodo. Os filhos dos coronéis indo cursar os colégios mais caros das grandes cidades, novas residências para as famílias nas novas ruas recém-abertas, móveis de luxo mandados vir do Rio, pianos de cauda para compor as salas, as lojas sortidas, multiplicando-se, o comércio crescendo, bebida correndo nos cabarés, mulheres desembarcando dos navios, o jogo campeando nos bares e nos hotéis, o progresso enfim, a tão falada civilização.

E dizer-se que essas chuvas agora demasiado copiosas, ameaçadoras, diluviais, tinham demorado a chegar, tinham-se feito esperar e rogar!

Meses antes, os coronéis levantavam os olhos para o céu límpido em busca de nuvens, de sinais de chuva próxima. Cresciam as roças de cacau, estendendo-se por todo o sul da Baía, esperavam as chuvas indispensáveis ao desenvolvimento dos frutos acabados de nascer, substituindo as flores nos cacauais. A procissão de São Jorge, naquele ano, tomara o aspecto de uma ansiosa promessa colectiva ao santo padroeiro da cidade.

O seu rico andor, bordado de ouro, levavam-no sobre os ombros orgulhosos os cidadãos mais notáveis, os maiores fazendeiros, vestidos com a bata vermelha da confraria, e não é pouco dizer, pois os coronéis do cacau não primavam pela religiosidade, não frequentavam igrejas, rebeldes à missa e à confissão, deixando essas fraquezas para as fêmeas da família:
- Isso de Igreja é coisa para mulheres."   (*)


………….


(*) - Gabriela, Cravo e Canela - Jorge Amado (1912-2001) - Editado por Publicações Europa-América, Lisboa, Portugal, 1971.



Jorge Amado (1912-2001)

segunda-feira, 23 de março de 2020

Silêncio e Tanta Gente... (Maria Guinot)

Maria Guinot (1945-2018).
Com esta canção venceu o Festival RTP de 1984
e representou Portugal no Festival da Eurovisão.
Ela escreveu o poema e a música.
As palavras são belíssimas,
e a sua interpretação, plena de força e sentimento,
é sublime,
do melhor que já se fez na música ligeira portuguesa.
Podem ler e ouvir abaixo.
 

  
Silêncio e Tanta Gente
 
Às vezes é no meio do silêncio
Que descubro o amor em teu olhar
É uma pedra
É um grito
Que nasce em qualquer lugar.
 
 
Às vezes é no meio de tanta gente
Que descubro afinal aquilo que sou
Sou um grito
Ou sou uma pedra
De um lugar onde não estou.
 
 
Às vezes sou o tempo que tarda em passar
E aquilo em que ninguém quer acreditar.
 
 
Às vezes sou também
Um sim alegre
Ou um triste não
E troco a minha vida por um dia de ilusão
E troco a minha vida por um dia de ilusão.
 
 
Às vezes é no meio do silêncio
Que descubro as palavras por dizer
É uma pedra
Ou é um grito
De um amor por acontecer.
 
 
Às vezes é no meio de tanta gente
Que descubro afinal p'ra onde vou
E esta pedra
E este grito
São a história d'aquilo que eu sou… 
 
 


sábado, 21 de março de 2020

Como atribuir nomes às pessoas... (Stanislaw Ponte Preta - Brasil)

 
No capítulo dos nomes difíceis têm acontecido coisas das mais pitorescas.
Ou é um camarada chamado Mimoso que tem físico de mastodonte, ou é um sujeito fraquinho e insignificante chamado Hércules.
Os nomes difíceis, principalmente os nomes tirados de adjetivos condizentes com seus portadores, são raríssimos, e é por isso que minha avó paterna dizia:
Gente honesta, se for homem deve ser José, se for mulher, deve ser Maria!

É verdade que Vovó não tinha nada contra os joões, paulos, mários, odetes e — vá lá — fidélis.
A sua implicância era, sobretudo, com nomes inventados, comemorativos de um acontecimento qualquer, como era o caso, muito citado por ela, de uma tal Dona Holofotina, batizada no dia em que inauguraram a luz elétrica na rua em que a família morava.

Acrescente-se também que Vovó não mantinha relações com pessoas de nomes tirados metade da mãe e metade do pai.
Jamais perdoou a um velho amigo seu — o "Seu" Wagner — porque se casara com uma senhora chamada Emília, muito respeitável, aliás, mas que tivera o mau-gosto de convencer o marido de batizar o primeiro filho com o nome leguminoso de Wagem — "wag" de Wagner e "em" de Emília.
É verdade que a vagem comum, crua ou ensopada, será sempre com "v", enquanto o filho de "Seu" Wagner herdara o "w" do pai. Mas isso não tinha nenhuma importância: a consoante não era um detalhe bastante forte para impedir o risinho gozador de todos aqueles que eram apresentados ao menino Wagem.

Mas deixemos de lado as birras de minha avó — velhinha que Deus tenha em Sua santa glória — e passemos ao estranho caso da família Veiga, que morava pertinho de nossa casa, em tempos idos.
"Seu" Veiga, amante de boa leitura e cuja cachaça era colecionar livros, embora colecionasse também filhos talvez com a mesma paixão, levou sua mania ao extremo de batizar os rebentos com nomes que tivessem relação com livros.
Assim, o mais velho chamou-se Prefácio da Veiga; o segundo, Prólogo; o terceiro, Índice e, sucessivamente, foram nascendo o Tomo, o Capítulo e, por fim, Epílogo da Veiga, caçula do casal.

Lembro-me bem dos filhos de "Seu" Veiga, todos excelentes rapazes, principalmente o Capítulo, sujeito prendado na confecção de balões e papagaios. Até hoje (é verdade que não me tenho dedicado muito na busca) não encontrei ninguém que fizesse um papagaio tão bem quanto Capítulo. Nem balões.
Tomo era um bom extrema-direita e Prefácio pegou o vício do pai - vivia comprando livros. Era, aliás, o filho querido de "Seu" Veiga, pai extremoso, que não admitia piadas.

Não tinha o menor senso de humor. Certa vez ficou mesmo de relações estremecidas com meu pai, por causa de uma brincadeira. "Seu" Veiga ia passando pela nossa porta, levando a família para o banho de mar.
Iam todos armados de barracas de praia, toalhas etc. Papai estava na janela e, ao saudá-lo, fez a graça:
Vai levar a biblioteca para o banho?
"Seu" Veiga ficou queimado durante muito tempo.

Dona Odete — por alcunha "A Estante" — mãe dos meninos, sofria o desgosto de ter tantos filhos homens e não ter uma menina "para me fazer companhia" - como costumava dizer. Acreditava, inclusive, que aquilo era castigo de Deus, por causa da idéia do marido de botar aqueles nomes nos garotos.
Por isso, fez uma promessa: se ainda tivesse uma menina, havia de chamá-la Maria.
As esperanças estavam quase perdidas. Epílogozinho já tinha oito anos, quando a vontade de Dona Odete tornou-se uma bela realidade, pesando cinco quilos e mamando uma enormidade.

Os vizinhos comentaram que "Seu" Veiga não gostou, ainda que se conformasse, com a vinda de mais um herdeiro, só porque já lhe faltavam palavras relacionadas a livros para denominar a criança.
Só meses depois, na hora do batizado, o pai foi informado da antiga promessa. Ficou furioso com a mulher, esbravejou, bufou, mas — bom católico — acabou concordando em parte.
E assim, em vez de receber somente o nome suave de Maria, a garotinha foi registrada, no livro da paróquia, após a cerimônia batismal, como Errata Maria da Veiga.
Estava cumprida a promessa de Dona Odete, estava de pé a mania de "Seu" Veiga."
 
……………...

Texto extraído do livro "A Casa Demolida" - Rio de Janeiro, 1963, pág. 175.

Sérgio Marcus Rangel Porto (Rio de Janeiro, 11 de Janeiro de 1923 — Rio de Janeiro, 30 de Setembro de 1968) foi um cronista, escritor, radialista, e compositor brasileiro.
Era mais conhecido por seu pseudónimo, Stanislaw Ponte Preta.

Sérgio começou sua carreira jornalística no final dos anos 40,
actuando em publicações como as revistas Sombra e Manchete e os jornais Última Hora, Tribuna da Imprensa e Diário Carioca.
Foi aí que surgiu o personagem Stanislaw Ponte Preta e suas crónicas satíricas e críticas (…).

Sérgio era boémio, de um admirável senso de humor, e a sua aparência de homem sisudo escondia um intelectual peculiar capaz de fazer piadas corrosivas contra a ditadura militar e o moralismo social vigente, que fazem parte do FEBEAPÁ - Festival de Besteiras que Assola o País, uma de suas maiores criações.

FEBEAPÁ - Festival de Besteiras que Assola o País tinha como característica simular notas jornalísticas, parecendo noticiário sério.
Era uma forma de criticar a repressão militar, já presente nos primeiros Actos Institucionais (que tinham a sugestiva sigla de AI).

Um deles noticiou a decisão da ditadura militar brasileira de mandar prender o autor grego Sófocles, que morreu há séculos, por causa do conteúdo subversivo de uma peça que ele teria encenado na ocasião (anos 60 do século passado).
Sérgio Porto, ou Stanislaw Ponte Preta alcançou a fama por seu senso de humor refinado e a crítica mordaz aos costumes nos livros Tia Zulmira e Eu e, também, FEBEAPÁ.

A sua jornada diária nunca era inferior a 15 horas de trabalho.
Escrevia para o rádio, para a TV, onde chegou a apresentar programas, e também para revistas e jornais, além de idealizar seus livros.
O excesso de obrigações seria demais para o cardíaco Sérgio, que morreu de enfarte aos 45 anos de idade.

(Extraído e adaptado de Wikipédia)

quinta-feira, 19 de março de 2020

Velha Poesia Árabe na Península Ibérica (séc. XI) - "Itimad"

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Invisível a meus olhos,
trago-te sempre no coração.
Envio-te um adeus feito de paixão
e lágrimas de pena com insónia.

Inventaste como possuir-me,
e eu, o indomável,
submisso vou ficando!
Meu desejo é estar contigo sempre,
oxalá se realize tal vontade!

Assegura-me que o juramento que nos une
nunca a distância o fará quebrar.
Doce é o nome que é o teu
e que deixo escrito no poema: Itimad.

…………..

Autor: Al-Mutamid
Nasceu em Beja (Portugal) no ano de 1040.
Faleceu em Marrocos em 1095.
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sábado, 14 de março de 2020

A Inquisição em Portugal (segundo Oliveira Martins) (2)



(Continuação da 1.ª Parte - 12-Março-2020) (ver aqui)

" (...) Cordões de tropa impediam que o povo invadisse, na praça, o recinto reservado ao Auto.
Havia ali, para um lado, afastadas, as pilhas de madeira, rectangulares, com o poste erguido ao centro e um banco; e no meio da praça um espaço reservado com o estrado e as tribunas.
Na da esquerda estava o rei, D. João III, piedosamente satisfeito na sua fé, com o espírito duro, mas sincero e forte; estavam a rainha e a corte; e, ao lado do monarca, o condestável com o estoque desembainhado.

Na outra, da direita, levantavam-se o trono e dossel do cardeal D. Henrique, depois rei, e agora infante inquisidor-mor, ladeado pelos membros do tribunal sagrado, nos seus bancos.
A meio do tablado ficava o altar, com frontal preto, banqueta de seda amarela, e um crucifixo ao centro. Em frente, num plinto, erguia-se o estandarte da Inquisição. (...)
E os padecentes, em linhas, ficavam de pé, voltados para o altar, para o púlpito, para o tribunal.

 
Disse-se missa. O inquisidor-mor, de capa e mitra, apresentou ao rei os Evangelhos, para sobre eles jurar e defender a fé. D. João III e todos, de pé e descobertos, juraram com solenidade sincera. Depois houve sermão; e finalmente a leitura das sentenças, começando pelos crimes menores.

A adoração das imagens, questão debatida nos concílios, dava lugar a muitas faltas.
Outros iam ali por terem recusado beijar os santos dos mealheiros, com que os irmãos andavam pelas ruas pedindo esmola.
Outros por irreverências, outros por falta de cumprimento dos preceitos canónicos; muitos por coisa nenhuma; a máxima parte, vítimas de delações pérfidas ou interessadas.

Os relatores iam lendo as sentenças, os condenados gemendo e chorando; outros, exultando por se verem soltos do cárcere, livres da tortura, prometendo de si para consigo serem de futuro meticulosamente hipócritas.


Chegou-se finalmente aos condenados à morte, no fogo: eram três mulheres por bruxas, e dois homens, cristãos-novos, por judaizarem, mais um por feiticeiro.
O relator, imperturbável, leu as sentenças, onde se narravam os crimes.

Os cristãos-novos comiam pães ázimos; e um deles, quando varria a casa, chamava nomes a um crucifixo, fazia-lhe caretas, e dava-lhe tantas unhadas quantos eram os golpes de vassoura no chão.

Estes crimes vinham envolvidos em frases horrorosas e generalidades tremendas; e a corte, o clero e o povo, ao ouvirem tão grandes sacrilégios, pasmavam de ódio contra os desgraçados.


 
A feitiçaria não os impressionava menos.
Cristãos-novos e bruxos, que lançavam malefícios e olhados, eram a causa das pestes, das fomes e dos naufrágios das naus da Índia.
Sobre as cabeças dos desgraçados caíam as maldições de uma população aflita. Ninguém duvidava da verdade dos crimes, que muitas testemunhas afiançavam.

O diabo aparecera a um, e ensinara-lhe as curas infernais, pelo livro de S. Cipriano. Sangrava os doentes na testa, com alfinetes. "Estou picado e enfeitiçado: Jesus! nome de Jesus! despicai-me e desenfeitiçai-me!" - dissera uma vítima a um padre da Beira.
Os diabos, para se vingarem, foram a casa do padre e quebraram-lhe toda a louça.
Um caso terrível era esse; e o povo olhava com horror para o médico de S. Cipriano, que tinha a loucura evidente na face.

 
Às bruxas o diabo aparecia de dia sob a forma de um gato preto, e, de noite, de forma humana de homem pequeno; assim o dizia gravemente a sentença, com o depoimento das testemunhas.

A bruxa saía com o demónio e iam juntos a um rio, onde as outras estavam com outros demónios; e depois de se banharem tinham coito com circunstâncias lascivas e abomináveis; a sentença enumerava-as e a devassidão da corte e do povo percebia-as, comentava-as.

De volta ao sabbath, de madrugada, as bruxas entravam invisivelmente nas casas, perseguindo as famílias honestas e piedosas.


Terminada a leitura, absolvidos os penitentes, os cristãos-novos e as bruxas foram relaxados ao braço secular para serem queimados.
O rei, a corte e o inquisidor retiraram-se; e os sinos continuavam a dobrar, pausada e funebremente.
Os carvoeiros de alabardas, os verdugos de capuzes, e os frades de escapulário e crucifixo na mão, ficaram junto dos condenados para os queimar.

O povo cercou em massa o lugar das pilhas quadrangulares de lenha, com os olhos ávidos e a cabeça cheia de cóleras contra esses réus das suas desgraças.
Todos, menos o bruxo, morreram piedosamente, garrotados, depois queimados.

O médico de S. Cipriano, porém, tinha culpas maiores e fora condenado a ser queimado vivo.
Junto da pilha, o frade, com as mãos postas, pedia-lhe que, por Deus, se arrependesse; mas ele, com o olhar esgazeado do louco, virava a cara e zombava.

Largando a correr pela escada, subia à pilha, e, do alto, sentado no banco, fazia esgares e visagens irreverentes.
O frade batia nos peitos, a plebe rugia colérica.
Os verdugos amarraram-no ao poste e os carvoeiros acenderam a fogueira, que principiou a crepitar.
Os rapazes e as mulheres da Ribeira, salteando-o com paus e garrunchos, arrancaram-lhe um olho. Atiravam-lhe pedras, pregos, e tudo; e faziam-lhe feridas por onde escorria sangue: tinha a cabeça aberta e um beiço rasgado.

Entretanto, a chama começava a romper por entre os toros; e ele com as mãos, estorcendo-se, dava no fogo, querendo apagá-lo; e quando via, com o olho que lhe restava, vir no ar uma pedra, fazia rodela ou escudo com a samarra, para se livrar. Do vão do outro olho escorria pela face um fio de sangue.

Isto já durava por mais de uma hora e divertia muito o povo - agora que tinha a certeza de ver morrer o seu inimigo.
Mas o vento, que soprava rijo do poente, da banda do rio, arrastava consigo as chamas; e por não ter fumos que o afogassem, o condenado ficou três horas vivo, a torrar, agonizando, contorcendo-se, em visagens, e gritando - ai!... ai!... ai!...".

Fim da 2.ª e última parte

(Oliveira Martins - História de Portugal - 1.ª ed. - 1879)

quinta-feira, 12 de março de 2020

A Inquisição em Portugal (segundo Oliveira Martins) (1)



A Inquisição Portuguesa, também conhecida por Tribunal do Santo Ofício, foi uma instituição da Igreja Católica que vigorou em Portugal de 1536 a 1821.
Grandemente responsável pela instauração de um clima de terror no país, contribuiu também, em muito, para o atraso cultural do mesmo.

A Inquisição perseguia, julgava e punia pessoas acusadas de cometer crimes considerados heréticos.
Tais "crimes", inúmeras vezes fantasiosos, decorriam de confissões arrancadas sob torturas crudelíssimas, conduzindo centenas de desgraçados inocentes aos infames braseiros das praças públicas.
Oliveira Martins, grande historiador português [1845-1894], viu-a assim:
………

"A Inquisição, ardentemente desejada e pedida por D. João III ao Papa, estava fundada; e se a criação do tribunal era o único meio de conter e moralizar os furores fanáticos da turba, e de evitar o sistema de matanças e pilhagens do reinado anterior, é fora de dúvida que os nervos da nação (Portugal), já flácidos e podres, não podiam usar, de um modo relativamente justo, a arma terrível que lhes era confiada . (...)


 
(...) Os seus processos infringiam todas as regras elementares da justiça e do bom-senso.

Os delatores serviam de testemunhas; os filhos depunham contra os pais, os pais contra os filhos; o réu não podia comunicar com os defensores nem conhecia quem o acusava; a delação era aplaudida e a espionagem considerada uma virtude.

Os "familiares" insinuavam-se nas famílias, como médicos, confessores, íntimos e conselheiros, para captarem os segredos e os delatarem.

Na sentença não havia revisão nem apelação.

Nas prisões não havia prazos preventivos, e o encarcerado jazia meses, anos, todo o resto da vida muitas vezes, ignorante do crime de que o acusavam.


Armavam-lhe laços e perfídias para o perder.

Metiam-lhe no cárcere pessoas subornadas, que se diziam também pacientes, para o afagarem e se condoerem da sua miséria.

Ganha assim a confiança, começavam as confidências: a Inquisição era um horror, uma peste! E se o miserável, perdido, aplaudia, estava condenado. Para lhe obter a confissão de faltas, imaginárias frequentemente, os inquisidores fingiam enternecer-se, prometiam perdões, ajudavam, seduziam, até que o miserável confessasse o que fizera, ou não fizera.

Esta espécie de tortura era muitas vezes mais dolorosa do que a outra; e os infelizes encarcerados chegavam a considerar um céu o calabouço negro, onde lhes não era dado nem ver, nem falar, nem gemer, nem chorar, sob pena da chibata do verdugo. No seio da treva e do silêncio absoluto, nem bem sabiam se viviam ou tinham morrido, e, como idiotas, deixavam-se ficar estendidos no chão, imóveis, no antro dos seus sepulcros.

Cada vez que a porta do cárcere se abria, estremeciam de medo, ou de uma esperança meio-apagada. Levavam-nos amarrados à casa dos tormentos; e enquanto iam descendo as escadas tortuosas, onde os gritos se perdiam abafados, o juízo ardia-lhes, confundiam-se-lhes as ideias, já não distinguiam do real o suposto.

Começavam a crer-se monstros, a acreditar em tudo aquilo de que eram acusados: tinham visto o diabo em pessoa, tinham-lhe vendido a alma, tinham partido com um machado um crucifixo, etc.

O inquisidor, frio e fúnebre, sentado ao fundo da casa de abóbada, mal alumiada por tochas presas em anéis de ferro às paredes, acreditaria no diabo e nos seus aparecimentos? Porque não? Um doido torturava um idiota; e, no fundo escuro de uma cripta, a loucura dos homens tinha os seus ágapes terríveis.

Demónios pareciam os verdugos, mudos e mascarados, com o capuz e samarra de holandilha preta, onde havia os buracos dos olhos e da boca, movendo-se como autómatos a preparar os instrumentos da tortura.



E de toda aquela gente, nem talvez o médico, a um lado, a observar que a vida dos pacientes se não apagasse de todo, tivesse o juízo são.

Desde que os homens se tinham considerado senhores da verdade absoluta, a palavra de Deus enlouquecia-os e fazia deles monstros.

Nessas tragédias lúgubres morria por vezes o miserável, na tortura ou no cárcere; e então era enterrado nas covas do palácio, sendo primeiro o esqueleto dscarnado, religiosamente, para que os ossos pudessem figurar no Auto-da-fé próximo, queimados na fogueira.

O primeiro desses dramas fúnebres e burlescos teve lugar em Lisboa no dia 20 de Setembro de 1540: ainda a Inquisição não estava definitivamente confirmada pelo Papa.

A procissão saía do palácio do Rossio, para a praça da Ribeira, onde tinha lugar a cerimónia.

Vinham à frente os carvoeiros, armados de piques e mosquetes para olhar pelas fogueiras; depois um crucifixo alçado, e os frades de S. Domingos, nos seus hábitos e escapulários brancos, com a cruz preta, levando o estandarte da Inquisição, onde numa bandeira de seda se via a figura do santo, tendo numa das mãos a espada vingadora, na outra um ramo de oliveira: Justitia et Misericordia.

Após os frades seguiam as pessoas de qualidade, a pé; familiares da Inquisição, vestidos de branco e preto, com as cruzes das duas cores, bordadas a fio de ouro.

Depois vinham os réus, um a um, em linha; primeiro os mortos, depois os vivos: fictos, confictos, falsos, simulados, confitentes, diminutos, impenitentes, negativos, pertinazes, relapsos - por ordem de categoria dos delitos, a começar nos mortos e nos contumazes.

Em varas erguidas como guiões, (...) penduravam-se as estátuas dos condenados ausentes; e se a estátua representava o morto, outro verdugo seguia após ela com uma caixa negra pintada de demónios e de chamas, contendo os ossos, para serem lançados aos pés da estátua na fogueira. Mais de uma vez se queimaram esqueletos desenterrados de pessoas que, imunes durante a vida, foram julgadas e condenadas depois de mortas.




Em seguida vinham os réus vivos, por ordem crescente de gravidade dos crimes, sem distinção de sexos, um a um, com o padrinho ao lado, ou com o confessor domínico se iam a queimar.
Os homens vestiam um fato raiado de branco e preto; as mulheres apareciam em longos hábitos da mesma fazenda. Traziam todos tochas de cera amarela na mão e o baraço ao pescoço. Insígnias diferentes distinguiam os que iam ao fogo, dos penitentes e dos confessores. Estes vestiam o sambenito, espécie de casula branca, com as cruzes de Santo André, vermelhas, no peito e nas costas; e levavam a cabeça descoberta.

Os que depois da sentença tinham obtido perdão da fogueira, levavam samarra, uma casula parda; e carocha, uma mitra de papelão; e numa e noutra, pintadas, línguas de chama invertidas, o fogo revolto, a indicar a sua sorte.

Os condenados à morte, quer para serem estrangulados, quer não, levavam na samarra e na carocha o retrato pintado, ardendo em chamas, com demónios pretos pelo meio, e o nome escrito, e o crime por que padeciam.

Depois da estirada procissão, vinham os alabardeiros da Inquisição, e, a cavalo, os oficiais do conselho supremo, inquisidores, qualificadores, relatores e mais sequazes da corte. Os sinos dobravam pausadamente nas torres das igrejas. A turba apinhava-se nas ruas, insultando os pacientes com palavras desonestas e atirando-lhes pedras e lama."

(Conclui no próximo sábado, 14-Março-2020 - ver aqui)

(Oliveira Martins - História de Portugal - 1.ª ed. - 1879)