quinta-feira, 12 de março de 2020

A Inquisição em Portugal (segundo Oliveira Martins) (1)



A Inquisição Portuguesa, também conhecida por Tribunal do Santo Ofício, foi uma instituição da Igreja Católica que vigorou em Portugal de 1536 a 1821.
Grandemente responsável pela instauração de um clima de terror no país, contribuiu também, em muito, para o atraso cultural do mesmo.

A Inquisição perseguia, julgava e punia pessoas acusadas de cometer crimes considerados heréticos.
Tais "crimes", inúmeras vezes fantasiosos, decorriam de confissões arrancadas sob torturas crudelíssimas, conduzindo centenas de desgraçados inocentes aos infames braseiros das praças públicas.
Oliveira Martins, grande historiador português [1845-1894], viu-a assim:
………

"A Inquisição, ardentemente desejada e pedida por D. João III ao Papa, estava fundada; e se a criação do tribunal era o único meio de conter e moralizar os furores fanáticos da turba, e de evitar o sistema de matanças e pilhagens do reinado anterior, é fora de dúvida que os nervos da nação (Portugal), já flácidos e podres, não podiam usar, de um modo relativamente justo, a arma terrível que lhes era confiada . (...)


 
(...) Os seus processos infringiam todas as regras elementares da justiça e do bom-senso.

Os delatores serviam de testemunhas; os filhos depunham contra os pais, os pais contra os filhos; o réu não podia comunicar com os defensores nem conhecia quem o acusava; a delação era aplaudida e a espionagem considerada uma virtude.

Os "familiares" insinuavam-se nas famílias, como médicos, confessores, íntimos e conselheiros, para captarem os segredos e os delatarem.

Na sentença não havia revisão nem apelação.

Nas prisões não havia prazos preventivos, e o encarcerado jazia meses, anos, todo o resto da vida muitas vezes, ignorante do crime de que o acusavam.


Armavam-lhe laços e perfídias para o perder.

Metiam-lhe no cárcere pessoas subornadas, que se diziam também pacientes, para o afagarem e se condoerem da sua miséria.

Ganha assim a confiança, começavam as confidências: a Inquisição era um horror, uma peste! E se o miserável, perdido, aplaudia, estava condenado. Para lhe obter a confissão de faltas, imaginárias frequentemente, os inquisidores fingiam enternecer-se, prometiam perdões, ajudavam, seduziam, até que o miserável confessasse o que fizera, ou não fizera.

Esta espécie de tortura era muitas vezes mais dolorosa do que a outra; e os infelizes encarcerados chegavam a considerar um céu o calabouço negro, onde lhes não era dado nem ver, nem falar, nem gemer, nem chorar, sob pena da chibata do verdugo. No seio da treva e do silêncio absoluto, nem bem sabiam se viviam ou tinham morrido, e, como idiotas, deixavam-se ficar estendidos no chão, imóveis, no antro dos seus sepulcros.

Cada vez que a porta do cárcere se abria, estremeciam de medo, ou de uma esperança meio-apagada. Levavam-nos amarrados à casa dos tormentos; e enquanto iam descendo as escadas tortuosas, onde os gritos se perdiam abafados, o juízo ardia-lhes, confundiam-se-lhes as ideias, já não distinguiam do real o suposto.

Começavam a crer-se monstros, a acreditar em tudo aquilo de que eram acusados: tinham visto o diabo em pessoa, tinham-lhe vendido a alma, tinham partido com um machado um crucifixo, etc.

O inquisidor, frio e fúnebre, sentado ao fundo da casa de abóbada, mal alumiada por tochas presas em anéis de ferro às paredes, acreditaria no diabo e nos seus aparecimentos? Porque não? Um doido torturava um idiota; e, no fundo escuro de uma cripta, a loucura dos homens tinha os seus ágapes terríveis.

Demónios pareciam os verdugos, mudos e mascarados, com o capuz e samarra de holandilha preta, onde havia os buracos dos olhos e da boca, movendo-se como autómatos a preparar os instrumentos da tortura.



E de toda aquela gente, nem talvez o médico, a um lado, a observar que a vida dos pacientes se não apagasse de todo, tivesse o juízo são.

Desde que os homens se tinham considerado senhores da verdade absoluta, a palavra de Deus enlouquecia-os e fazia deles monstros.

Nessas tragédias lúgubres morria por vezes o miserável, na tortura ou no cárcere; e então era enterrado nas covas do palácio, sendo primeiro o esqueleto dscarnado, religiosamente, para que os ossos pudessem figurar no Auto-da-fé próximo, queimados na fogueira.

O primeiro desses dramas fúnebres e burlescos teve lugar em Lisboa no dia 20 de Setembro de 1540: ainda a Inquisição não estava definitivamente confirmada pelo Papa.

A procissão saía do palácio do Rossio, para a praça da Ribeira, onde tinha lugar a cerimónia.

Vinham à frente os carvoeiros, armados de piques e mosquetes para olhar pelas fogueiras; depois um crucifixo alçado, e os frades de S. Domingos, nos seus hábitos e escapulários brancos, com a cruz preta, levando o estandarte da Inquisição, onde numa bandeira de seda se via a figura do santo, tendo numa das mãos a espada vingadora, na outra um ramo de oliveira: Justitia et Misericordia.

Após os frades seguiam as pessoas de qualidade, a pé; familiares da Inquisição, vestidos de branco e preto, com as cruzes das duas cores, bordadas a fio de ouro.

Depois vinham os réus, um a um, em linha; primeiro os mortos, depois os vivos: fictos, confictos, falsos, simulados, confitentes, diminutos, impenitentes, negativos, pertinazes, relapsos - por ordem de categoria dos delitos, a começar nos mortos e nos contumazes.

Em varas erguidas como guiões, (...) penduravam-se as estátuas dos condenados ausentes; e se a estátua representava o morto, outro verdugo seguia após ela com uma caixa negra pintada de demónios e de chamas, contendo os ossos, para serem lançados aos pés da estátua na fogueira. Mais de uma vez se queimaram esqueletos desenterrados de pessoas que, imunes durante a vida, foram julgadas e condenadas depois de mortas.




Em seguida vinham os réus vivos, por ordem crescente de gravidade dos crimes, sem distinção de sexos, um a um, com o padrinho ao lado, ou com o confessor domínico se iam a queimar.
Os homens vestiam um fato raiado de branco e preto; as mulheres apareciam em longos hábitos da mesma fazenda. Traziam todos tochas de cera amarela na mão e o baraço ao pescoço. Insígnias diferentes distinguiam os que iam ao fogo, dos penitentes e dos confessores. Estes vestiam o sambenito, espécie de casula branca, com as cruzes de Santo André, vermelhas, no peito e nas costas; e levavam a cabeça descoberta.

Os que depois da sentença tinham obtido perdão da fogueira, levavam samarra, uma casula parda; e carocha, uma mitra de papelão; e numa e noutra, pintadas, línguas de chama invertidas, o fogo revolto, a indicar a sua sorte.

Os condenados à morte, quer para serem estrangulados, quer não, levavam na samarra e na carocha o retrato pintado, ardendo em chamas, com demónios pretos pelo meio, e o nome escrito, e o crime por que padeciam.

Depois da estirada procissão, vinham os alabardeiros da Inquisição, e, a cavalo, os oficiais do conselho supremo, inquisidores, qualificadores, relatores e mais sequazes da corte. Os sinos dobravam pausadamente nas torres das igrejas. A turba apinhava-se nas ruas, insultando os pacientes com palavras desonestas e atirando-lhes pedras e lama."

(Conclui no próximo sábado, 14-Março-2020 - ver aqui)

(Oliveira Martins - História de Portugal - 1.ª ed. - 1879)

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