quinta-feira, 26 de março de 2020

Aberturas de Grandes Livros - "Gabriela, Cravo e Canela" (Jorge Amado - Brasil)



“Naquele ano de 1925, quando floresceu o idílio da mulata Gabriela e do árabe Nacib, a estação das chuvas tanto se prolongara além do normal e necessário que os fazendeiros, como um bando assustado, cruzavam-se nas ruas a perguntar uns aos outros, o medo nos olhos e na voz:
- Será que não vai parar?
Referiam-se às chuvas, nunca se vira tanta água descendo dos céus, dia e noite, quase sem intervalos.
- Mais uma semana e estará tudo em perigo.
- A safra inteira…
- Meu Deus!

Falavam da safra anunciando-se excepcional, a superar de longe todas as anteriores.

Com os preços do cacau em constante alta, significava ainda maior riqueza, prosperidade, fartura, dinheiro a rodo. Os filhos dos coronéis indo cursar os colégios mais caros das grandes cidades, novas residências para as famílias nas novas ruas recém-abertas, móveis de luxo mandados vir do Rio, pianos de cauda para compor as salas, as lojas sortidas, multiplicando-se, o comércio crescendo, bebida correndo nos cabarés, mulheres desembarcando dos navios, o jogo campeando nos bares e nos hotéis, o progresso enfim, a tão falada civilização.

E dizer-se que essas chuvas agora demasiado copiosas, ameaçadoras, diluviais, tinham demorado a chegar, tinham-se feito esperar e rogar!

Meses antes, os coronéis levantavam os olhos para o céu límpido em busca de nuvens, de sinais de chuva próxima. Cresciam as roças de cacau, estendendo-se por todo o sul da Baía, esperavam as chuvas indispensáveis ao desenvolvimento dos frutos acabados de nascer, substituindo as flores nos cacauais. A procissão de São Jorge, naquele ano, tomara o aspecto de uma ansiosa promessa colectiva ao santo padroeiro da cidade.

O seu rico andor, bordado de ouro, levavam-no sobre os ombros orgulhosos os cidadãos mais notáveis, os maiores fazendeiros, vestidos com a bata vermelha da confraria, e não é pouco dizer, pois os coronéis do cacau não primavam pela religiosidade, não frequentavam igrejas, rebeldes à missa e à confissão, deixando essas fraquezas para as fêmeas da família:
- Isso de Igreja é coisa para mulheres."   (*)


………….


(*) - Gabriela, Cravo e Canela - Jorge Amado (1912-2001) - Editado por Publicações Europa-América, Lisboa, Portugal, 1971.



Jorge Amado (1912-2001)

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