sábado, 27 de fevereiro de 2021

A trágica história de Olive Oatman entre os índios do Sudoeste dos Estados Unidos


Olive Oatman (1837-1903)
com a famosa tatuagem dos Mojave


Olive Ann Oatman nasceu a 7 de Setembro de 1837 no Illinois, Estados Unidos da América, no seio de uma família mórmon.
Seus pais foram Royce e Mary Ann Oatman. Tinha seis irmãos com idades compreendidas entre 1 e 17 anos, sendo Lucy Oatman a mais velha. A mãe, Mary Ann, estava grávida do oitavo filho quando ocorreram os acontecimentos abaixo relatados.

Em 1850, a família Oatman decidiu juntar-se a uma caravana liderada por James Brewster, um dissidente mórmon que havia rompido com a chefia de Brigham Young, no Utah. A ideia de Brewster consistia em reunir os seus cerca de noventa seguidores em Independence, no Missouri, para depois os conduzir até à Califórnia.
A caravana pôs-se em marcha, rumo a oeste, no dia 5 de Agosto de 1850.


Maricopa Wells

Aquela longa viagem, que era fruto de uma dissensão, experimentaria meses mais tarde os seus próprios desentendimentos internos. O grupo inicial acabou por se fraccionar perto de Santa Fé (Novo México): James Brewster decidiu tomar uma rota mais a norte, enquanto Royce Oatman e os seus se juntaram a outras famílias para marcharem pelo sul, via Socorro e Tucson.

O território do Novo México foi alcançado pelo grupo dos Oatman (de que Royce assumira entretanto a liderança) nos princípios de 1851. A terra e o clima desiludiram os viajantes, que foram aos poucos desistindo de seguir até à foz do rio Colorado.

O grupo restante acabou por chegar, com os Oatman, a Maricopa Wells (Arizona), um ponto de paragem provido de água e mantimentos onde os viajantes costumavam acampar para dar descanso e alimentação a pessoas e animais.
Em Maricopa Wells, os mórmons souberam que o trilho era, dali em diante, muito árido e desconfortável. Pior do que isso: informaram-nos de que se cruzariam provavelmente com índios hostis e que teriam, por isso, as vidas em grande risco.


O local do massacre da família Oatman

Perante as informações aterradoras, as famílias resolveram não ir mais além. Mas Royce Oatman, levado porventura pela fé e pela confiança na protecção divina, optou por seguir viagem com os seus.
A 18 de Fevereiro de 1851, os Oatman chegaram às proximidades do rio Gila (afluente do Colorado), a leste de Yuma, num ponto situado entre Tucson e Phoenix (Arizona). Aí encontraram o seu trágico destino.

Um bando de índios aproximou-se deles com intenções aparentemente pouco pacíficas. Foram mais tarde erradamente identificados como Apaches (aqui), quando tudo aponta para que se tratasse de Tolkepaya (subdivisão da tribo Yavapai). 

Começando por exigir alguma comida e tabaco, os índios foram subindo as exigências. Royce Oatman, que lutava com escassez de mantimentos para sustentar a numerosa família, terá procurado argumentar contra o que era, indubitavelmente, um assalto impiedoso. Os Tolkepaya reagiram com extrema violência, atacando toda a família.

Royce Oatman e a esposa, com mais quatro dos seus filhos, foram brutalmente massacrados. Olive Oatman, de 13 anos, e a sua irmã Mary Ann, de 7, foram aprisionadas e levadas pelos assaltantes.

Para trás, entre os cadáveres da família, ficou caído um outro irmão, Lorenzo Oatman, de 15 anos, que os Tolkepaya tinham ferido gravemente e deixado como morto.
Mas Lorenzo recuperaria os sentidos e sobreviveria ao ataque. Partiu em busca de auxílio e voltou com alguns homens para dar sepultura aos pais e aos irmãos. Dando pela falta de Olive e de Mary Ann, não mais deixaria de procurá-las, solicitando para isso o auxílio das autoridades americanas.


Olive Oatman entre os índios Mojave (Mohave), depois de resgatada aos Tolkepaya.

Os Tolkepaya (Yavapai) saquearam os bens dos Oatman e levaram Olive e Mary Ann para o seu aldeamento, nas montanhas Harquahala. Durante cerca de um ano, reduzidas à escravidão, as meninas sofreram maus tratos dos captores, para os quais eram forçadas a trabalhar duramente, carregando água e lenha e prestando-lhes outros serviços domésticos. Eram frequentemente espancadas e, pelo menos no início, receavam ser mortas a qualquer instante.

Um dia, os Tolkepaya tiveram a visita de um grupo de índios Mojave (Mohave), cujo chefe era conhecido por Espaniole entre os brancos. A filha deste, Topeka, testemunhou o tratamento que as meninas brancas recebiam dos Tolkepaya e condoeu-se delas, pressionando para que fossem resgatadas. Ofereceu alguns produtos aos raptores para que lhas vendessem, mas eles recusaram. Topeka foi insistindo e subindo as ofertas, até que os interlocutores cederam: as meninas foram trocadas por dois cavalos, algumas mantas e um lote de bugigangas.


Casal de índios Mojave, com suas tatuagens características.


As duas crianças caminharam com os Mojave durante dias a fio até chegarem a um aldeamento próximo do rio Colorado (onde posteriormente se situaria a cidade californiana de Needles). Foram bem acolhidas pelo chefe Espaniole e pela mulher deste, Aespaneo, e continuaram a merecer a simpatia da filha deles, Topeka, que fora decisiva para o seu resgate.
Vários anos mais tarde, após regressar ao convívio com os brancos, Olive referir-se-ia sempre aos Mojave com afecto e gratidão, destacando especialmente Aespaneo e Topeka.

De facto, a sorte das meninas mudou por completo na aldeia mojave. Deixaram de ser maltratadas, podiam movimentar-se livremente e receberam pedaços de terreno que podiam cultivar à sua vontade. Com a passagem dos anos foram adquirindo hábitos próprios dos seus anfitriões.

Olive e Mary Ann não pareciam contrariadas por viverem com os índios, ao ponto de não denunciarem a sua presença quando o aldeamento era episodicamente visitado por homens brancos.
A prova de que os Mojave tinham passado a considerá-las como membros da tribo foi a tatuagem que lhes fizeram, com tinta azul de cacto, no queixo, nos braços e nas pernas. A tatuagem não era um sinal de propriedade, mas uma protecção para depois da morte: quando deixassem esta vida, seriam reconhecidas e protegidas no Além pelos Mojave já falecidos, achando assim a felicidade através de todas as eternidades.

Para além disso, Olive - pelo menos ela - recebeu dos índios uma identificação tribal, passando a chamar-se Oach Spantsa...


Recriação imaginária da morte de Mary Ann Oatman

A eventual felicidade de Olive sofreria um golpe profundo quando, por volta de 1855, a região foi assolada por uma grande seca, que provocou  terrível escassez de alimentos e a morte de muitos Mojave, especialmente crianças. A pequena Mary Ann, que contaria na altura cerca de 11 anos, foi uma das vítimas, para grande desgosto da irmã e enorme consternação dos índios. Olive sobreviveu graças à papa especial (mingau) que Aespaneo, a mulher do chefe Espaniole, lhe forneceu como alimento.

Enquanto tudo isto ocorria, Lorenzo Oatman tinha prosseguido ininterruptamente as suas diligências para encontrar as irmãs desaparecidas naquele 18 de Fevereiro fatídico, sendo nisso auxiliado por elementos do Exército dos Estados Unidos.
Certo dia, em 1856, chegou a Fort Yuma o rumor de que vivia uma mulher branca num aldeamento Mojave. Um mensageiro do forte avistou-se com os índios e confirmou a notícia. Após algumas conversações, que serviram para que os protectores das meninas ultrapassassem o receio de serem punidos pelas autoridades dos brancos, Olive Oatman - agora uma mulher de quase vinte anos - deixou aquela que fora a sua segunda família e voltou para o que restava da primeira: o seu irmão Lorenzo.

Topeka, a sua amiga índia, acompanhou-a até Fort Yuma numa viagem de três semanas. Antes de dar entrada no forte, Olive vestiu as roupas que lhe foram emprestadas pela esposa de um oficial. Com efeito, até àquela altura, ela apresentava-se sempre à maneira das mulheres mojave: uma saia curta e o tronco completamente desnudado. Mas as tatuagens, irremovíveis, continuariam com ela até ao último dos seus dias.

Olive Oatman

Diz-se que Olive Oatman, nesta nova fase da sua existência, nunca conseguiu ultrapassar os traumas ocasionados pela perda das duas famílias, a branca e a índia. Nos muitos anos que lhe faltava viver, sentiu dores de cabeça frequentes e sofreu depressões difíceis de superar.

Mas tratava-se de uma jovem dotada de grande força de carácter. Abafando dores e pesadelos, colaborou na escrita de livros e notícias sobre a sua vivência entre os índios. Com os proventos daí decorrentes, pagou não só os seus estudos universitários como os do irmão.
Anos mais tarde, avistou-se com um chefe Mojave em New York, e com ele recordou os velhos tempos que tinha passado com os índios...

Em 1865, Olive casou com o fazendeiro John B. Fairchild, de quem enviuvaria ao fim de uma dúzia de anos. Não tiveram filhos, mas adoptaram uma menina, Mary Elizabeth. 

Lorenzo Oatman morreu em Outubro de 1901.

Olive sobreviveu-lhe cerca de ano e meio: faleceu, de ataque cardíaco, em Março de 1903, com 65 anos.
Ficou sepultada no cemitério de West Hill, em Sherman (Texas) para onde fora viver com o marido.

No Arizona tinha entretanto surgido uma pequena cidade cujo nome homenageava a família tão tragicamente colhida pelo destino naquele 18 de Fevereiro de 1851: Oatman, assim foi chamada a povoação...

Lorenzo Oatman




sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Manuel Bandeira, Sophia de Mello Breyner e as Três Mulheres do Sabonete Araxá


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Num dia de 1931, em Teresópolis,
o poeta brasileiro Manuel Bandeira assinou este poema:

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Balada das Três Mulheres do Sabonete Araxá


As três mulheres do sabonete Araxá me invocam,
me bouleversam,
me hipnotizam.


Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde!
O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!

Que outros, não eu, a pedra cortem
Para brutais vos adorarem,
Ó brancaranas azedas,
Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata

Oh celestes africanas:
Que eu vivo, padeço e morro
só pelas três mulheres do Sabonete Araxá!

São amigas, são irmãs, são amantes
as três mulheres do Sabonete Araxá?
São prostitutas, são declamadoras, são acrobatas?
São as três Marias?

Meu Deus, serão as três Marias?

A mais nua é doirada borboleta.
Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida,
dava pra beber e nunca mais telefonava.

Mas se a terceira morresse...
Oh, então nunca mais
a minha vida outrora teria sido um festim!

Se me perguntassem:
Queres ser estrela?
queres ser rei?
queres uma ilha no Pacífico?
um bangalô em Copacabana?

Eu responderia: Não quero nada disso, tetrarca.
Eu só quero as três mulheres do sabonete Araxá:

O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!

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Num outro dia, bastante mais tarde,
a nossa Sophia de Mello Breyner Andresen
celebrou assim esse saudoso poema da sua juventude:
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Manuel Bandeira

Este poeta está
do outro lado do mar
Mas reconheço a sua voz há muitos anos
E digo ao silêncio os seus versos devagar
Relembrando o antigo jovem tempo

quando pelos sombrios corredores da casa antiga
nas solenes penumbras do silêncio
eu recitava
"As três mulheres do sabonete Araxá"
E minha avó se espantava

Manuel Bandeira era o maior espanto da minha avó
Quando em manhãs intactas e perdidas
No quarto já então pleno de futura saudade
Eu lia a canção do "Trem de ferro"
e o "Poema do beco"
 
Tempo antigo
lembrança demorada
Quando deixei uma tesoura esquecida
nos ramos da cerejeira

Quando me sentava nos bancos pintados de fresco
e no Junho inquieto e transparente
as três mulheres do sabonete Araxá me acompanhavam
tão visíveis
que um eléctrico amarelo as decepava

Estes poemas caminharam comigo e com a brisa
Nos passeados campos da minha juventude
Estes poemas poisaram a sua mão sobre o meu ombro
E foram parte do tempo respirado.


Sophia de Mello Breyner Andresen (aqui)
(Portugal)




terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

A democracia de Espanha no fio da navalha (Golpe militar de 23-Fevereiro-1981)

 


Pelas seis horas e vinte e três minutos da tarde, no dia 23 de Fevereiro de 1981 (completam-se hoje, precisamente, 40 anos), o tenente-coronel Antonio Tejero Molina, à testa de duas centenas de guardas civis, irrompeu de pistola em punho no Congresso dos Deputados de Espanha, em Madrid, e, de mão esquerda erguida num gesto teatralmente imperioso, ordenou que os presentes se atirassem imediatamente para o chão.

A maioria obedeceu, escondendo-se por trás das cadeiras em que assistiam à sessão daquele dia. As excepções foram muito poucas e, por isso, mais honrosas.

O que estava em curso com aquela inopinada invasão era uma tentativa (mais uma) de subversão da ordem constitucional há poucos anos implantada no país.



Francisco Franco, vencedor da Guerra Civil (1936-1939), morrera em Novembro de 1975, depois de ter governado a Espanha, com mão rija e implacável, durante perto de quatro décadas.

Deixara expressamente como sucessor, a título de rei, Juan Carlos I. Na mente do velho ditador, como na de muitos dos seus seguidores, o novo soberano - criado e educado dentro do regime, sob apertada vigilância - seria o melhor garante da sobrevivência do franquismo após o desaparecimento físico do seu criador.

Todavia, e ainda que as Forças Armadas e o aparelho do Estado continuassem a contar, ao mais alto nível, com elevado número de simpatizantes e saudosos de Franco, as coisas não se passaram como este havia planeado.

O rei Juan Carlos, agora Chefe de Estado, não assumiu o comportamento previsto. Optando pela via das reformas, conseguiu mesmo que o país fosse guinando, aos poucos, em direcção à democracia plena.

Os partidos políticos foram legalizados (incluindo o Partido Comunista), houve eleições legislativas (1977) e, por referendo popular, em Dezembro de 1978, a Espanha teve finalmente a sua Constituição democrática (que contemplava a monarquia parlamentar e abria caminho às autonomias das diversas regiões do país).

Os franquistas, de uma forma geral, e, particularmente, os que sobreviviam ainda nas Forças Armadas e nos centros de poder civil, não apreciaram a evolução dos acontecimentos (sobretudo a legalização dos comunistas e as previsíveis autonomias regionais). E alguns resolveram agir.

O vice-presidente do Governo, tenente-general Gutiérrez Mellado (de costas, agarrado por guardas), tenta arrojadamente opor-se aos golpistas. À direita, semi-encoberto, Tejero Molina contempla a cena e ordena que Mellado se torne a sentar. À esquerda, nas escadas, o presidente do Governo, Adolfo Suárez (que estava demissionário na altura), precipita-se para o defender. Foi então que se ouviram disparos que lançaram o pânico entre os deputados.

O tenente-coronel Tejero Molina, da Guarda Civil, era um desses descontentes, inconformados com a desagregação do regime que saíra da Guerra Civil.

Franquista até à medula, impulsivo e adepto de intervenções violentas, já tinha estado anteriormente implicado numa tentativa de golpe que lhe valera uns meses de prisão.

Mal saiu da cadeia regressou à actividade conspirativa, a qual haveria de culminar com esta invasão do Palacio de las Cortes e com o sequestro dos deputados e ministros ali presentes.


Os três principais protagonistas do golpe de 23 de Fevereiro: Tejero, Del Bosch e Armada.
 
Mas Tejero era apenas um homem de mão do golpe militar. Como se provaria em tribunal, por trás dele estavam duas figuras poderosas das Forças Armadas: os generais Alfonso Armada e Jaime Milans del Bosch.

Armada fora, há muitos anos, instrutor militar e preceptor de Juan Carlos I. Mais recentemente, exercera o cargo de secretário-geral da Casa do Rei, sendo considerado bastante próximo do soberano.

Milans del Bosch era capitão-general da Região Militar de Valência e dispunha de poder militar considerável (milhares de homens e dezenas de tanques). Enquanto Tejero levava a cabo a intervenção no Palacio de las Cortes, ele fez sair os seus tanques em direcção a Madrid.

Nessa altura, Del Bosch contava com a suposta influência de Alfonso Armada junto do rei Juan Carlos, por forma a obter a adesão ao golpe das restantes Regiões Militares de Espanha.

Tanques de Milans del Bosch rumam a Madrid.

Tejero Molina nunca fez segredo de que se tratava de uma figura secundária (embora importante) da acção em curso. Aliás, nas diversas intervenções que fez perante os deputados, naquele dia 23, anunciou que em breve receberiam a visita de um militar de prestígio que tomaria o poder nas suas mãos.

Tudo indica que os revolucionários se deixaram conduzir por alguns equívocos, contraditórios entre si, que condenariam o golpe ao malogro.

Alfonso Armada pensava numa "revolução suave", em que ele próprio ficaria à frente de um governo integrado pelos dirigentes dos diversos partidos políticos (com socialistas, comunistas e gente de direita).

Milans del Bosch não agia nesse comprimento de onda: adepto de Franco, tal como Tejero, cogitava na imposição pura e simples, pela força, de um governo militar.

Tejero Molina, ideologicamente mais próximo de Del Bosch, diria mais tarde, quando Armada se avistou com ele no Palacio de las Cortes, que não se tinha arriscado daquela maneira para abrir as portas a um Governo integrado por socialistas e comunistas.

O rei Juan Carlos I fala aos espanhóis ao princípio da madrugada de 24 de Fevereiro de 1981. O golpe militar tinha falhado.

Mas o que fez gorar por inteiro as expectativas dos golpistas foi a atitude  do rei Juan Carlos. Não obstante algumas hesitações e ambiguidades, o soberano decidiu opor-se frontalmente, através de várias iniciativas, à acção revolucionária.

Em primeiro lugar, não autorizou que Alfonso Armada se dirigisse aos capitães-generais das Regiões Militares (o general pretendia fazê-lo em nome do rei, muito provavelmente para os convidar a aderir ao golpe).
Assim, quem falou com esses chefes militares foi o próprio Juan Carlos, e de todos obteve a garantia de que se manteriam nos quartéis sem dar qualquer apoio ao avanço de Del Bosch.

Em segundo lugar, o rei contactou directamente o general Milans del Bosch, que se encaminhava para Madrid, e ordenou-lhe que retornasse aos aquartelamentos de Valência. A princípio renitente, e depois de algumas insistências do rei ao longo da madrugada, o general acabou por obedecer.

Mas o mais importante foi porventura a mensagem que Juan Carlos dirigiu aos espanhóis (transmitida pela TV à 1h 14m da madrugada de 24 de Fevereiro). As palavras do rei precipitaram definitivamente o falhanço do golpe militar:

A Coroa, símbolo da permanência e da unidade da pátria, não pode de nenhuma maneira tolerar que alguns, por meio de actos ou atitudes, possam travar pela força o processo democrático que a Constituição consagrou através da livre expressão do povo espanhol.

Na manhã de 24 de Fevereiro, até o impulsivo Tejero Molina percebeu que tudo estava perdido. Dezassete horas depois do sequestro, mandou soltar os deputados e governantes que tinha em seu poder e resolveu render-se.
A única coisa que pediu é que não fossem julgados os que, com patente inferior à de tenente, o tinham acompanhado naquela desesperada aventura.

Tejero Molina, há pouco mais de um ano (Outubro de 2019), no cemitério de Mingorrubio onde Francisco Franco foi inumado após ter sido retirado da sua sepultura no Vale dos Caídos.

Em 1983, os três principais responsáveis do golpe - Tejero, Del Bosch e Armada - foram condenados a 30 anos de prisão, mas nenhum deles cumpriria integralmente a pena (foram ainda condenadas, embora a penas inferiores, cerca de três dezenas de pessoas).
Alfonso Armada saiu em liberdade no ano de 1988, e Del Bosch em 1990.

O último a ser libertado, em Dezembro de 1996, foi Tejero Molina. Contando actualmente 88 anos de idade, jamais enjeitou as convicções políticas e a sua admiração por Francisco Franco. 

Quando, em Outubro de 2019, o antigo ditador foi retirado do seu túmulo, no Vale dos Caídos, para receber nova sepultura em El Pardo-Mingorrubio (arredores de Madrid), Tejero fez questão de comparecer no cemitério para acompanhar a cerimónia.

Provando que muitas das feridas da Guerra Civil (aqui) continuam por fechar no tecido político espanhol, o antigo golpista foi acolhido com aplausos e expressões de júbilo por parte de algumas centenas de pessoas. Gritaram continuadamente o seu nome e prometeram-lhe obediência em caso de necessidade: Às suas ordens, meu coronel!
Chamaram-lhe, ainda, Tejero, grande de Espanha.

Nota Final - Parte da história daquele 23 de Fevereiro de 1981 (o 23-F, como dizem os espanhóis) continua mergulhada em sombras e interrogações sem resposta. Muitos documentos da época continuam classificados e, portanto, fora do alcance dos investigadores, tal como se acham interditas as gravações das conversas telefónicas entre os principais intervenientes.
Quando - e se - algum dia vierem a público, será talvez possível esclarecer alguns comportamentos menos conhecidos, pondo fim, de uma vez por todas, às dúvidas, suspeitas e controvérsias que se mantêm há quatro décadas.

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España
(Compositor: Emmanuel Chabrier)
(Interpretação: BBC Simphony Orchestra)
(Maestro: Leonard Slatkin)



sábado, 20 de fevereiro de 2021

As segundas mães (Tempos de escravatura e servidão: amas-de-leite negras para crianças brancas)


Ama-de-leite é uma mulher que amamenta crianças alheias, ou seja, filhos ou filhas de outras mulheres que, por qualquer razão, não queiram, ou não possam, amamentar a própria prole.

Trata-se de prática que remonta aos primórdios da Humanidade. Consta, por exemplo, de velhos textos da Babilónia com cerca de 4000 anos (Código de Hamurábi). Também na Grécia e na Roma antigas se acha documentado este tipo de procedimento, igualmente designado por amamentação cruzada.

A ama-de-leite foi figura e recurso frequente na Europa dos últimos séculos, sobretudo nas camadas sociais mais favorecidas, em que, por razões de saúde ou por mero comodismo, as mães recentes delegavam noutras mulheres, por regra mais pobres ou delas economicamente dependentes, a alimentação dos seus próprios filhos.



Como é natural, este costume acompanhou por toda a parte as nações europeias expansionistas, como Portugal e Espanha. Com a intensificação da escravatura transatlântica, de origem africana, a amamentação cruzada conheceu patamares antes insuspeitados.

A razão é evidente: passavam a estar disponíveis em abundância, nas parcelas coloniais das nações europeias,  milhares de jovens negras sadias e produtoras de um leite que, segundo se pensava então, era mais rico e fortificante do que o das parturientes brancas.

Este hábito enraizou-se no Brasil e por toda a América escravocrata. Tornou-se comum, nas casas senhoriais, entregar a responsabilidade da aleitação dos bebés brancos às jovens escravas que tivessem sido mães recentemente.

Por vezes era permitido a estas amas-de-leite que alimentassem, simultaneamente, o seu filho. Noutras ocasiões, porventura maioritárias, as coisas não se passavam assim: o aleitamento da criança negra era confiado a outras escravas enquanto a sua mãe se mudava para a casa grande para alimentar o filho ou a filha dos senhores.

Às vezes a solução podia ser mais desumana, quando a criança negra era encaminhada para a Roda dos Expostos, perdendo todo o vínculo com a progenitora. Era este o lado mais triste e trágico desta prática.     




A jovem mãe escrava, agora transformada em ama-de-leite da criança branca, recebia em regra melhor tratamento do que aquele que lhe fora dispensado até então. Integrada no círculo mais próximo dos senhores, alimentava-se melhor, vestia bem, acompanhava a família para toda a parte.

Mantinha sobretudo um contacto quase permanente com a criança branca, da qual cuidava muito para além do acto da amamentação. Juntas brincavam, juntas trocavam histórias e mimos, juntas riam e choravam, juntas partilhavam experiências e emoções - justamente o que se esperaria de uma relação mãe-filho.

Para crianças de tão tenra idade, a viverem os seus primeiros anos, não existiam, evidentemente, nem os preconceitos raciais nem as interdições de convívio que caracterizavam as sociedades escravocratas. Motivo pelo qual,  em inúmeros casos, se desenvolviam e solidificavam entre a criança e a ama, com carácter de reciprocidade, fortíssimas ligações afectivas, que com frequência perdurariam pela vida fora.




O convívio quotidiano entre os dois ultrapassava amiúde o período da aleitação, o que fazia com que as amas-de-leite se tornassem amas-secas dos filhos e filhas dos senhores, acompanhando o seu crescimento e educação durante a primeira infância.

Deste modo, com a passagem do tempo, a escrava convertia-se numa segunda mãe da criança branca. Como escreveu Gilberto Freyre: Muito menino brasileiro do tempo da escravidão foi criado inteiramente pelas mucamas. Raro o que não foi amamentado por negra.

Os laços de afeição entre a ama negra e a sua cria de leite podiam tornar-se tão profundos que a separação de ambos, quando ocorria, era extremamente dolorosa.

Conta-se, como exemplo entre muitos, o caso da ama-de-leite Júlia Monjola, a escrava que amamentou, no Brasil, uma criança branca francesa - Marta Expilly.
O pai de Marta era Charles Expilly, que um dia teve de abandonar o país com toda a família, deixando Júlia para trás.

Mais tarde, numa carta comovida e comovedora para sua filha (escrita em 1863), Charles evocava o terrível instante em que as duas se separaram. E lembrava o pedido que a negra Júlia Monjola fizera ao ouvido da menina branca que fora sua cria de leite:

Ela pediu-te, entre lágrimas, que nunca te esquecesses daquela que todos os dias te embalava nos braços e te fazia adormecer no seu seio. E, se algum dia fosses rica, que a comprasses para ser só tua.

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"Mãe Negra"
Voz: Paulo de Carvalho (Portugal)
Poema: Alda Lara (Angola)























































































"Mãe Preta"
(Amamenta o bebé branco, enquanto seu filho observa)
(Quadro de Lucílio de Albuquerque)