sábado, 9 de novembro de 2019

Apache! (Episódios da resistência dos povos do sudoeste norte-americano) (5)

 

Nos princípios da década de 1880, após a morte de Victorio, quase todos os Apaches se achavam encurralados em reservas atribuídas pelo governo americano - grandes espaços vigiados por enxames de soldados prontos a reprimir à nascença qualquer esboço de revolta. No entanto, grupos de desesperados logravam por vezes furtar-se à vigilância e regressar à vida anterior, novamente de armas na mão. Alguns relatos insuspeitos, de origem americana, deixariam a nu, com toda a clareza, a explicação dessas fugas: elas resultavam invariavelmente dos abusos sofridos pelos índios.

Certos agentes do governo, conluiados com outros cidadãos sem escrúpulos, procediam, em proveito próprio,  ao desvio e à negociação das rações e demais produtos destinados aos habitantes das reservas. Por outro lado, as terras destas eram amiúde cobiçadas por ambiciosos oportunistas, que procuravam suscitar respostas violentas dos Apaches para que eles fossem expulsos dali.

A demonização dos índios constituía um processo contínuo. Jornais da fronteira propagavam toda a espécie de falsidades sobre eles, atribuindo-lhes violências que não haviam cometido - ou que, no limite, correspondiam a actos de vingança pelos agravos sofridos.
Essas notícias fantasiosas eram acriticamente reproduzidas, sem filtragens ou verificações, pela imprensa dos grandes centros urbanos, muito afastados dos locais dos acontecimentos, o que contribuía para consolidar uma opinião pública generalizadamente hostil aos nativos e tendencialmente concordante com qualquer retaliação exercida contra eles.

Um homem acima de toda a suspeita nesta matéria era o general americano George Crook. Para os Apaches, ele continuava a ser o Lobo Cinzento, que perseguira antigamente Cochise e outros índios, de diferentes tribos (Sioux, Cheyennes). Mas Crook, com o decurso dos anos, fora mudando de opinião acerca daqueles inimigos singulares: passara a encará-los como seres humanos (o que estava longe de ser posição pacífica entre os invasores). E confirmava, agora, o desrespeito e as injustiças de que eles tinham sido vítimas: Os índios não são culpados, escreveu, porque não vêem nenhuma justiça num governo que só os castiga, enquanto permite que o homem branco os roube à vontade.

Crook, que no derradeiro quadrimestre de 1882 assumira  o comando do Departamento do Arizona - e que nessa condição logo se deslocou à reserva de White Mountain -, não vislumbrou ali motivos para alterar as suas ideias. Acreditava que a solução já não residia na guerra, mas no diálogo com os índios. 
Tornando-se embora impopular entre os seus concidadãos, insistia com veemência: Somos culpados de mais, como nação, pela situação actual. Isso quer dizer que devemos mostrar aos Apaches que serão doravante tratados com justiça e protegidos da invasão dos brancos.


Gerónimo (1829-1909)

O general Crook, ao clamar naquelas áridas paragens pelos direitos dos índios, era apenas uma voz no deserto - como fora outrora a de Tom Jeffords, o amigo de Cochise. Mas os Apaches conheciam outras vozes de brancos - a imensa maioria - que exprimiam ideias muito diferentes. Por isso continuavam a desconfiar e, alguns deles, a lutar.
Foi o que se passou com o velho Nana, guerreiro apache de 70 anos - um dos trinta sobreviventes do massacre que acabara com a vida de Victorio, em Tres Castillos -, que conseguira escapar para o México com alguns seguidores.
Após o desastre, Nana não só recusara render-se como recrutou guerrilheiros entre os jovens apaches que vegetavam nas reservas, entregues a quotidianos de tédio e desprovidos de horizontes. No Verão de 1881, transpôs o Rio Grande com a sua gente e, em três ou quatro semanas, travou oito combates, apoderou-se de duas centenas de cavalos e tornou a refugiar-se no México, não obstante a perseguição da Cavalaria dos Estados Unidos.

Os americanos, temendo o recrudescimento da guerra, expediram reforços para o Sudoeste, particularmente para a área de White Mountain. Aqui, algumas figuras já nossas conhecidas - como Naiche e Gerónimo, que se deixara entretanto enclausurar na reserva - alarmaram-se com as manobras de intimidação que a cavalaria inimiga levava a cabo nas imediações. Corriam boatos sobre a iminente prisão de todos os líderes que haviam combatido os brancos.
Uma noite, em finais de Setembro de 1881, Naiche, Juh e Gerónimo - de longe o mais prestigiado - fugiram da reserva acompanhados por 70 guerreiros e refugiaram-se nos seus conhecidos baluartes da Sierra Madre, em território mexicano.

Em Abril de 1882, após meio ano de combates e de assaltos que lhes permitiram equipar-se e armar-se convenientemente, retornaram a White Mountain para fazerem evadir mais guerreiros e as suas famílias. Muitos responderam ao apelo, e o grupo, agora bastante aumentado, tomou o rumo do México. O exército americano procurou embargar-lhes o passo nas proximidades da fronteira, mas uma manobra repentina dos Apaches, tacticamente brilhante, reteve os soldados durante o tempo necessário para que o grosso dos fugitivos entrasse no México. Foi então que sobreveio o  desastre: um regimento mexicano montou uma emboscada à coluna apache, matando a maioria das mulheres e das crianças, que seguiam à frente.

Gerónimo sobreviveu, tal como sobreviveram, entre outros, Naiche, Loco e Chato. Com os guerreiros que restavam, eles correram a unir as suas forças com as de Nana, que continuava muito activo nas operações de guerrilha.
O que se seguiu foi um período de lutas ferozes, com os norte-americanos a enviarem reforços sucessivos, os quais só contribuíam para fazer crescer a intranquilidade entre os índios ainda presentes nas reservas. Isso originava mais evasões e um cortejo de ataques contra os ranchos situados nas rotas de fuga dos índios. E o nome de Gerónimo passou a ressoar por toda a região como símbolo de rebeldia e de terror.

Gerónimo com três dos seus guerreiros. Ele é o mais alto, à direita.

Foi para tentar resolver a situação de caos instalada no Sudoeste que o Exército americano convocou o general George Crook e o enviou para o Arizona, com largos poderes, no mês de Setembro de 1882. O general, depois de se inteirar da situação em White Mountain, reforçou a crença de que o diálogo com os índios era a melhor forma - porventura a única - de fazer regressar a paz ao território. E pensava que, através de medidas concretas e apaziguadoras na reserva, conseguiria fazer regressar a maioria dos fugitivos e chegar à fala com o próprio Gerónimo para o convencer a depor as armas.

Algumas das medidas de Crook provocaram a ira dos seus compatriotas, mas contribuíram indubitavelmente para a restauração de um clima de confiança entre a população índia. Ele começou por expulsar de White Mountain todos os colonos e garimpeiros brancos, que estavam frequentemente na origem dos desentendimentos. Depois exigiu que a Agência Índia cooperasse com ele no tocante à introdução de reformas na reserva.

Os contratos para a obtenção de forragens foram celebrados com os Apaches e não com os antigos fornecedores brancos. O Exército pagaria, com dinheiro, todos os excedentes de milho e verduras que os índios conseguissem produzir nas suas terras. Tal como nos tempos de John Clum, foi restaurada a polícia apache e os casos passaram a ser julgados por tribunais índios. Os agentes e comerciantes foram sujeitos a controlo apertado, impedindo ou dificultando as fraudes habituais, o que teve logo como consequência o aumento das rações. Os índios deixaram de ser obrigados a viver nas imediações de San Carlos ou do Forte Apache, possibilitando-se que se instalassem, com as suas casas e quintas, em qualquer ponto da reserva. O general incitava-os a criar os seus rebanhos e a cultivar campos de milho e feijão. E, tão importante como tudo isso, deixaram de ser vistos soldados no interior da reserva.

O cepticismo inicial dos habitantes de White Mountain foi dando gradualmente lugar a um sentimento de confiança. As notícias ultrapassavam os limites da reserva e chegavam a Sierra Madre, no território mexicano, de onde continuavam a partir os ataques de Gerónimo e dos seus seguidores. Certo dia, o general George Crook entrou no México com uma força expedicionária e, auxiliado por batedores experientes, conseguiu alcançar o refúgio de Gerónimo, a quem propôs o regresso a White Mountain com a gente que lhe restava. Surpreendentemente para muitos, o líder apache gostou de Lobo Cinzento, confiou nas suas palavras e aceitou. Em Fevereiro de 1884 deu entrada na reserva americana, parecendo que o "problema índio" se achava definitivamente ultrapassado no Sudoeste.
Mas não seria bem assim...


O general Crook tornara-se um obstáculo incómodo para os que construíam fortunas fomentando guerras e enganando os índios. Com os seus actos de pacificação, ele prejudicava grandes interesses e não tardou a ser hostilizado pela imprensa, tornando-se alvo de boatos sem fundamento. Ao mesmo tempo que o acusavam de ser demasiado tolerante para com os índios, puseram a correr que ele se rendera a Gerónimo no México e que tivera de fazer um acordo vergonhoso com o inimigo para escapar com vida.
Simultaneamente, os jornais intensificaram a campanha contra Gerónimo, atribuindo-lhe dezenas de atrocidades, alertando para a sua pretensa perigosidade e pedindo que ele fosse enforcado. O líder apache, que ao longo de um ano em White Mountain não dera razões de queixa a Crook, soube desses artigos inflamados e comentou: Quando um homem procura portar-se bem, não deviam pôr histórias dessas nos jornais.
Na altura em que diversas fontes fizeram chegar a Gerónimo que os americanos se preparavam para o prender e, talvez, enforcar, ele pensou de novo em fugir - o que concretizou na noite de 17 de Maio de 1885, levando com ele 34 guerreiros e cerca de uma centena de mulheres e crianças.

O pânico regressou ao Sudoeste, embora a ideia de Gerónimo fosse apenas a de se refugiar com os seus nos recantos familiares da Sierra Madre. Nesses dias, ele procurou desesperadamente furtar-se a qualquer confronto com os brancos. Crook, a quem a imprensa logo exigiu uma campanha sangrenta, compreendeu que tinha de chegar de novo à fala com os Apaches para impedir um massacre. Com efeito, a partir de Washington, os seus superiores impunham-lhe que matasse os fugitivos ou que os forçasse a uma rendição definitiva.
Só em Março de 1886 o general tornou a encontrar-se com Gerónimo, a quem informou de que provavelmente passaria algum tempo preso, na Flórida, antes de voltar a White Mountain. O líder apache disse que não se renderia, a menos que Lobo Cinzento lhe prometesse que o período de prisão não ultrapassaria dois anos, findos os quais os prisioneiros seriam devolvidos à reserva. Crook, atendendo ao que estava em jogo, respondeu que tentaria obter essas condições dos seus superiores. Gerónimo aceitou, então, o retorno a White Mountain.

Desgraçadamente, Washington negou-se a aceitar o princípio de acordo alcançado pelo general. Quando soube disso, Gerónimo voltou a evadir-se, desta vez acompanhado por Naiche e por algumas dezenas de guerreiros. O Departamento de Guerra americano repreendeu Crook e este demitiu-se, sendo substituído por um brigadeiro-general, Nelson Miles, em 12 de Abril de 1886.
Miles colocou-se à testa de uma poderosa força de 5 mil soldados, 500 batedores apaches e milhares de voluntários civis. Do lado mexicano foram disponibilizadas centenas de soldados para ajudarem na caça a Gerónimo e ao seu pequeno grupo.
Descoberto em Skeleton Canyon, Arizona, com Naiche, Gerónimo acabou por se render a Nelson Miles - a sua última rendição - em 3 de Setembro de 1886.
Embora o presidente norte-americano, Grover Cleveland, recomendasse que o derradeiro chefe apache fosse enforcado, prevaleceu um resto de bom senso entre os vencedores - e ele, juntamente com os seus, foi condenado à reclusão na Flórida.

Quando chegaram a Forte Bowie, quatro dias após a rendição, Gerónimo e os guerreiros foram metidos em vagões do caminho-de-ferro para viajarem até ao local de exílio. Nunca mais tornariam a ver a terra natal.
A banda do 4.º Regimento de Cavalaria compareceu para uma espécie de cerimónia de despedida. No momento em que o comboio se pôs em movimento, a banda tocou a velha canção Auld Lang Syne, que pode escutar abaixo:

Auld Lang Syne (principia aos 10 segundos):


FIM DA 5.ª E ÚLTIMA PARTE

1.ª Parte - Ver aqui
2.ª Parte - Ver aqui
3.ª Parte - Ver aqui
4.ª Parte - Ver aqui

Bibliografia:
Principal:
Dee Brown - Bury My Heart at Wounded Knee - An Indian History of the American West - 1970.
Outros:
Albert Britt - Great Indian Chiefs - 1938.

Britton Davis - The Truth About Geronimo - 1951.
John C. Cremony - Life Among the Apaches - 1868.
John G. Bourke - An Apache Campaign in the Sierra Madre - 1958.


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