segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya (Jorge de Sena - Portugal)


Não sei, meus filhos,
que mundo será o vosso.
É possível (porque tudo é possível)
que ele seja aquele que eu desejo para vós.

Um simples mundo
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto,
o vosso anseio,
o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros,
o respeito dos outros por vós.

E é possível que não seja isto
nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver.
Tudo é possível,
ainda quando lutemos (como devemos lutar)
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou, mais que qualquer delas,
uma fiel dedicação à honra de estar vivo.


Um dia sabereis que, mais que a humanidade,
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito,
de livre,
de diferente,
e foram sacrificados,
torturados,
espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça
para que os liquidasse
"com suma piedade e sem efusão de sangue".

Por serem fiéis a um deus,
a um pensamento,
a uma pátria,
uma esperança,
(ou muito apenas à fome irrespondível que lhes roía as entranhas)
foram estripados,
esfolados,
queimados,
gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente
quanto haviam vivido
ou suas cinzas dispersas
para que delas não restasse memória.

Às vezes por serem de uma raça,
outras por serem de uma classe,
expiaram todos os erros que não tinham cometido
ou não tinham consciência de haver cometido.


Mas também aconteceu
(e acontece)
que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente,
delicadamente,
por ínvios caminhos
(quais se diz que são ínvios os de Deus).

Estes fuzilamentos,
este heroísmo,
este horror,
foi uma coisa (entre mil)
acontecida em Espanha há mais de um século,
e que, por violenta e injusta,
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande,
cheio de fúria e de amor.


Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio,
um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.

Acreditai que nenhum mundo,
que nada nem ninguém
vale mais que uma vida
(ou a alegria de tê-la).
É isto o que mais importa - essa alegria.

Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem de estar-se vivo
e sabendo que nenhuma vez alguém está menos vivo
ou sofre
ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais à morte
(que é de todos e virá).

Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém,
sem terror,
sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença
(ardentemente espero).


Tanto sangue,
tanta dor,
tanta angústia,
um dia
(mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga)
não hão-de ser em vão.

Confesso que muitas vezes
pensando no horror
de tantos séculos de opressão e crueldade,
hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.

Serão ou não em vão?
Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões,
quem restitui não só a vida,
mas tudo o que lhes foi tirado?

Nenhum Juízo Final, meus filhos,
pode dar-lhes aquele instante que não viveram,
aquele objecto que não fruíram,
aquele gesto de amor que fariam "amanhã".

E, por isso,
o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado,
como coisa que não é nossa,
que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra,
do amor que outros não amaram
porque lho roubaram.


……………………….

Ouça este poema de Jorge de Sena dito por Mário Viegas:

Jorge de Sena nasceu em Lisboa, em 1919, e faleceu em Santa Bárbara, Califórnia (EUA), em 1978. Formou-se em Engenharia Civil pela Universidade do Porto. De 1948 a 1959, foi engenheiro da Junta Autónoma de Estradas.
Em 1959 partiu para o Brasil onde se doutorou em Letras.
A partir de 1965, passou a viver nos Estados Unidos da América.
Foi professor na Universidade de Wisconsin e, depois, na Universidade da Califórnia - Santa Bárbara.
À data da sua morte era Director do Departamento de Espanhol e Português e do Programa de Literatura Comparada daquela Universidade.

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