quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Morte e Vida Severina - João Cabral de Melo Neto (Brasil)




O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.

 Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?

Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda
em que eu vivia.


 Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também
porque o sangue que usamos
tem pouca tinta.

E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte Severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte Severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).

Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.

Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.






João Cabral de Melo Neto foi um dos maiores poetas brasileiros. Nasceu em 1920 e faleceu em 1999.
Neste longo poema (sua obra-prima), de que se apresentam acima apenas os primeiros versos, ele aborda a situação do retirante (migrante), sua morte social e miséria.
Morte e Vida Severina retrata a trajetória de Severino, que deixa o sertão nordestino em direção ao litoral, buscando melhores condições de vida.
Severino encontra no caminho outros nordestinos que, como ele, passam pelas privações impostas ao sertão.
Entre outros factos dramáticos, ele testemunha o enterro de um homem assassinado a mando de latifundiários.
Assiste a muitas mortes e, de tanto vaguear, termina descobrindo que é justamente ela, a morte, a maior empregadora do sertão. É a ela que devem os empregos, do médico ao coveiro, da rezadeira ao farmacêutico… (adaptado daqui).

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