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Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), patriota, combatente da liberdade, defensora dos oprimidos, fascinante personalidade e genial poetisa portuguesa, foi hoje trasladada para o Panteão Nacional, em Lisboa, num justíssimo agradecimento do País à sua obra imorredoira.
Miguel Sousa Tavares, brilhante escritor e jornalista, dedicou-lhe num dos seus livros o texto que abaixo se transcreve, o qual fica como uma das mais belas e comoventes homenagens de um filho a sua mãe.
Emerge deste retrato tocante uma Sophia tão viva, tão sem idade, tão cativantemente humana e, ao mesmo tempo, tão acima das coisas vulgares e previsíveis, que apetece imaginá-la doravante a descer em espírito à sua derradeira morada terrena, dançando com leveza nas noites misteriosas do panteão adormecido, recitando novos, inesperados e deslumbrantes poemas através de todas as eternidades...
(Cavaleiro da Torre)
Emerge deste retrato tocante uma Sophia tão viva, tão sem idade, tão cativantemente humana e, ao mesmo tempo, tão acima das coisas vulgares e previsíveis, que apetece imaginá-la doravante a descer em espírito à sua derradeira morada terrena, dançando com leveza nas noites misteriosas do panteão adormecido, recitando novos, inesperados e deslumbrantes poemas através de todas as eternidades...
(Cavaleiro da Torre)
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“E ela dança
Às vezes, quando
a casa estava adormecida à noite, ela dançava pela sala fora, tal qual como escreveu
(«bailarina fui mas nunca bailei»). Às vezes, convencia-se que havia ladrões em
casa e acordava-me do sono para espreitar debaixo da minha cama, e às vezes
havia ladrões a sério, com cara de assassinos e crachá da PIDE, que chegavam
pela alvorada do dia, mas verdadeiramente ela não tinha medo dos ladrões nem
dos esbirros do «velho abutre»: só tinha medo de fantasmas.
Naquela casa,
aprendemos cedo duas coisas sobre a poesia. A primeira, era que os poetas eram
todos uns personagens extraordinários, que apareciam a horas imprevistas e diziam
coisas surpreendentes. De todos, o mais fantástico era o Ruy Cinatti, que nos convenceu
que era o nosso irmão mais velho, regressado de outra vida em Timor e que esteve à beira
de conseguir transformar-nos em guerrilheiros contra a precária disciplina familiar. Vinham
e iam constantemente poetas tristes ou alegres, cerimoniosos ou tumultuosos e
até um, o Ruy Belo, que me levava à Luz ver o Benfica e jogava futebol comigo no
jardim.
A segunda coisa
sobre poesia que aprendemos é que a poesia é para ser dita e para ser escutada:
é oral, não cabe nos livros. Eu não sabia nada de aritmética, nem de botânica ou de
mineralogia mas, aos dez anos, já tinha aprendido, de ouvido, a recitar sonetos
de Shakespeare em
inglês do século XVI, ou o «Erl König», do Goethe, em alemão. E quando ela
trouxe para casa um disco com poemas do Lorca recitados em espanhol pela Germaine
Montero, ouvi-o tantas, tantas vezes, que fiquei a saber de cor o imenso
«Llanto por Ignácio Sanchez Mejia».
À mesa, entre a
sopa e o prato principal, dentro de um automóvel a caminho do sul ou na missa
das 7 da tarde na Igreja da Graça, de repente ela começava a recitar poesia com
a mesma naturalidade com que os outros falavam de coisas triviais ou respondiam
em latim ao «orate, frates!» do padre. Às vezes, naquele terror que as crianças
têm que os pais pareçam estranhos em público, apetecia enfiarmo-nos pelo chão abaixo
quando, à mesa de um café no Chiado, ou numa loja, em plenas compras de Natal, ou
caminhando connosco pela rua de mãos dadas (por vezes, distraída, perdia-nos),
ela começava a recitar poesia em voz alta, como se o mundo inteiro à sua volta
lhe fosse de repente absolutamente alheio.
Um dia, no eléctrico
a caminho de casa, ela fixou-se num letreiro, por cima de uma janela, que
rezava assim: «se alguma janela o incomoda, peça ao condutor que a feche». E
então, no meio daquele silêncio envergonhado dos passageiros, que fingem não
ver e não se ouvir uns aos outros, ecoou a voz dela, clara e silabada, recitando
um poema: «se alguma janela o incomoda, peça ao condutor que a feche e que nunca
mais a abra.»
A mim, todavia,
ensinou-me o mais importante de tudo: ensinou-me a olhar. Ensinou-me a olhar para
as coisas e para as pessoas, ensinou-me a olhar para o tempo, para a noite,
para as manhãs. Ensinou-me a abrir os olhos no mar, debaixo de água, para perceber
a consistência das rochas, das algas, da areia, de cada gota de água.
Ensinou-me a olhar longamente, eternamente, cada pedra da Piazza Navone, em
Roma, sentados num café, escutando o silêncio da passagem do tempo. Fez-me
mergulhador e viajante, ensinou-me que só o olhar não mente e que todo o real é
verdadeiro. Quem ler com atenção, verá que esta é a moral que atravessa toda a
sua escrita.
A outra lição
decisiva foi a da liberdade. Não só a liberdade física, não só a liberdade na luta pela
justiça, «num sítio tão imperfeito como o mundo», mas ainda a liberdade na busca de um
caminho próprio onde as coisas tenham uma ética e façam sentido e, acima de tudo,
a liberdade da nossa própria solidão. Prémios, condecorações, homenagens,
são-lhe de tal forma alheios que ninguém mais o entende. Dêem-lhe, sim,
silêncio e tempo, manhãs como a «manhã da praça de Lagos» e noites com «jardins
invadidos de luar». E ela dançará. Ao longo das sílabas dos poemas, como
dançava na minha infância.” (*)
(*) Miguel Sousa
Tavares, in “Não Te Deixarei Morrer,
David Crockett”
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Esta Gente
Esta gente cujo rosto
às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis
Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre
Pois gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome
E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada
Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
De um tempo justo (*)
às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis
Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre
Pois gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome
E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada
Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
De um tempo justo (*)
(*) Sophia de Mello Breyner (Do livro GEOGRAFIA, 1967)
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