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sexta-feira, 22 de julho de 2022

"Poema de Helena Lanari" (Uma bela homenagem de Sophia de Mello Breyner ao idioma português falado por brasileiros...)





Gosto de ouvir
o português do Brasil

Onde as palavras recuperam
sua substância total

Concretas como frutas
nítidas como pássaros

Gosto de ouvir a palavra
com suas sílabas todas

Sem perder sequer
um quinto de vogal.

Quando Helena Lanari dizia
o "coqueiro"

O coqueiro ficava
muito mais vegetal.


Sophia de Mello Breyner Andresen (Portugal)
(1919-2004)
Veja mais sobre ela - aqui


Jacob do Bandolim ("Assanhado" - Chorinho)




quinta-feira, 9 de setembro de 2021

(Sophia de Mello Breyner Andresen) - As Pessoas Sensíveis




As pessoas sensíveis não são capazes

de matar galinhas
Porém são capazes
de comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre
e cheira à roupa do seu corpo
Aquela roupa
que depois da chuva secou sobre o corpo
porque não tinham outra

O dinheiro cheira a pobre
e cheira a roupa
que depois do suor não foi lavada
porque não tinham outra

"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
assim nos foi imposto
E não: "Com o suor dos outros ganharás o pão".

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
das grandes estátuas balofas e pesadas

Ó cheios de devoção e de proveito
Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.


Saiba mais sobre Sophia de Mello Breyner - aqui 1 e aqui 2

sexta-feira, 16 de abril de 2021

A Esquerda e a Direita na política portuguesa (segundo Sophia de Mello Breyner)


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Nestes Últimos Tempos
 

Nestes últimos tempos
é certo
a esquerda fez erros
caiu em desmandos
confusões
praticou injustiças


Mas que diremos da longa
tenebrosa
e perita
degradação das coisas que a direita pratica?


Que diremos do lixo do seu luxo
— do seu viscoso gozo da nata da vida —
que diremos da sua feroz ganância
e fria possessão?


Que diremos da sua sábia e tácita injustiça
Que diremos de seus conluios e negócios
e do utilitário uso dos seus ócios?


Que diremos de suas máscaras
álibis
e pretextos
De suas fintas
labirintos
e contextos?


Nestes últimos tempos
é certo
a esquerda muita vez
desfigurou as linhas do seu rosto


Mas que diremos da meticulosa
eficaz
expedita
degradação da vida que a direita pratica?


(Sophia de Mello Breyner Andresen, in O Nome das Coisas)



Inti Illimani
(Venceremos)




sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Manuel Bandeira, Sophia de Mello Breyner e as Três Mulheres do Sabonete Araxá


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Num dia de 1931, em Teresópolis,
o poeta brasileiro Manuel Bandeira assinou este poema:

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Balada das Três Mulheres do Sabonete Araxá


As três mulheres do sabonete Araxá me invocam,
me bouleversam,
me hipnotizam.


Oh, as três mulheres do sabonete Araxá às 4 horas da tarde!
O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!

Que outros, não eu, a pedra cortem
Para brutais vos adorarem,
Ó brancaranas azedas,
Mulatas cor da lua vem saindo cor de prata

Oh celestes africanas:
Que eu vivo, padeço e morro
só pelas três mulheres do Sabonete Araxá!

São amigas, são irmãs, são amantes
as três mulheres do Sabonete Araxá?
São prostitutas, são declamadoras, são acrobatas?
São as três Marias?

Meu Deus, serão as três Marias?

A mais nua é doirada borboleta.
Se a segunda casasse, eu ficava safado da vida,
dava pra beber e nunca mais telefonava.

Mas se a terceira morresse...
Oh, então nunca mais
a minha vida outrora teria sido um festim!

Se me perguntassem:
Queres ser estrela?
queres ser rei?
queres uma ilha no Pacífico?
um bangalô em Copacabana?

Eu responderia: Não quero nada disso, tetrarca.
Eu só quero as três mulheres do sabonete Araxá:

O meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá!

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Num outro dia, bastante mais tarde,
a nossa Sophia de Mello Breyner Andresen
celebrou assim esse saudoso poema da sua juventude:
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Manuel Bandeira

Este poeta está
do outro lado do mar
Mas reconheço a sua voz há muitos anos
E digo ao silêncio os seus versos devagar
Relembrando o antigo jovem tempo

quando pelos sombrios corredores da casa antiga
nas solenes penumbras do silêncio
eu recitava
"As três mulheres do sabonete Araxá"
E minha avó se espantava

Manuel Bandeira era o maior espanto da minha avó
Quando em manhãs intactas e perdidas
No quarto já então pleno de futura saudade
Eu lia a canção do "Trem de ferro"
e o "Poema do beco"
 
Tempo antigo
lembrança demorada
Quando deixei uma tesoura esquecida
nos ramos da cerejeira

Quando me sentava nos bancos pintados de fresco
e no Junho inquieto e transparente
as três mulheres do sabonete Araxá me acompanhavam
tão visíveis
que um eléctrico amarelo as decepava

Estes poemas caminharam comigo e com a brisa
Nos passeados campos da minha juventude
Estes poemas poisaram a sua mão sobre o meu ombro
E foram parte do tempo respirado.


Sophia de Mello Breyner Andresen (aqui)
(Portugal)




terça-feira, 2 de julho de 2019

Sophia de Mello Breyner e a Grécia, por entre odores de resina e mel...

Sophia (n. 6 de Novembro de 1919 - f. 2 de Julho de 2004)

No dia em que se completam quinze anos sobre a sua partida e cinco sobre a justíssima trasladação para o Panteão Nacional (ver "Sophia no Panteão"), a Torre presta-lhe uma pequena homenagem com a transcrição de parte do texto que ela certo dia compôs sobre a sua amada Grécia.
A sensibilidade e o talento descritivo de Sophia emergem em quase tudo quanto escreveu, em verso ou em prosa, como se comprova na seguinte carta (dirigida a Jorge de Sena):
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"Não tento descrever-lhe a Grécia nem tento dizer-lhe o que foi ali a minha total felicidade. Foi como se eu me despedisse de todos os meus desencontros, todas as minhas feridas, e acordasse no primeiro dia da Criação num lugar desde sempre pressentido.
Sobre a Grécia só o Homero me tinha dito a verdade: mas não toda.

O primeiro prodígio do mundo grego está na Natureza: no ar, na luz, no som, na água. É uma natureza mitológica onde as montanhas e as ilhas têm um halo azul que não é imaginado, mas sim fenómeno físico objectivo, que, segundo me disse o padre Manuel Antunes (…), já era um fenómeno notado e discutido na antiguidade.

Sob o sol a pique, numa claridade azul indescritível, o ar é tão leve que nos torna alados e o menor som se recorta com uma inteira nitidez.
As enormes e constantes montanhas povoam tudo de solenidade. Cheira a resina e a mel e há uma embriaguez austera e lúcida.
Mas tanto como a natureza - e ligada à natureza - espantou-me a incrível religiosidade de tudo (…). Pois o que ali há, além de tudo o mais, é uma intensa felicidade de existir que nos lava de tantas feridas." (*)




(*) - Texto extraído da obra "Sophia de Mello Breyner Andresen - Actas do Colóquio Internacional", publicada pela Porto Editora em Dezembro de 2013 (pág. 71).

domingo, 6 de julho de 2014

Sophia e o Ditador

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O Velho Abutre

O velho abutre é sábio
e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada
e seus discursos têm o dom
de tornar as almas mais pequenas

Sophia de Mello Breyner Andresen In Livro Sexto, 1962

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Sophia de Mello Breyner a partir de hoje no Panteão Nacional (Lisboa)

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Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), patriota, combatente da liberdade, defensora dos oprimidos, fascinante personalidade e genial poetisa portuguesa, foi hoje trasladada para o Panteão Nacional, em Lisboa, num justíssimo agradecimento do País à sua obra imorredoira.

Miguel Sousa Tavares, brilhante escritor e jornalista, dedicou-lhe num dos seus livros o texto que abaixo se transcreve, o qual fica como uma das mais belas e comoventes homenagens de um filho a sua mãe.

Emerge deste retrato tocante uma Sophia tão viva, tão sem idade, tão cativantemente humana e, ao mesmo tempo, tão acima das coisas vulgares e previsíveis, que apetece imaginá-la doravante a descer em espírito à sua derradeira morada terrena, dançando com leveza nas noites misteriosas do panteão adormecido, recitando novos, inesperados e deslumbrantes poemas através de todas as eternidades... 

(Cavaleiro da Torre)
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E ela dança

Às vezes, quando a casa estava adormecida à noite, ela dançava pela sala fora, tal qual como escreveu («bailarina fui mas nunca bailei»). Às vezes, convencia-se que havia ladrões em casa e acordava-me do sono para espreitar debaixo da minha cama, e às vezes havia ladrões a sério, com cara de assassinos e crachá da PIDE, que chegavam pela alvorada do dia, mas verdadeiramente ela não tinha medo dos ladrões nem dos esbirros do «velho abutre»: só tinha medo de fantasmas.

Naquela casa, aprendemos cedo duas coisas sobre a poesia. A primeira, era que os poetas eram todos uns personagens extraordinários, que apareciam a horas imprevistas e diziam coisas surpreendentes. De todos, o mais fantástico era o Ruy Cinatti, que nos convenceu que era o nosso irmão mais velho, regressado de outra vida em Timor e que esteve à beira de conseguir transformar-nos em guerrilheiros contra a precária disciplina familiar. Vinham e iam constantemente poetas tristes ou alegres, cerimoniosos ou tumultuosos e até um, o Ruy Belo, que me levava à Luz ver o Benfica e jogava futebol comigo no jardim.

A segunda coisa sobre poesia que aprendemos é que a poesia é para ser dita e para ser escutada: é oral, não cabe nos livros. Eu não sabia nada de aritmética, nem de botânica ou de mineralogia mas, aos dez anos, já tinha aprendido, de ouvido, a recitar sonetos de Shakespeare em inglês do século XVI, ou o «Erl König», do Goethe, em alemão. E quando ela trouxe para casa um disco com poemas do Lorca recitados em espanhol pela Germaine Montero, ouvi-o tantas, tantas vezes, que fiquei a saber de cor o imenso «Llanto por Ignácio Sanchez Mejia».

À mesa, entre a sopa e o prato principal, dentro de um automóvel a caminho do sul ou na missa das 7 da tarde na Igreja da Graça, de repente ela começava a recitar poesia com a mesma naturalidade com que os outros falavam de coisas triviais ou respondiam em latim ao «orate, frates!» do padre. Às vezes, naquele terror que as crianças têm que os pais pareçam estranhos em público, apetecia enfiarmo-nos pelo chão abaixo quando, à mesa de um café no Chiado, ou numa loja, em plenas compras de Natal, ou caminhando connosco pela rua de mãos dadas (por vezes, distraída, perdia-nos), ela começava a recitar poesia em voz alta, como se o mundo inteiro à sua volta lhe fosse de repente absolutamente alheio.

Um dia, no eléctrico a caminho de casa, ela fixou-se num letreiro, por cima de uma janela, que rezava assim: «se alguma janela o incomoda, peça ao condutor que a feche». E então, no meio daquele silêncio envergonhado dos passageiros, que fingem não ver e não se ouvir uns aos outros, ecoou a voz dela, clara e silabada, recitando um poema: «se alguma janela o incomoda, peça ao condutor que a feche e que nunca mais a abra.»

A mim, todavia, ensinou-me o mais importante de tudo: ensinou-me a olhar. Ensinou-me a olhar para as coisas e para as pessoas, ensinou-me a olhar para o tempo, para a noite, para as manhãs. Ensinou-me a abrir os olhos no mar, debaixo de água, para perceber a consistência das rochas, das algas, da areia, de cada gota de água. Ensinou-me a olhar longamente, eternamente, cada pedra da Piazza Navone, em Roma, sentados num café, escutando o silêncio da passagem do tempo. Fez-me mergulhador e viajante, ensinou-me que só o olhar não mente e que todo o real é verdadeiro. Quem ler com atenção, verá que esta é a moral que atravessa toda a sua escrita.

A outra lição decisiva foi a da liberdade. Não só a liberdade física, não só a liberdade na luta pela justiça, «num sítio tão imperfeito como o mundo», mas ainda a liberdade na busca de um caminho próprio onde as coisas tenham uma ética e façam sentido e, acima de tudo, a liberdade da nossa própria solidão. Prémios, condecorações, homenagens, são-lhe de tal forma alheios que ninguém mais o entende. Dêem-lhe, sim, silêncio e tempo, manhãs como a «manhã da praça de Lagos» e noites com «jardins invadidos de luar». E ela dançará. Ao longo das sílabas dos poemas, como dançava na minha infância.” (*)

(*) Miguel Sousa Tavares, in “Não Te Deixarei Morrer, David Crockett
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Esta Gente

Esta gente cujo rosto
às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova

E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
De um tempo justo (*)

(*) Sophia de Mello Breyner (Do livro GEOGRAFIA, 1967)

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quinta-feira, 1 de maio de 2008

(Sophia de Mello Breyner Andresen) - Navegações

Vi as águas, os cabos, vi as ilhas
E o longo baloiçar dos coqueirais
Vi lagunas azuis como safiras
Rápidas aves furtivos animais
Vi prodígios espantos maravilhas
Vi homens nus bailando nos areais
E ouvi o fundo som de suas falas
Que já nenhum de nós entendeu mais
Vi ferros e vi setas e vi lanças
Oiro também à flor das ondas finas
E o diverso fulgor de outros metais
Vi pérolas e conchas e corais
Desertos fontes trémulas campinas
Vi o rosto de Eurydice das neblinas
Vi o frescor das coisas naturais
Só do Preste João não vi sinais.

As ordens que levava não cumpri
E assim contando tudo quanto vi
Não sei se tudo errei ou descobri.

(Sophia de Mello Breyner Andresen - Poetisa portuguesa (1919-2004) (in Navegações VII)

terça-feira, 4 de setembro de 2007

(Sophia de Mello Breyner Andresen) - Porque...


Porque os outros se mascaram, mas tu não.
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.

Porque os outros têm medo, mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.

Porque os outros se calam, mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.

Porque os outros são hábeis, mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam, mas tu não.


(Sophia de Mello Breyner Andresen)