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“Vejo na televisão imagens de rua da Irlanda, da Grécia, da Espanha, e são iguais às de Portugal: as pessoas movem-se de ou para o trabalho, há transportes a funcionar, comércio aberto, crianças a irem para escola, enfim, a vida como habitualmente.
A mim parece-me que estes países e estas pessoas estão vivas, que não estão à beira da morte.
Mas não, é ilusão minha: todos os noticiários nos dizem que sobre esta gente e estes países pesa a mais tenebrosa ameaça destes sinistros tempos económicos que se vivem: os mercados.
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Estou farto dos mercados, estou farto da constante ameaça dos mercados:
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os mercados acordaram bem dispostos mas, depois do almoço, os mercados enervaram-se e subiram-nos outra vez as taxas de juro;
os mercados não gostam disto, os mercados querem aquilo;
os mercados querem um orçamento aprovado, os mercados não acreditam na execução do orçamento que queriam aprovado;
os mercados assustam-se quando o ministro das Finanças fala, os mercados reagem em stresse se o ministro fica calado mais do que dois dias;
os mercados querem que os Estados desçam o défice, diminuindo despesas e aumentando receitas, mas os mercados fogem se a PT pagar um euro que seja de imposto sobre as mais-valias do maior negócio europeu do ano;
os mercados estão preocupados com a quebra do consumo, mas os mercados adoram os aumentos do IVA;
os mercados recomendam cortes salariais, mas os mercados são frontalmente contra os cortes nos salários e prémios dos gestores das grandes empresas, porque isso é uma intromissão estatal que contraria a regra da concorrência... nos mercados.
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Sim, eu sei: à falta de alternativa, estamos na mão dos mercados e não os podemos mandar para onde bem nos apetecia e eles mereciam.
Mas convém não esquecer que foi esta fé nos mercados, como se fosse o boi-ápis, a desregulação e falta de supervisão dos famosos mercados, que mergulharam o mundo inteiro na crise que vivemos, devido ao estoiro do mercado imobiliário especulativo e do mercado financeiro, atulhado do que chamam "activos tóxicos" - que deram biliões a ganhar a muito poucos e triliões a pagar por todos.
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A Irlanda, que hoje os mercados flagelam com juros acima dos 8%, está onde está, não porque a sua economia tenha ido à falência (pelo contrário, e como sucede com Portugal, está em crescimento), mas porque os seus tão acarinhados bancos, maravilha fatal dos mercados e do liberalismo selvagem, rebentaram de ganância e irresponsabilidade e obrigaram o Estado a resgatá-los à custa de um défice de 32%.
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Num mundo justo, os mercados deveriam ser os primeiros a pagar pela falência da Irlanda; no mundo em que vivemos, quem ganha com isso são os mercados outra vez e quem paga são os contribuintes - irlandeses primeiro, europeus depois - e os desempregados da Irlanda.
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Por isso, a srª Merkel disse que seria justo que os mercados (isto é, os investidores na dívida pública irlandesa) participassem também nos custos de resgatar a dívida irlandesa, se isso se vier a revelar inevitável.
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Mas, no mundo em que vivemos, o que sucedeu é que toda a gente caiu em cima da srª Merkel, porque a sua declaração logo fez subir as taxas de juro junto dos indignados mercados.
Mesmo no Inverno, já nem espirrar se pode, porque os mercados não gostam (…)” (*)
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(*) - Miguel Sousa Tavares - Estou Farto dos Mercados!
Jornal Expresso - Lisboa - Portugal - 20-Nov-2010
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