terça-feira, 8 de julho de 2014

Vai em Frente, Brasil: Levanta, Sacode a Poeira, Dá a Volta por Cima!

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Deixemos de lado a derradeira partida do Brasil, contra a Holanda, pois tratou-se de mero complemento da anterior, daquela que verdadeiramente conta, a do 1-7 frente à Alemanha.
E a primeira ideia a reter é a de que, por mais traumatizante que tenha sido o jogo frente aos germânicos, o Brasil não deixou de ter potencialmente os melhores jogadores e o melhor futebol do mundo! Não existe entre os dois times, de modo nenhum, a diferença de qualidade que o resultado parece reflectir.

Sucedeu ao Brasil, em versão um pouco mais cruel, mas por razões semelhantes, o que havia já ocorrido com Portugal: ambos os times cometeram o suicídio táctico de jogar abertamente com este adversário, concedendo-lhe espaços amplos, autênticas "avenidas", sem os quais a máquina germânica, comprovadamente, enguiça.

Os alemães possuem um futebol eficaz - até demolidor - se lhes oferecerem ensejo para tal. Mas, colocada perante barreiras tácticas inteligentes e disciplinadas, a sua equipa não evidencia grande imaginação e é pouco versátil.
Diante de colectivos compactos, com zonas de meio-campo convenientemente preenchidas, que defendam bem e lancem contra-ofensivas velozes, demonstram enormes dificuldades e caem num futebol recorrente, estereotipado, pobre de ideias e, por isso mesmo, ultrapassável.

Afinal, o que fez de grandioso essa Alemanha tão enaltecida pelo seu futebol?
Para além das goleadas, muitíssimo consentidas, a Portugal e ao Brasil (irmãos até na ingenuidade de seu sistema de jogo), a soberba Alemanha ganhou dificilmente aos Estados Unidos (1-0) e França (1-0) e não conseguiu vencer, dentro dos 90 minutos regulamentares, nem o Gana (empate, 2-2) nem a Argélia (0-0 - o triunfo de 2-1 surgiu apenas no prolongamento)!
Na final, contra a Argentina, de novo um empate (0-0) no tempo regulamentar, e só as oportunidades perdidas e o estoiro físico dos argentinos lhes permitiram um triunfo injusto.
Onde, portanto, a máquina perfeita, demolidora, irresistível?

O Brasil, para além da ausência de Neymar e de Thiago Silva, foi vítima do seu futebol aberto, generoso, alegremente individualista, quer dizer, do futebol que não pode, ou não deve ser jogado contra times frios e calculistas, de sistema geométrico e aproveitador, como têm a Alemanha e a Holanda.
Recordem a Espanha, anterior campeão do Mundo, que resolveu abandonar a segurança do seu sistema táctico "tipo Barcelona" e jogar aberto com a Holanda, terminando esmagada por 1-5.

O Brasil foi ainda vitimado pela pressão emocional decorrente da "obrigação" de ter de ganhar por jogar em sua casa. Só uma quebra desse tipo pode explicar o que se passou na partida fatídica: sofrer 4 tentos em 6 minutos é absolutamente anormal para qualquer equipa, mesmo amadora, quanto mais para uma selecção como a brasileira!

A Argélia, por exemplo, ensinou como se deve jogar contra a Alemanha - e a Argélia não é uma equipa de estrelas, joga inclusive com vários futebolistas de equipas secundárias, nomeadamente de Portugal.
Na partida Alemanha-Argélia (empate de 0-0, em 90 minutos), chegou a ser confrangedora a inépcia dos centro-campistas e atacantes germânicos diante daquela muralha verde, de onde brotavam, de vez em quando, contragolpes venenosos e perigosíssimos que estiveram à beira de provocar o primeiro grande escândalo do Mundial! Valeu aos germânicos, em diversas ocasiões, um goleiro como "São" Neuer...

Na Europa, ainda há bem pouco tempo, o Real Madrid igualmente demonstrou na Champions League, diante do Bayern de Munique, como se deve fazer.
O Bayern integra a maior parte dos titulares desta selecção alemã (a começar por "São" Neuer), mas, confrontado com o denso meio-campo e os contra-ataques madrilenos, acabou humilhado, em sua casa, por um contundente 0-4, que poderia facilmente ter evoluído para números impensáveis caso os espanhóis tivessem concretizado mais algumas das suas numerosas oportunidades.

Não sei se Felipe Scolari teria coragem e margem suficientes, perante a exigente torcida brasileira, para impor, em certos jogos (como esse, diante da Alemanha), um futebol colectivo de contenção, compacto, astucioso, ficando de tocaia para vibrar o golpe - um futebol semelhante, afinal, ao que hoje praticou a Argentina e que transformou a Alemanha, durante a maior parte do tempo, numa equipa repetitiva, enervada, ineficaz e vulgar. Mas não tenham grandes dúvidas de que, no processo de reorganização do futebol brasileiro que decerto se vai seguir, o caminho passará também por aí. O Brasil tem de reaprender a jogar colectivamente para poder de novo impor-se ao "cinismo táctico" dos seus principais rivais.

O golpe sofrido foi tremendo, mas acredito que desta derrota nascerá em breve uma selecção vigorosa e imparável. O Brasil é, pelas suas potencialidades, o país mais capaz de evoluir para um futebol pragmático e eficaz, apto a defrontar os modernos sistemas europeus, ou quaisquer outros, sem abdicar da fantasia e do perfume incomparável do seu maravilhoso futebol.

Por isso, vai em frente, Brasil!
Como disse a Presidente Dilma - e como diz a canção de Beth Carvalho -  "levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima!". E nem mesmo vai ser necessário recorrer a Carlos Drummond de Andrade e à sua oração a Jesus Cristinho... - recorde aqui.

Para alegria dos Brasileiros, dos Portugueses e de todos os apreciadores do futebol com magia!

Beth Carvalho - "Volta por Cima"
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domingo, 6 de julho de 2014

O Drama da África do Sul (Rachel de Queiroz - Brasil)

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Rachel de Queiroz (1910-2003)

Na edição de 7 de Maio de 1960, na revista brasileira O Cruzeiro (capa no final do texto), a grande jornalista Rachel de Queiroz publicou a seguinte crónica (respeita-se a grafia original):

O drama da África do Sul

Já tenho ouvido de muito brasileiro ingênuo ou mal-aprendido o comentário de que foi uma pena não se terem os flamengos fixado definitivamente no Brasil. Ah, outro galo nos cantara! Teríamos progresso, futuro e não êsse descalabro ibérico que nos legou a colonização portuguêsa...

Pois isso que agora acontece na África do Sul é uma amostra do que seria de nós se a insurreição pernambucana não houvesse pôsto fora do Nordeste o invasor holandês. Flamengo pode ser muito bom na terra dêle. (Não posso dizer a frase corriqueira - que êles podem ser bons para as negras dêles, porque é para as negras dêles, evidentemente, que êles são péssimos,...).

Flamengo tem altas virtudes, mas é um fato que sua atuação colonial durante mais de três séculos e em vários continentes demonstrou que êle não sabe conviver em harmonia com povos de origem racial diferente da sua. E eis por que tenho um certo mêdo dessas colônias holandesas que ora se estabelecem no Brasil. Muito boas, muito limpas, muito trabalhadeiras - mas não se estará formando em cada uma delas um quisto racial insolúvel, uma minoria intolerante e inassimilável?

Ontem alguém perguntava: que é que faz com que um povo aparentemente instruído, polìticamente adiantado, acredite estùpidamente que nasceu para senhor, que a côr da sua pele e a conformação do seu nariz o fadam a desprezar e escravizar outros homens que têm pele e nariz diferentes?

A resposta é simples: um dos aspectos mais invariáveis da natureza humana é a capacidade de acreditar sinceramente e até mesmo fanàticamente, naquilo que lhe convém. Se eu preciso de um negro para trabalhar no meu roçado ou na minha mina, imediatamente me convenço que o bem e o destino do negro não é vaguear à toa nos matos, mas plantar a minha cana ou cavar a minha mina. Para a mina ou para o eito é que Deus o pôs no mundo, não para uma inútil liberdade.

Graças a êsse mecanismo da mente humana, as maiores monstruosidades se praticam - e sinceramente - em nome do bem. Êsse horrendo Hendrik Verwoerd, com as suas duas balas encravadas no rosto, provàvelmente se considera o mártir de uma causa santa. Todos sofremos a necessidade instintiva de praticar coisas certas, ou pelo menos de receber a aprovação da demais Humanidade, ante o que praticamos.

Assim, se eu exerço um ato de violência contra outro ser humano, a minha censura, a minha consciência, o meu anjo-da-guarda, seja lá o que fôr, imediatamente me acusa pelo crime cometido. E eu, então, que não quero renunciar às vantagens da minha violência, mas também não quero ser chamado criminoso, invento para minha justificativa um motivo irretorquível, retumbante, se possível de caráter religioso, e portanto irrespondível, sob pena de sacrilégio.

No caso do negro, falado acima: em vez de reconhecer que o escravizo, convenço-me de que o negro é um irresponsável, incapaz de viver sem a minha ajuda; o trabalho a que o forço é a disciplina indispensável ao seu próprio bem; sôlto, êle ficaria entregue à miséria, à bebida, ao pecado. No fim acabo me proclamando a benfeitoria do negro, destinada por Deus à sua salvação... Uma vez convencida disso, torno-me invulnerável. Crio mesmo um dogma em tôrno daquela convicção. Se sou govêrno, crio lei a respeito e faço ampla catequização. E todos os que se beneficiam do meu regime passam também a acreditar fanàticamente, e, o que é pior, sinceramente, na honestidade dos nossos postulados.

Se não fôsse artifício da mente humana, muito mistério social não teria explicação. Êsses brancos da África do Sul, que friamente fazem massacrar negros desarmados, provàvelmente não são assassinos contumazes; talvez até sejam bons pais de famílias e tementes do que êles consideram a lei de Deus. O Sr. Jânio Quadros, comentando outro dia o drama da África do Sul, disse numa frase generosa que não compreendia como é que naquela terra havia igrejas. A mim parece que a explicação é esta: êles se convenceram do seu direito divino sôbre os negros, convenceram-se de que a Providência os destinou a oprimir e explorar aquela raça nascida para serva dos brancos. E, em vista disso, sentem-se em paz consigo, e ainda pedem trôco a Deus pelas suas boas obras.

Fenômeno idêntico explica por que o Sr. Salazar, homem de rígida formação religiosa e celebrada moral privada, chefia uma ditadura de opressão e impostoria; é que Salazar se convenceu de que é o desejado, o Messias da gene portuguêsa. E quem se revolta contra a pessoa ou os privilégios do salvador é culpado não de oposição a um homem fanático e mau, mas de atentado contra a própria nacionalidade. Assim se justificaria Hitler nos paroxismos da sua loucura assassina; assim se justificam os brancos racistas dos Estados Unidos. Isso explica por que nas guerras ambos os beligerantes estão certos de que Deus está do seu lado.

Aliás, assim também se justifica qualquer criminoso.

Todos têm a sua alegação perfeita. Ninguém diz que matou ou roubou porque é mau, degenerado ou louco. O sujeito que isso confessasse a si mesmo, provàvelmente se suicidaria: dentro de tal evidência ser-lhe-ia impossível continuar a viver consigo próprio.

Foi o que aconteceu com Judas, entre outros.

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Sophia e o Ditador

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O Velho Abutre

O velho abutre é sábio
e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada
e seus discursos têm o dom
de tornar as almas mais pequenas

Sophia de Mello Breyner Andresen In Livro Sexto, 1962

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Sophia de Mello Breyner a partir de hoje no Panteão Nacional (Lisboa)

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Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), patriota, combatente da liberdade, defensora dos oprimidos, fascinante personalidade e genial poetisa portuguesa, foi hoje trasladada para o Panteão Nacional, em Lisboa, num justíssimo agradecimento do País à sua obra imorredoira.

Miguel Sousa Tavares, brilhante escritor e jornalista, dedicou-lhe num dos seus livros o texto que abaixo se transcreve, o qual fica como uma das mais belas e comoventes homenagens de um filho a sua mãe.

Emerge deste retrato tocante uma Sophia tão viva, tão sem idade, tão cativantemente humana e, ao mesmo tempo, tão acima das coisas vulgares e previsíveis, que apetece imaginá-la doravante a descer em espírito à sua derradeira morada terrena, dançando com leveza nas noites misteriosas do panteão adormecido, recitando novos, inesperados e deslumbrantes poemas através de todas as eternidades... 

(Cavaleiro da Torre)
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E ela dança

Às vezes, quando a casa estava adormecida à noite, ela dançava pela sala fora, tal qual como escreveu («bailarina fui mas nunca bailei»). Às vezes, convencia-se que havia ladrões em casa e acordava-me do sono para espreitar debaixo da minha cama, e às vezes havia ladrões a sério, com cara de assassinos e crachá da PIDE, que chegavam pela alvorada do dia, mas verdadeiramente ela não tinha medo dos ladrões nem dos esbirros do «velho abutre»: só tinha medo de fantasmas.

Naquela casa, aprendemos cedo duas coisas sobre a poesia. A primeira, era que os poetas eram todos uns personagens extraordinários, que apareciam a horas imprevistas e diziam coisas surpreendentes. De todos, o mais fantástico era o Ruy Cinatti, que nos convenceu que era o nosso irmão mais velho, regressado de outra vida em Timor e que esteve à beira de conseguir transformar-nos em guerrilheiros contra a precária disciplina familiar. Vinham e iam constantemente poetas tristes ou alegres, cerimoniosos ou tumultuosos e até um, o Ruy Belo, que me levava à Luz ver o Benfica e jogava futebol comigo no jardim.

A segunda coisa sobre poesia que aprendemos é que a poesia é para ser dita e para ser escutada: é oral, não cabe nos livros. Eu não sabia nada de aritmética, nem de botânica ou de mineralogia mas, aos dez anos, já tinha aprendido, de ouvido, a recitar sonetos de Shakespeare em inglês do século XVI, ou o «Erl König», do Goethe, em alemão. E quando ela trouxe para casa um disco com poemas do Lorca recitados em espanhol pela Germaine Montero, ouvi-o tantas, tantas vezes, que fiquei a saber de cor o imenso «Llanto por Ignácio Sanchez Mejia».

À mesa, entre a sopa e o prato principal, dentro de um automóvel a caminho do sul ou na missa das 7 da tarde na Igreja da Graça, de repente ela começava a recitar poesia com a mesma naturalidade com que os outros falavam de coisas triviais ou respondiam em latim ao «orate, frates!» do padre. Às vezes, naquele terror que as crianças têm que os pais pareçam estranhos em público, apetecia enfiarmo-nos pelo chão abaixo quando, à mesa de um café no Chiado, ou numa loja, em plenas compras de Natal, ou caminhando connosco pela rua de mãos dadas (por vezes, distraída, perdia-nos), ela começava a recitar poesia em voz alta, como se o mundo inteiro à sua volta lhe fosse de repente absolutamente alheio.

Um dia, no eléctrico a caminho de casa, ela fixou-se num letreiro, por cima de uma janela, que rezava assim: «se alguma janela o incomoda, peça ao condutor que a feche». E então, no meio daquele silêncio envergonhado dos passageiros, que fingem não ver e não se ouvir uns aos outros, ecoou a voz dela, clara e silabada, recitando um poema: «se alguma janela o incomoda, peça ao condutor que a feche e que nunca mais a abra.»

A mim, todavia, ensinou-me o mais importante de tudo: ensinou-me a olhar. Ensinou-me a olhar para as coisas e para as pessoas, ensinou-me a olhar para o tempo, para a noite, para as manhãs. Ensinou-me a abrir os olhos no mar, debaixo de água, para perceber a consistência das rochas, das algas, da areia, de cada gota de água. Ensinou-me a olhar longamente, eternamente, cada pedra da Piazza Navone, em Roma, sentados num café, escutando o silêncio da passagem do tempo. Fez-me mergulhador e viajante, ensinou-me que só o olhar não mente e que todo o real é verdadeiro. Quem ler com atenção, verá que esta é a moral que atravessa toda a sua escrita.

A outra lição decisiva foi a da liberdade. Não só a liberdade física, não só a liberdade na luta pela justiça, «num sítio tão imperfeito como o mundo», mas ainda a liberdade na busca de um caminho próprio onde as coisas tenham uma ética e façam sentido e, acima de tudo, a liberdade da nossa própria solidão. Prémios, condecorações, homenagens, são-lhe de tal forma alheios que ninguém mais o entende. Dêem-lhe, sim, silêncio e tempo, manhãs como a «manhã da praça de Lagos» e noites com «jardins invadidos de luar». E ela dançará. Ao longo das sílabas dos poemas, como dançava na minha infância.” (*)

(*) Miguel Sousa Tavares, in “Não Te Deixarei Morrer, David Crockett
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Esta Gente

Esta gente cujo rosto
às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova

E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
De um tempo justo (*)

(*) Sophia de Mello Breyner (Do livro GEOGRAFIA, 1967)

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