quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Pizarro e a Conquista Espanhola do Peru (1.ª parte)




A conquista do Império Inca (Peru) pelos espanhóis de Francisco Pizarro, em meados do século XVI, representa um dos mais impressionantes episódios do longo processo de colonização lançado à escala mundial pelos povos ibéricos. É um quadro dramático e sangrento, onde convergem a ingenuidade, a cobiça, a brutalidade e, talvez como síntese de tudo, o desconhecimento ou o desprezo essenciais acerca dos valores do outro - que tão grandes tragédias produziram nestes históricos encontros de povos distintos.
Em 1843, William Hickling Prescott (nascido a 4 de Março de 1796, em Salem, Massachusetts) escreveu e publicou em Nova Iorque uma espantosa "Conquista do Peru", que o tempo entretanto transformou, com justiça, num clássico respeitado. É dessa obra memorável que hoje se extrai o relato da parte culminante desse infeliz encontro.

(William H. Prescott - History of the Conquest of Peru, with a Preliminar View of the Civilization of the Incas - New York - 1843)

(Tradução e adaptação da Torre da História Ibérica)
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"Dissiparam-se as sombras da noite e o sol brilhou na manhã do dia imediato, o mais memorável nos anais do Peru. Era sábado, 16 de Novembro de 1532. O som agudo das trombetas chamou os espanhóis às armas ao romper da alva, e Pizarro, dando-lhes conta em breves palavras do seu plano de ataque, tomou as disposições necessárias.

A praça era defendida em três lados por filas de pequenos edifícios, compostos por espaçosos salões providos de portas largas. Nelas colocou a cavalaria repartida em duas divisões, uma às ordens de seu irmão Hernando e outra sob o comando de Soto. Pôs a infantaria noutro edifício, reservando-se a ele próprio vinte homens seleccionados para acudir com eles onde se tornasse necessário. Pedro de Candia, acompanhado de alguns homens, ficou com a artilharia.

A todos se ordenou que permanecessem em seus postos até à chegada do Inca (Atahualpa). Quando este entrasse na praça deviam manter-se escondidos e atentos até que soasse o sinal, que seria um tiro de arcabuz; então deveriam sair dos edifícios com grandes gritos de guerra, caindo de espada em punho sobre os peruanos e apoderando-se da pessoa do Inca. Depois cuidou o chefe espanhol de que as armas das suas tropas permanecessem em bom estado e de que as rédeas dos cavalos levassem campainhas para que aumentasse com o seu ruído a perturbação dos índios. Distribuíram-se também pelas tropas abundantes provisões de boca para que nada faltasse ao bom êxito da empresa.

Adoptadas estas disposições, os eclesiáticos que seguiam na expedição celebraram uma missa com grande solenidade, rogando ao Deus das batalhas que estendesse o seu escudo protector sobre os soldados que iam pelejar para alargar os limites do império da Cruz; e todos com grande entusiasmo cantaram o Exurge Domine ("Levanta-te, Senhor, e julga a Tua própria causa").

Parecia uma reunião de mártires dispostos a dar as vidas em defesa da fé, e não um licencioso bando de aventureiros preparando um dos mais atrozes actos de perfídia recordados pela História.

Sem embargo, fossem quais fossem os defeitos dos cavaleiros castelhanos, eles não possuíam o da hipocrisia. Estavam perfeitamente convencidos de que pelejavam pela cruz, e esta convicção, ainda mais exaltada naquele momento, não lhes deixava espaço para pensarem noutros motivos eventualmente menos nobres. Os soldados de Pizarro, deste modo inflamados de ardor religioso, esperavam impacientes a chegada do Inca; e o seu chefe viu com satisfação que eles não faltariam, na hora crítica, com aquilo que deviam ao seu capitão e a si mesmos.






Já ia adiantado o dia quando se observaram movimentos no campo peruano, onde se realizavam grandes preparativos para se acercarem dos cristãos com toda a ostentação e cerimónia. Recebeu-se uma mensagem de Atahualpa, o Inca, informando o chefe espanhol de que iria visitá-lo armado, com os seus guerreiros, tal como os espanhóis tinham ido ao seu acampamento na noite anterior. A notícia não era muito agradável para Pizarro, ainda que não tivesse motivos para esperar o contrário. Mas opor-se ao propósito de Atahualpa faria com que este desconfiasse dos seus desígnios. Manifestou-lhe portanto a sua satisfação, assegurando ao Inca que, viesse ele como viesse, ele, Pizarro, recebê-lo-ia como amigo e irmão.

Já era meio-dia quando a comitiva dos índios se pôs em marcha, ocupando larga extensão da calçada. À frente vinha uma multidão de servos, cuja incumbência parecia consistir em limpar o caminho de qualquer vestígio de sujidade. Acima da tropa sobressaía o Inca, levado de liteira aos ombros dos seus principais nobres, enquanto outros da mesma categoria marchavam de ambos os lados, ostentando ornamentos tão brilhantes em suas pessoas que, segundo o dito de um dos conquistadores, reluziam como o sol. Mas a maior parte das tropas do Inca estavam formadas pelos campos, de um e de outro lado do caminho, ou espalhadas pelos prados extensos até perder de vista.

A real comitiva fez alto quando chegou a cerca de meia milha da cidade, e Pizarro viu com surpresa que Atahualpa se aprestava para mandar erguer as suas tendas, como se quisesse montar ali o seu acampamento. Logo chegou um mensageiro para anunciar aos espanhóis que o Inca permaneceria durante aquela noite no sítio onde se havia detido, e que na manhã seguinte faria a sua entrada na cidade.

Esta notícia desagradou muito a Pizarro, que compartilhava da impaciência generalizada da sua gente ao ver a lentidão com que se movimentavam os peruanos. As tropas mantinham-se em armas desde o amanhecer, as de cavalaria montadas em seus cavalos, as de infantaria nos seus postos, aguardando em silêncio a chegada do Inca. Reinava uma profunda calma em toda a cidade, somente interrompida, de quando em quando, pelo grito da sentinela que do ponto mais elevado anunciava os movimentos do exército índio. Pizarro tinha consciência de que não há nada mais perigoso para a disposição combativa e a constância de ânimo do soldado do que a inacção prolongada numa situação crítica como aquela; e temia que se evaporasse o ardor das suas tropas, sucedendo-lhe aquela sensação nervosa, natural até nos espíritos dos mais destemidos em tais instantes de crise, e que se não é temor anda lá por perto. Respondeu então rogando a Atahualpa que mudasse de propósito, acrescentando que tinha tudo preparado para o receber e obsequiar e que o esperava para cear naquela mesma noite.



Esta mensagem fez com que o Inca mudasse de intenções. Desarmando as tendas mandou retomar a marcha, avisando primeiro a Pizarro de que iria deixar naquele ponto a maior parte dos seus guerreiros e de que entraria na praça apenas acompanhado de alguns deles, pois preferia passar a noite em Caxamalca. Ao mesmo tempo ordenou que se preparasse alojamento para ele e para a sua comitiva num dos grandes edifícios de pedra da cidade, o qual, por ter a figura de uma serpente esculpida na parede, era conhecido como A Casa da Serpente. Nenhuma notícia poderia ter sido mais agradável para os espanhóis do que esta. Parecia que o monarca índio ansiava por precipitar-se em direcção ao laço que se lhe tinha preparado. O fanático comandante não pôde deixar de ver nisto o dedo da Providência. (...) Atahualpa, por seu turno, procedia cheio de confiança e de boa-fé. Ele era detentor de um poder tão absoluto no seu império que jamais poderia suspeitar de um ataque à sua pessoa. Talvez não pudesse imaginar que um pequeno grupo de homens, reunidos em Caxamalca, tivesse a audácia de pensar em apoderar-se de um poderoso monarca no meio do seu próprio exército. Ele não conhecia o carácter espanhol.

Pouco faltava para o pôr-do-sol quando a vanguarda da comitiva real transpôs as portas da cidade. À frente vinham as centenas de servos incumbidos da limpeza do percurso e de entoar cânticos de triunfo que aos ouvidos dos conquistadores, segundo um deles, soavam como canções do inferno. Depois marchavam outras companhias de índios de diferentes classes, cobertos de indumentárias variadas. Alguns cobriam-se de vistosos tecidos brancos, coloridos como as casas de xadrez. Outros seguiam todos de branco, empunhando martelos e maças de prata e cobre. Sobressaindo entre os seus vassalos via-se o Inca Atahualpa, no cimo de umas andas em que havia uma espécie de trono de ouro maciço, de inestimável valor. O palanquim, guarnecido de chapas de ouro e prata, apresentava-se coberto das brilhantes plumas dos pássaros tropicais. Os adornos do monarca eram muito mais ricos do que os da noite precedente. Pendia do seu pescoço um colar de esmeraldas de brilho e tamanho extraordinários. O aspecto do Inca era grave e majestoso; e do alto mirava a multidão com o ar tranquilo de um homem acostumado a mandar.

Ao entrarem as primeiras filas da procissão na vasta praça (que, segundo um antigo cronista, era muito maior do que qualquer outra em Espanha), a multidão apartou-se à direita e à esquerda de maneira a deixar caminho livre à comitiva real. Tudo se fez com ordem admirável. Permitiu-se ao monarca atravessar a praça em silêncio e nem um único espanhol se deixou avistar. Logo que entraram cinco ou seis mil homens, Atahualpa mandou fazer alto e, lançando em todas as direcções uns olhares cheios de curiosidade, perguntou: Onde estão os estrangeiros?
Naquele momento, frei Vicente de Valverde, religioso dominicano, capelão de Pizarro, e mais tarde bispo de Cuzco, apareceu com o seu Breviário, ou, segundo dizem outros, com a Bíblia numa mão e um crucifixo na outra. Aproximando-se do Inca disse-lhe que vinha por ordem do seu chefe explicar-lhe as doutrinas da verdadeira fé, objectivo com o qual os espanhóis tinham chegado ao país a partir de tão longe.

Depois passou a explicar-lhe o mais claramente que pôde o mistério da Santíssima Trindade e, referindo-se em seguida à criação do Homem, falou da sua queda, da sua redenção por Jesus Cristo, da crucificação e da ascensão do Salvador aos céus, depois de haver deixado o apóstolo Pedro por seu vigário na terra. Contou-lhe como os poderes concedidos por Jesus Cristo ao seu vigário haviam sido transmitidos aos sucessores daquele apóstolo, homens sábios e virtuosos que, sob o título de "papas", exerciam autoridade sobre todos os tronos e potentados da terra.

Manifestou-lhe que um dos últimos papas havia incumbido o imperador espanhol, o monarca mais poderoso do mundo, de conquistar e converter os naturais daquele hemisfério ocidental; e que o seu general, Francisco Pizarro, havia chegado para cumprir tão importante missão. Terminou pedindo-lhe que desistisse dos erros da sua fé e abraçasse a dos cristãos, a única que lhe podia salvar a alma. E que se reconhecesse tributário do imperador Carlos V, o qual em todo o caso o auxiliaria e protegeria como a um leal vassalo.

Pode duvidar-se de que Atahualpa, o Inca, tivesse entendido algum dos curiosos argumentos com que o religioso pretendeu estabelecer uma relação entre Pizarro e São Pedro. Mas é indiscutível que compreendeu perfeitamente que a finalidade do discurso consistia em persuadi-lo de que devia renunciar ao seu poder e reconhecer a supremacia de outro.

Cintilaram os olhos do monarca índio ao ripostar: Não quero ser tributário de nenhum homem, eu sou mais importante do que qualquer príncipe da terra. O vosso imperador pode ser um grande príncipe, não duvido disso, pois verifico que conseguiu enviar os seus vassalos de tão longe, através dos mares, e por isso mesmo desejo tratá-lo como irmão. Quanto ao papa de que me falas, ele não deve estar bom para tratar de dar reinos que não lhe pertencem. Quanto à minha religião, não pretendo desistir dela. O vosso Deus, segundo dizes, foi condenado à morte pelos mesmos homens que tinha criado. Mas o meu (acrescentou, apontando a sua divindade que então se escondia por trás dos montes) o meu vive ainda nos céus e é dali que vela pelos seus filhos.

Depois perguntou a Valverde com que autoridade lhe dizia aquelas coisas, ao que o frade respondeu exibindo-lhe o livro que tinha na mão. Atahualpa pegou no livro, percorreu algumas páginas e, sem dúvida irritado pelo insulto que havia recebido, atirou-o ao chão, para longe de si, exclamando: Diz aos teus companheiros que me darão conta das suas acções nos meus domínios, e que não me irei embora sem ter obtido plena satisfação dos agravos que me fizeram. O frade, altamente escandalizado pelo ultraje feito ao Livro Sagrado, apanhou-o do chão e correu a informar Pizarro do que o Inca tinha feito, exclamando ao mesmo tempo: Não vedes que enquanto estamos aqui perdendo tempo a falar com esse cão cheio de soberba, os campos vão-se enchendo de índios. Ide-vos a ele, que eu vos absolvo.

Pizarro compreendeu que havia chegado a hora. Agitou uma bandeira branca no ar, que era o sinal combinado. Logo soou o tiro fatal e, então, saindo o capitão e os seus oficiais para a praça, lançaram o antigo grito de guerra: Santiago! A eles!, o qual foi respondido pelo grito de combate de todos os espanhóis que se achavam na cidade, os quais saíram impetuosamente dos grandes salões em que se achavam escondidos e invadiram a praça com a cavalaria e a infantaria em coluna cerrada, arrojando-se contra a multidão de índios. Estes, colhidos de surpresa, atordoados pelo estrondo da artilharia e dos arcabuzes, cegos pelo fumo que em colunas sulfurosas se espalhava pela praça, encheram-se de terror e não sabiam por onde fugir para evitar o fim que adivinhavam próximo.




Nobres e plebeus caíram sob as patas dos cavalos, cujos donos distribuíam golpes à direita e à esquerda sem poupar ninguém. As suas espadas, rebrilhantes através da densa nuvem de fumo, lançavam o desalento nos corações dos desditosos índios, que testemunhavam pela primeira vez as terríveis manobras da cavalaria. Foi assim que não opuseram resistência, nem tão pouco possuíam armas para o fazer. Não tinham possibilidade de escapar, porque a entrada da praça se achava obstruída pelos corpos dos que tinham perecido durante a vã tentativa de fuga. E tal era a agonia dos vivos ante o terrível ataque, que uma multidão de índios, em seus esforços convulsivos, rompeu através de um muro de pedras e barro seco no qual abriram uma brecha de mais de cem passos, pela qual se escaparam para o campo, perseguidos todavia pela cavalaria que, galgando por sobre os escombros do muro derrubado, caiu sobre os fugitivos - matando os que pôde e dispersando os outros em todas as direcções.

O monarca índio, aturdido e cercado, viu cair em seu redor os seus mais fiéis vassalos sem compreender o que se estava a passar. A liteira em que se fazia transportar andava de um lado para o outro consoante os agressores acometiam por aqui ou por ali. E ele contemplava aquele espectáculo de desolação como um marinheiro solitário que, acossado na sua barca pelos elementos furiosos, vê brilhar os relâmpagos e soar os trovões com a convicção de que nada pode fazer para evitar a sua sorte.

Os espanhóis, por fim, cansados da sua obra de destruição e vendo que aumentavam as sombras da noite, temeram que a sua régia presa se lhes escapasse depois de tão grandes esforços; e alguns cavaleiros tentaram desesperadamente concluir de vez a tarefa, tirando a vida a Atahualpa. Mas Pizarro, que estava por perto, gritou bem alto: Que se guarde de tocar no Inca quem tenha estima pela própria vida! E, estendendo o braço para protegê-lo, foi ferido na mão por um dos seus soldados, ferida essa que foi a única sofrida pelos espanhóis durante o ataque.

Então a peleja redobrou de fúria em torno da régia liteira, a qual se sacudia cada vez mais até que, mortos muitos dos nobres que a sustinham, o Inca correu o risco de tombar brutalmente no solo. Pizarro e alguns dos seus acudiram a ampará-lo nos braços, evitando a queda. As insígnias imperiais foram imediatamente arrancadas a Atahualpa e o desgraçado monarca foi transferido para um edifício próximo onde ficou apertadamente vigiado.
Cessou então toda a tentativa de resistência.

A notícia da captura do Inca espalhou-se pela cidade e pelos campos, dissolvendo-se o encanto que poderia manter unidos os peruanos. Cada um pensou somente na própria salvação. Soou também o alarme entre os soldados índios acampados nas imediações, os quais, ao saber da fatal notícia, deitaram a fugir por todos os lados, perseguidos pelos espanhóis que, no arrebatamento do triunfo, se mostraram sem misericórdia. Por fim a noite, mais piedosa do que os homens, estendeu um manto protector sobre os fugitivos, e as tropas dispersas de Pizarro reuniram-se outra vez, ao toque das trombetas, na praça sangrenta de Caxamalca."

As continuações de "Pizarro e a Conquista Espanhola do Peru" serão publicadas nas seguintes datas:

               - 2.ª parte - 14-Fevereiro-2019 (ver aqui)
               - 3.ª parte - 21-Fevereiro-2019 (ver aqui)
               - 4.ª parte - 28-Fevereiro-2019 (ver aqui)

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

FIALHO DE ALMEIDA - A vida boémia de Lisboa, as patuscadas e a descoberta das Índias na Avenida da LIberdade

Fialho de Almeida quando jovem (por Columbano Bordalo Pinheiro)

Em Março de 1917, assinalando a passagem do 6.º aniversário da morte do escritor português Fialho de Almeida (1857-1911), amigos e admiradores seus produziram um conjunto de testemunhos sobre a sua vida e a sua obra e publicaram-nos em Fialho de Almeida, In Memoriam.
Homenageavam desse modo o talentoso autor de Os Gatos, Lisboa Galante, O País das Uvas, Galiza, Aves Migradoras, etc.
Transcreve-se o contributo de Álvaro Cabral (com actualização ortográfica):


"O saudoso Fialho de Almeida, escritor de requintado estilo, merecidamente respeitado pelos encantos das suas obras, não foi só o autor de tanta coisa bela da literatura moderna. Não. O nosso querido amigo foi também - sem desfazer em quem está presente — um pitoresco boémio, se não incorrigível, pelo menos admirável.

Assim o juro pelo grau da minha vida alegre de outrora.

E, justamente por me ter cabido a subida honra de haver confraternizado com o brilhante autor da Vida Irónica em diversas estúrdias algo turbulentas e sacudidas de todo o recato e de toda a pacatez, me apraz descrever in memoriam um dos muitos episódios ratões passados com ele em altas noites, que Deus tenha em sua santa glória.

Foi pelo Centenário da Índia, durante as festas em Lisboa.

Eram três da madrugada. Tínhamos acabado de cear no Conde de Almada, ele – Fialho -, D. João da Câmara, Figueiredo «Pintorinhos», Óscar da Silva, Augusto Pina, Henrique Alves, Chaby Pinheiro, Teixeira Marques, Luís Galhardo, Manuel Penteado o este vosso muito criado e respeitador sincero.

A suculenta refeição, que constou de dobrada com vidrilhos — especialidade da casa - pescadinhas de Sesimbra, queijinhos de Tomar, azeitonas de Elvas, laranjas de Setúbal, bananas da Ilha, muito vinho do Cartaxo, pão de farinha de trigo e seis quartos de marmelada de Odivelas para o Chabyzinho, que os mamou a todos com a mesma alegria com que as criancinhas chucham os bombons de chocolate, custou, recordo-me como se fosse ontem, a módica quantia de três mil quatrocentos e quarenta réis da «monarquia», que foram repartidos pelos onze comensais, cabendo, ou a matemática é uma batata, dezassete vinténs por cabeça, com sifão, gorjeta e tudo. (…)


Vasco da Gama perante o Samorim, na Índia (por Veloso Salgado)
 
Mas vamos ao episódio.
Tínhamos acabado de cear, como lhes disse, e partimos, Portas de Santo Antão acima, metemos à rua do Jardim do Regedor, tomámos a Avenida da Liberdade e fomos até à frente do teatro. Aí parámos e sentámo-nos; uns no assento do banco, outros nas costas e alguns no chão.
E o que imaginam os meus amigos que divertimento nos acudiu à lembrança, para moer a dobrada com vidrilhos, as pescadinhas marmotas, os queijinhos de Tomar e o muito vinho do Cartaxo?
Não imaginam com certeza. Mas eu lhes digo. Preparámo-nos todos para representar!
Mas para representar o quê – perguntarão –, naquele sítio e àquela hora?
Nada mais nada menos do que A chegada de Vasco da Gama à índia, reproduzindo quanto possível o célebre quadro de Veloso Salgado exposto na sala da Sociedade de Geografia!

Arregaçámos as calças até aos joelhos a fingir calções, pusemos os chapéus de pernas para o ar, isto é, de copa para baixo, e dispusemo-nos heroicamente à exibição do drama histórico.
A D. João da Câmara distribuímos o papel de Samorim; aos actores, os escravos; aos amadores, os marinheiros da nau; e a Fialho de Almeida o grande protagonista, D. Vasco da Gama, por saber de cor as estrofes.
A mise-en-scène de Augusto Pina, estava um primor. (…)
Já se tinha dado o terceiro sinal para subir o pano, quando subitamente nos surge por detrás duma atarracada palmeira um vulto negro que não constava da marcação da peça.
Demorou-se um pouco o começo do espectáculo esperando o vulto que entrava pela cena dentro sem licença do contra-regra.

O velho Fialho de Almeida (por António Carneiro)

Quem era o inoportuno?
Ora quem havia de ser? – o polícia de serviço!
Acercou-se do grupo, e vendo que aquela mascarada transitava sem licença do Governo Civil, inquiriu:
Que vem a ser isto, meus senhores?
Isto!, respondeu Fialho, isto! Dobre a língua…
Isto, quer dizer, este ajuntamento…
Ah, agora sim! — E, com voz de pregoeiro, declamou: A chegada de Vasco da Gama à índia. Peça de Marcelino de Mesquita com música de Óscar da Silva e desempenhada pelo Beijinho da Arte de Representar em Portugal.
—Ah!!!
Vai daí, perguntei eu: — O senhor guarda não estava avisado deste ensaio geral?
Eu não senhor!
O quê? Não estava prevenido?
Juro por alma de minha mãe que não estava.
Pois amanhã — acrescentou o Chaby, de modo colérico — vamos ao sr. major Dias... E você terá como castigo o enfileirar-se de novo no seu regimento de infantaria.
Mas, meus senhores — balbuciou o guarda, deveras atarantado — eu não vou contra as ordens do sr. Major. Se ele autorizou, manda quem pode. Podem começar. O que lhes peço é licença para presidir ao espectáculo no meu lugar de autoridade, e o favor de me apresentarem ao sr. Samorim. Pode ser?

Ora essa, com todo o gosto — disse-lhe o Chaby, muito satisfeito.
Ou quer o senhor entrar na peça? — perguntou-lhe o Teixeira Marques, arregalando risonho os seus grandes olhos negros.
Entrar na peça? Eu? Mas a fazer de quê?
De quê? De escravo — replicou o Fialho.
De escravo?!
Pois que papel quer você fazer sem ter ensaiado nada?
Tem razão, tem razão. Pois muito bem, vamos a isso.
Aqui. Coloque-se aqui — ordenou o Fialho ao guarda, metendo-lhe na mão um guarda-chuva. — Faça de conta que isto é uma umbela. Cubra-me.
O guarda abriu o chapéu.
Pode começar? — perguntou o Óscar.
Pode - respondeu-se em coro.
Então o Fialho, armado em D. Vasco da Gama, desenhou-se em frente de D. João da Câmara, que estava sentado a fazer de Samorim, mas que naquele momento mais nos dava a impressão de um médico alienista do que dum Vice-rei, e começou:

E se queres com pactos, e lianças
De paz, e de amizade sacra e nua (…)

Findas as estrofes do imortal cantor das nossas glórias, os aplausos ecoaram por toda aquela imensidade.
O polícia atirou com a umbela ao meio do palco, caiu nos braços do famoso intérprete e qual não foi o nosso espanto quando ele se declarou também amador dramático e nos pediu que o ouvíssemos recitar O Escravo!
Abraçámos a ideia e Galhardo gritou:
- É para já! Rapazes, atenção.
O polícia, então, colocou o boné sobre o banco, tomou atitudes grotescas e desatou a recitar com voz de estentor:

Tremes, escravo, branqueias
Entre os muros da prisão!

Mas o desventurado guarda e furioso dramático não logrou fazer-se ouvir pela assistência, porque ainda bem não tinha acabado o segundo verso, apareceu-lhe por detrás da mesma palmeira o cabo da ronda, que lhe disse:
Amanhã, amanhã te darei as grades da prisão, meu idiota. Tudo já daqui p'ra fora e . . . tableau! Pano abaixo!

No dia seguinte fomos em comissão pedir o perdão do Escravo, e o nosso pedido foi deferido."

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Melodias Eternas



Canção -  Hymne à l'Amour (Hino ao Amor)
Intérprete - Edith Piaf. Nasceu em Paris, a 19 de Dezembro de 1915. Faleceu em Plascassier, em 10 de Outubro de 1963 (47 anos).
Autores - Música: Marguerite Monnot; Letra: Edith Piaf.
Vídeo de - ced
Pesquisa e apresentação - Albina de Castro.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

PENSÃO FAMILIAR



Jardim da pensãozinha burguesa.
Gatos espapaçados ao sol.
A tiririca sitia os canteiros chatos.
O sol acaba de crestar as boninas
que murcharam.
Os girassóis
amarelo!
resistem.
E as dálias,
rechonchudas,
plebéias,
dominicais.
Um gatinho faz pipi.
Com gestos de garçom de restaurant-Palace
encobre cuidadosamente a mijadinha.
Sai vibrando com elegância a patinha direita: —
É a única criatura fina
na pensãozinha burguesa.
 
Autor : Manuel Bandeira - Brasil (n. 1886 - f. 1968)
Nota: Tiririca – planta herbácea do Brasil

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

O SONO DO ALUNO


O professor disserta sobre ponto difícil do programa.
Um aluno dorme,
Cansado das canseiras desta vida.
O professor vai sacudi-lo?
Vai repreendê-lo?
Não.
O professor baixa a voz,
Com medo de acordá-lo.

(Carlos Drummond de Andrade - Brasil)

sábado, 12 de janeiro de 2019

MARI SAMUELSEN (Vivaldi - As Quatro Estações - "Verão")

Violinista Mari Samuelsen - Nasceu na Noruega em 21 de Dezembro de 1984.
Toca um violino Guadagnini de 1773. Tecnicamente brilhante. E empolgante.

(Vídeo publicado por Tor Melgalvis)

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Saudando o Novo Ano

  
… com este sublime Flashmob mexicano na Plaza Mayor de Madrid.
A primeira peça executada é o célebre "Huapango", de José Pablo Moncayo (1912-1958), uma espécie de segundo hino nacional do México.
A outra peça é o conhecidíssimo "Guadalajara, Guadalajara".
(O vídeo é de Alejandro Fernández).



Neste evento participaram 11 integrantes do Mariachi Real de México e 23 músicos da Film Symphony Orchestra. O director musical foi Alejandro Fernández, que fez os arranjos e adaptações das duas peças referidas.