segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Greta Thunberg - Personalidade do Ano 2019 (Revista TIME)

Greta Thunberg - O Poder da Juventude

Greta Thunberg ficou alguns dias em Lisboa, após três semanas a atravessar o Atlântico num catamarã. Para descansar e não só.
A fotografia de capa da “Time” sobre a ativista pelo clima, eleita pelos editores da revista “Personalidade do Ano 2019”, foi tirada numa praia de Lisboa, não identificada, durante a estada da ativista na capital portuguesa.
Em entrevista à publicação, a fotógrafa Evgenia Arbugaeva explica o processo complexo da fotografia, que teve como objetivo captar a essência da jovem de 16 anos.

“Quando a 'Time' me pediu para fotografar a Greta, pensei logo como podia tirar um retrato que combinasse gentileza e ao mesmo tempo coragem. Não foi uma tarefa fácil”, confessou Evgenia Arbugaeva que cresceu na zona ártica russa.
A imagem foi tirada a 4 de dezembro passado, um dia após a chegada da ativista a Lisboa, mas dois dias antes a fotógrafa esteve em Lisboa à procura de uma praia perfeita para o retrato.

“Um dia encontrei uma praia calma, quase deserta, apenas com alguns pescadores. Pensei que era o local perfeito, uma vez que considerei que era importante ter privacidade porque há sempre multidões onde quer que Greta esteja”, observou.

Durante o processo, a fotógrafa começou a criar uma espécie de esboço com referências de artistas como Botticelli, Monet ou a mitologia nórdica. O propósito era captar uma imagem inspiradora e que ao mesmo tempo refletisse o espírito da jovem ativista, que chegou ao local da foto a bordo de um carro elétrico da Tesla.

As condições climatéricas ajudaram o processo, segundo a fotógrafa, que disse que tudo conspirou a favor da 'chapa perfeita'.
“Durante o pôr do sol, o céu ficou colorido com as cores de um rosa dourado que criou uma linda luz, a maré subiu e as ondas começaram a chegar até ela. A Greta permaneceu parada sem se mexer, apenas alguns fios de cabelo dela flutuaram entre a brisa suave”, recordou Evgenia Arbugaeva.
“Nesse momento senti que todos os elementos da natureza e as forças estavam alinhados para criar magia – o maior tesouro para um fotógrafo”, concluiu.

Três dias depois, Greta Thunberg partiu com o pai num comboio rumo a Madrid para participar na Cimeira Mundial do Clima (COP25), organizada pelas Nações Unidas.
Esta quarta-feira [11-Dez-2019], a jovem ativista discursou no evento e manifestou “esperança” na força da sociedade para lutar contra as alterações climáticas.
[Jornal Expresso, Lisboa, Portugal - 11-Dez-2019]
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Discurso completo de Greta Thunberg na Cimeira Mundial do Clima
(Madrid - 11-Dez-2019)
(Legendas em português)

sábado, 28 de dezembro de 2019

DRAMA NA FAMÍLIA REAL - As conspirações contra D. João II, rei de Portugal (2)

Iluminura do "Livro dos Copos".
Pensa-se que a figura representa D. João II.

Continuação da 1.ª Parte - aqui 

A Conspiração do Duque de Bragança

João Afonso, vedor da fazenda do duque de Bragança - e incumbido por este de recolher em Vila Viçosa os documentos justificativos das suas posses, honras e privilégios -, parece ter encarado as ordens do amo com descuido e displicência. Com efeito, em vez de tratar ele próprio do assunto, encarregou um filho de o fazer.
Munido da chave do cofre secreto do duque, o rapaz viu-se perante pilhas de documentos pouco ou nada organizados, o que lhe fez antever a dificuldade da tarefa que tinha entre mãos. Lembrou-se então de solicitar auxílio a um escrivão da Casa de Bragança, Lopo de Figueiredo, que acedeu prestimosamente ao pedido.

Lopo de Figueiredo, que jamais tivera acesso àquele cofre, foi analisando em pormenor os documentos. E, de repente, sobressaltou-se: entre a papelada havia originais e rascunhos de cartas trocadas entre o duque de Bragança e os reis de Castela (Isabel e Fernando), em termos tais que o escrivão logo suspeitou de traição para com o seu rei.
O duque prometia lealdade aos monarcas castelhanos e garantia-lhes que seria, na corte portuguesa, um fiel e empenhado defensor dos seus interesses. A correspondência parecia ter-se iniciado em 1480, portanto ainda antes da subida de D. João II ao trono, e prolongava-se até à actualidade.
A Lopo de Figueiredo tudo aquilo pareceu tão estranho como suspeito, sobretudo se se pensar que Portugal saíra muito recentemente de uma guerra com Castela (a que o Tratado das Alcáçovas pusera termo, em 1479).

Lopo de Figueiredo arranjou maneira de retirar dissimuladamente as cartas sem que o filho do vedor João Afonso se apercebesse disso. Depois de as examinar mais detidamente em casa, resolveu levá-las ao conhecimento de D. João II. O rei analisou os documentos e chamou o seu camareiro Antão de Faria para que os copiasse imediatamente. Depois ordenou a Figueiredo que os devolvesse ao cofre de onde haviam saído. O escrivão assim fez nos dias seguintes, em que continuou a "ajudar" o filho do vedor na sua tarefa. Durante esse espaço de tempo, demonstrou um refinado talento para a espionagem: efectuou novas descobertas de material suspeito e apressou-se a levá-lo a D. João II.

O rei português, valendo-se dos préstimos de Lopo de Figueiredo e das investigações, mais amplas, dos seus serviços secretos, não tardou a ter diante dos olhos um quadro bastante credível da conspiração em curso. Ela envolvia, para além dos Braganças, outros vultos importantes da nobreza. O próprio irmão da rainha, D. Diogo, duque de Viseu, parece ter tido conhecimento do que se passava, desconhecendo-se, porém, nessa altura, qual o grau do seu envolvimento.
Há quem defenda que nem todos os irmãos do duque de Bragança (ainda que sabedores do que se passava) se achavam na disposição de trair o rei, embora nenhum deles lhe fosse especialmente dedicado. Mas não restam quaisquer dúvidas em relação a um deles, o marquês de Montemor, que chegou a escrever aos monarcas castelhanos para que lhe enviassem um exército de 4000 lanças para derrubar D. João II e colocá-los, a eles, no trono português.
Prudentes, Isabel de Castela e Fernando de Aragão respondiam com cautelas e evasivas a estes convites. Conheciam a têmpera de D. João II e não desejavam comprometer-se irremediavelmente numa aventura de consequências imprevisíveis.

D. Fernando, 3.º Duque de Bragança

Antes da consumação da tragédia, o rei de Portugal levou a cabo uma iniciativa - aparentemente sincera - para fazer parar pacificamente as manobras dos seus inimigos. Nos princípios de 1483, em Almeirim, chamou à parte o duque de Bragança e fez-lhe um longo discurso sobre a sua importância - dele, duque - para a sustentação da Coroa e sobre os deveres de lealdade que isso acarretava. Ele era o braço direito do rei, disse D. João, e devia comportar-se como tal. Segundo os cronistas, o monarca não foi inteiramente claro sobre os factos de que já tinha conhecimento, limitando-se a aludir, vagamente, a alguns modos e maneiras que o duque vinha adoptando para com Castela.

Foi um aviso, e um aviso sério, mas o duque não o entendeu assim. Convencido de que os papéis comprometedores se mantinham a bom recato no cofre de Vila Viçosa - que ele supunha inviolável - olhou despreocupadamente para o rei e respondeu-lhe que ninguém, mais do que ele, tinha a noção dos seus deveres de súbdito fiel. E deste modo se separaram, diz-se que amáveis e sorridentes, para seguirem os seus caminhos: um prosseguiria com as maquinações conspiratórias; o outro continuaria, com os seus espiões e delatores, a preparar o momento da investida final.

D. Fernando, duque de Bragança, incorreu a seguir, com os seus irmãos, num erro de avaliação fatal. Numa reunião que tiveram em Vimioso, os quatro concluíram que aquelas palavras do rei só poderiam significar que ele temia o poder da Casa de Bragança, bem como as relações que esta conseguira estabelecer com Castela. Num outro encontro, próximo de Évora, comprometeram-se a auxiliar-se uns aos outros contra qualquer inimigo - especialmente o rei.
Na sombra, D. João II ia tendo notícia, por delações várias, destes encontros e combinações. Mas continuava a esperar o momento propício. Durante largo espaço de tempo, ele não se achou em condições de agir, pois receava pela sorte do seu único filho legítimo, o herdeiro do trono.

Com efeito, na sequência do Tratado das Alcáçovas, o pequeno Afonso fora entregue, juntamente com uma filha dos reis de Castela, como penhor de que a paz seria mantida entre os dois reinos (foram as chamadas Terçarias de Moura, porque era em Moura, Alentejo, longe dos pais, que as crianças se encontravam).
Compreende-se, por isso, que o rei português tenha feito tudo para anular aquelas Terçarias e para ter de novo o herdeiro na sua companhia. Quando isso ocorreu, D. João II actuou de modo fulminante. No dia 30 de Maio de 1483, aproveitando uma visita que o duque de Bragança lhe fizera em Évora, ordenou a sua detenção. O preso, estupefacto, foi, todavia, tratado com respeito, continuando a gozar das regalias devidas à sua elevada condição. Mas sabia que estava perdido. Quando Aires da Silva, um dos camareiros do rei, lhe disse, para o consolar, que tudo acabaria em bem, o duque respondeu-lhe sombriamente: Senhor Aires da Silva, um homem como eu não se prende para soltar.

Praça do Giraldo, em Évora, Portugal.
Local da execução do duque de Bragança.

Na noite desse mesmo dia foram enviados oficiais do rei às vinte e cinco localidades fortificadas pertencentes ao duque de Bragança, e todos os respectivos alcaides acataram sem resistência a ordem de rendição. Simultaneamente, expediram-se ordens de prisão contra dois dos irmãos do duque - o marquês de Montemor e o conde de Faro -, mas ambos arranjaram forma de se escapar para Castela. O outro irmão - o chanceler D. Álvaro - foi deixado em liberdade.
Assustada com a detenção do marido, a jovem duquesa de Bragança (D. Isabel, que era irmã da rainha D. Leonor, esposa de D. João II) tratou de mandar os três filhos pequenos para Castela, onde, tal como sucedeu com os outros fugitivos, foram recebidos de braços abertos pela família real.

O duque de Bragança foi julgado por um tribunal, em Évora, segundo os processos legais em uso. Foram convocados os juízes mais competentes do reino. Dois doutores de leis representaram o rei, e outros dois encarregaram-se da defesa do preso. Mas a acusação, contida em vinte e dois artigos, revelou-se esmagadora, oferecendo escassa margem de manobra à defesa. Perante a leitura da acusação, o duque mostrou alguma perturbação ao ouvir pronunciar em voz alta coisas que ele supunha ocultas e seguras no cofre de Vila Viçosa. De qualquer modo, ele jamais negou, durante o processo, qualquer das acusações - e, logicamente, nunca se afirmou inocente. Por fim, chegou-se à sentença: D. Fernando foi condenado a morrer degolado na praça da cidade de Évora, perdendo todos os seus bens patrimoniais em favor da Coroa.

No dia 20 de Junho de 1483, viveu-se o derradeiro acto do drama. O duque de Bragança foi conduzido a uma casa, na praça da cidade, de onde partia uma ponte de madeira que dava acesso a um cadafalso coberto de panos negros. O condenado aparentava serenidade e conformação. Almoçou figos e vinho, dormiu um pouco e, ao despertar, ditou as últimas vontades.
Vieram então buscá-lo para o conduzirem ao terrível fim. Puseram-lhe uma capa negra pelas costas, amarraram-lhe os dedos ao cinto com uma fita e guiaram-no, pela ponte de madeira, até ao cadafalso.

Na praça apinhada de gente soou então a proclamação da sentença (Justiça que manda fazer nosso senhor, El-Rei…). 
O carrasco - um vulto mascarado e vestido de luto pesado - pediu respeitosamente perdão ao duque e ajudou-o a pôr-se em posição no cepo. Depois, tirou um machado brilhante de sob a capa e, de um só golpe, decepou a cabeça do condenado.
Conta-se que o rei, que aguardava no seu paço de Évora, caiu de joelhos quando ouviu dobrar a finados o sino da igreja. Rezemos pela alma do duque, terá ele dito a alguns cortesãos que o acompanhavam. Conservou-se muito tempo ajoelhado e, enquanto rezava, dizem alguns que o viram chorar.
Mas D. João II não conseguira ainda livrar-se de todos os seus inimigos.

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(Conclui em 4 de Janeiro de 2020 - 3.ª Parte - ver aqui)

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

domingo, 22 de dezembro de 2019

Feliz Natal (com Elina Garanca, Mascagni e Adam)


Elina Garanca - Ave Maria (de Pietro Mascagni):



Elina Garanca - Cantique de Noël (de Adolphe Adam):

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

DRAMA NA FAMÍLIA REAL - As conspirações contra D. João II, rei de Portugal (1)

Rei D. João II de Portugal

Enquadramento - Personagens principais

1 - D. João II, que foi chamado "o Príncipe Perfeito", nasceu em 3 de Maio de 1455 e faleceu em 25 de Outubro de 1495.
Foi filho do rei D. Afonso V e da rainha D. Isabel (filha do regente D. Pedro, 1.º duque de Coimbra).
D. João II era bisneto de D. João I, mestre de Avis, que, com Nuno Álvares Pereira, derrotou os Castelhanos na batalha de Aljubarrota e assim garantiu a continuidade da independência portuguesa.

Reinou de 1481 até à data da morte. Na senda do infante D. Henrique (seu tio-avô), assumir-se-ia como o grande planeador e impulsionador dos Descobrimentos Portugueses. No reinado que se seguiu ao seu (o de D. Manuel I), Portugal chegaria à Índia (1498) e, oficialmente, ao Brasil (1500).

2 - Foi casado com a rainha D. Leonor, sua prima direita (ela era filha de um irmão do referido D. Afonso V: D. Fernando, duque de Viseu).

3 - D. Fernando, 3.º duque de Bragança, nasceu em 1430 e faleceu em 1483.
Era filho de Fernando, 2.º duque de Bragança, e neto de Afonso (1.º duque de Bragança) e da esposa deste, Beatriz Pereira de Alvim (filha de Nuno Álvares Pereira).
Este 1.º duque de Bragança era filho do rei D. João I (pelo que este foi também bisavô de Fernando, 3.º duque de Bragança).

4 - D. Diogo, 4.º duque de Viseu, irmão da rainha D. Leonor (portanto primo e cunhado do rei D. João II). Nasceu em 1451 e faleceu em 1484.

5 - D. Manuel, 4.º duque de Beja, irmão da rainha D. Leonor e de D. Diogo. Nasceu em 1469 e faleceu em 1521. Sucedeu como rei a D. João II, sendo no seu venturoso reinado, como antes se referiu, que se chegou à Índia e ao Brasil.

Rainha D. Leonor de Portugal (1458-1525)
Prima e esposa de D. João II
Irmã de D. Diogo e de D. Manuel

O pai, o filho e a nobreza

Quando, por morte de D. Afonso V, o seu filho D. João II ascendeu ao trono (1481), havia entre a nobreza portuguesa duas Casas que em poderio e riqueza quase se equiparavam à Casa Real: a de Bragança (encabeçada pelo duque D. Fernando)  e a de Viseu (encimada pelo duque D. Diogo).
D. Afonso V fora um rei generoso, até perdulário, para com a nobreza em geral e para com aquelas duas casas em particular. Distribuíra terras, rendas e títulos com tal largueza, que o filho terá desabafado que só lhe tinham ficado, para reinar, as estradas e os caminhos de Portugal.

Havia grandes diferenças de personalidade e de comportamento entre D. Afonso V e o seu sucessor. O primeiro era expansivo, alegre, sempre desejoso de agradar aos mais próximos. Dado a impulsos e irreflexões que ocasionavam por vezes consequências delicadas, possuía um fundo bom - mas sugestionável. A nobreza, afogada em riquezas e privilégios, e repartindo com ele uma larguíssima fatia de poder, aproveitava para o manipular, lisonjeando-o e tirando dele tudo quanto podia. Naturalmente, adorava-o.

D. João II era o oposto do progenitor: pouco dado a efusões, fechado, por vezes taciturno e reflexivo, decidia sempre pela certa. Havia nele, e na forma como convivia com os poderosos, algo de potencialmente ameaçador. A nobreza receava-o, temia-lhe o olhar enigmático, o jeito sombrio, os silêncios interrompidos por comentários directos e bruscos. D. João achava-se sobretudo muito convicto acerca do poder que entendia caber-lhe como rei.

A nobreza tivera já ensejo de verificar, ainda em vida de D. Afonso V, que aquele Príncipe, que um dia seria Rei, se transformaria provavelmente num grande problema quando subisse ao trono. Aconteceu isso no período em que D. Afonso V, ausente em Castela, resolvera confiar a regência do País ao filho, então com pouco mais de vinte anos: numa série de episódios, D. João deixara entrever aos nobres que o futuro deles poderia vir carregado de nuvens escuras.

D. João II no trono

Queixas contra a nobreza

D. João II, aclamado rei no final de Agosto de 1481, não perdeu tempo e marcou cortes para 12 de Novembro desse ano (em Évora, Alentejo). Esta data assinala o início do confronto decisivo entre o monarca e os grandes senhores que lhe ameaçavam o poder.

Nessas cortes, os representantes dos concelhos (que ali traziam as vozes do povo) apresentaram reclamações e queixas contra os abusos da nobreza. Obviamente, D. João II não ignorava a conjuntura que vinha dos reinados anteriores e, particularmente, do reinado de seu pai, mas convinha-lhe que a mesma fosse ali publicamente testemunhada.

O historiador Fortunato de Almeida (1869-1933) esboçou um quadro sintético, mas elucidativo, da situação.
Queixavam-se os povos, entre outras coisas, de que a administração da justiça escapava à autoridade do rei em muitas vilas e lugares. Os privilegiados chamavam a si os julgamentos de crimes e afastavam dos processos os oficiais régios a quem caberiam. Intrometiam-se até no tratamento dos crimes mais graves (que deveria pertencer aos juízes) e impediam as apelações ao rei.

Os poderosos da época procediam como costumam proceder os poderosos e detentores de recursos de qualquer tempo, quando soltos da trela do Estado e libertos do açaime das leis: guiados sobretudo pela ganância, abusam, exploram e imperam sobre a miséria e a desgraça dos indefesos.
Salvo raras excepções, os povos de então sofriam na pele toda a sorte de vexames e extorsões. Eram-lhes exigidos, a título de empréstimo, pão, vinho, dinheiro, ouro, prata, gados e outros bens - que nunca lhes eram pagos. Se alguns se atreviam a reclamar, metiam-nos em prisões. Se outros tinham coragem para recusar os empréstimos, prendiam-lhes as mulheres e os filhos até que cedessem.

Noutras ocasiões, certos privilegiados recolhiam os seus cereais nos celeiros e comiam do que tinham os lavradores, aos quais compravam os alimentos pelo preço que eles próprios fixavam. Depois, quando nas terras já havia faltas, abriam os celeiros para venderem, com lucro exorbitante, ao preço que mais lhes convinha.
Os abusos não ficavam por aqui. Por exemplo, homens do povo viam-se convocados para trabalhos braçais nas propriedades dos senhores, que nem os alimentavam nem lhes pagavam. Ou, quando pagavam, não chegavam à terça parte do que seria devido.

De tudo isto decorria que as mais importantes Casas da nobreza se achavam prósperas e poderosas, enquanto a Casa Real se debatia com a debilidade dos instrumentos de governo e a penúria das suas finanças.




Primeiros confrontos com a nobreza

As cortes de Évora representaram, portanto, o primeiro embate frontal entre o novo rei e os nobres, começando logo pelo juramento de fidelidade a que estes foram obrigados. D. João II mandara estudar e aprovara uma fórmula de juramento inovadora, que os senhores acharam demasiado rigorosa e humilhante: de facto, ela implicava a sujeição absoluta à figura régia, coisa a que nem de perto nem de longe estavam habituados. Mas, sem escapatória perante a férrea vontade do monarca, não tiveram outro remédio senão ajoelhar, colocar as suas mãos entre as mãos de D. João II e jurar como este quis que jurassem.

Seguidamente, e com algumas excepções, o rei deu ouvidos às queixas dos povos e resolveu mandar investigar o que se passava nos domínios dos nobres. Os seus oficiais deveriam examinar a legitimidade de todas as doações e privilégios concedidos ao longo dos tempos. Deveria ser também apurada em pormenor a forma como era administrada a justiça. E, de modo geral, deveriam ser postos a nu os abusos eventualmente cometidos contra os queixosos.

Estas disposições mereceram protestos dos senhores mais poderosos, com destaque para o duque de Bragança e para dois dos seus irmãos, o marquês de Montemor e o conde de Faro. O duque, em particular, supunha poder furtar-se às determinações do monarca. Dizia ele que, no seu paço de Vila Viçosa, dispunha dos títulos e documentos que o autorizavam a proceder como procedia e a possuir o que possuía.

E logo ordenou a João Afonso, bacharel em Leis e vedor da casa de Bragança, que se deslocasse àquela vila alentejana para recolher, no seu cofre particular, todos os papéis respeitantes a privilégios, honras e concessões feitas a ele próprio e aos seus antepassados pelos antigos reis. Logo que os tivesse, João Afonso deveria trazê-los a Évora para que fossem mostrados ao rei.
Sem que o suspeitasse, D. Fernando, 3.º duque de Bragança, tinha dado o primeiro passo em direcção a um fim terrível.

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(Continua em 28-Dezembro-2019 - aqui)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

No dia em que o gato falou (Emmanuel Vão Gôgo - Brasil)


Era uma vez uma dama gentil e senil que tinha um gato siamês.
Gato siamês!
Gato de raça, de bom-tom, de filiação, de ânimo cristão. Lindo gato, gato terno, amigo, pertencente a uma classe quase extinta de antigos deuses egípcios.

Êste gato só faltava falar. Manso e inteligente, seu olhar era humano.
Mas falar não falava.
E sua dona, triste, todo dia passava uma ou duas horas repetindo sílabas e palavras para êle, na esperança de que um dia aquela inteligência que via em seu olhar explodisse em sons compreensivos e claros. Mas, nada!

A dama gentil e senil era, naturalmente, incapaz de compreender o fenômeno. Tanto mais que ali mesmo à sua frente, preso a um poleiro de ferro, estava um outro ser, também animal, inferior até ao gato, pois era somente uma pobre ave, mas que falava! Falava mesmo muito mais do que devia!
Um papagaio que falava pelas tripas do Judas.
Curiosa natureza, pensava a mulher, que fazia um gato quase humano, sem fala, e um papagaio cretino mas parlapatão.
E quanto mais meditava mais tempo gastava com o gato no colo, tentando métodos, repetindo sílabas, redobrando cuidados, para ver se conseguia que seu miado virasse fala.




Exatamente no dia 16 de maio de 1958 foi que teve a ideia genial.
Quando a ideia iluminou seu cérebro, veio logo acompanhada da crítica, autocrítica: Mas, como não me ocorreu isso antes? perguntou ela para si própria, muito gentil e senil como sempre, mas agora também autopunitiva. Como não me ocorreu isso antes?

O papagaio viu no brilho da dona o seu (dele) terrível destino e tentou escapar, mas estava preso. Foi morto, depenado, e cozinhado em menos de uma hora.
Pois o raciocínio da mulher era lógico e científico: se desse ao gato o papagaio como alimentação, não era evidente que o gato começaria a falar? Não era?

O gato, a princípio, não quis comer o companheiro. Temendo ver fracassado o seu experimento científico, a dama gentil e senil procurou forçá-lo. Não conseguindo que o gato comesse o papagaio, bateu-lhe mesmo - horror! - pela primeira vez.
Mas o gato se recusou.
Duas horas depois, porém, vencido pela fome, aproximou-se do prato e engoliu o papagaio todo. Imediatamente subiu-lhe uma ânsia do estômago, ele olhou para a dona e, enquanto esta chorava de alegria, começou a gritar, num tom meio currupaco, meio miau-aua-au, mas perfeitamente compreensível:
- Madame, foge pelo amor de Deus! Foge, madame, que o prédio vai cair. Corre madame, que o prédio vai cair!

A mulher, tremendo de comoção e de alegria, chorando e rindo, pôs-se a gritar por sua vez:
- Vejam, vejam, meu gatinho fala! Milagre! Milagre! Fala o meu gatinho!
Mas o gato, fugindo ao seu abraço, saltou para a janela e gritou de novo:
- Foge, madame, que o prédio vai cair! Madame, foge! - e pulou para a rua. 



Nesse momento, com um estrondo monstruoso, o prédio inteiro veio abaixo, sepultando a dama gentil e senil em meio aos seus escombros.

O gato, escondido melancolicamente num terreno baldio, ficou vendo o tumulto diante do desastre e comentou apenas, com um gato mais pobre que passava:
Veja só que cretina. Passou a vida inteira para fazer eu falar e no momento em que eu falei não me prestou a mínima atenção.

Moral: O mal do artista é não acreditar na própria criação.

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Emmanuel Vão Gôgo foi um pseudónimo de Millôr Fernandes, que colaborou na revista brasileira O Cruzeiro durante quase duas décadas.
Uma das colunas que assinava era o famoso Pif-Paf.
A história acima foi publicada, nessa coluna, no dia 24 de Setembro de 1960.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

sábado, 14 de dezembro de 2019

A BELA E O MONSTRO: Chimamanda Ngozi Adichie fala sobre Donald Trump...

Chimamanda Ngozi Adichie


"Nos Estados Unidos da América percebi como, só por ser negra, a minha inteligência era questionada"

Chimamanda Ngozi Adichie, que nasceu em Enugu, Nigéria, no ano de 1977, é uma famosa romancista, ensaísta e conferencista, muito justamente incluída no grupo das mais importantes escritoras anglófonas.
Excelente aluna desde criança, na Nigéria, viajou para os Estados Unidos, aos 19 anos, a fim de estudar Comunicação e Ciências Políticas na Universidade Drexel, em Filadélfia.
Em 2003 completou o mestrado em Escrita Criativa na Universidade John Hopkins, em Baltimore. Em 2008 recebeu o certificado como Mestre em Estudos Africanos (Universidade de Yale).

Publicou, aos 26 anos, o seu primeiro romance, A Cor do Hibisco, contemplado em 2005 com o Prémio para Melhor Primeiro Livro da Commonwealth Writers.
Em 2006 surgiu o livro Meio Sol Amarelo, que venceu no ano seguinte o Orange Prize para Ficção.
Em 2013 publicou Americanah, a obra que a projectou a nível mundial.
No domínio do ensaio, salientam-se Querida Ijeawele - Como Educar para o Feminismo e, ainda, Todos Devemos ser Feministas.
Numa passagem recente por Portugal, concedeu uma entrevista onde, a dado passo, expressou a sua opinião sobre a  inenarrável criatura de Washington.
É disso que se dá conta mais abaixo.




Pergunta - Foi para os Estados Unidos da América com 19 anos. Desde então conviveu com três presidentes. Quão difícil é viver nuns EUA sob tutela de alguém como Donald Trump?

Resposta - É terrível. Sabe o que é? É surreal. George W. Bush não era um Presidente popular. Eu não voto nos EUA, porque continuo a manter a cidadania nigeriana por escolha, mas, se votasse, votava democrata. Muitos dos meus amigos são de esquerda e muitos deles não gostavam de George W. Bush, porque não o achavam preparado. Não era suficientemente inteligente para ser Presidente. As pessoas ficaram furiosas com a sua mentira sobre as armas de destruição massiva, com a questão do Iraque.

Só que Trump é algo de completamente diferente. Embora as pessoas não gostassem de Bush e desconfiassem dele, não pensavam que os fundamentos dos EUA estivessem em causa. Não sentiam que as instituições americanas estivessem em causa.
Agora, com Trump, sentimos que muitas coisas que pensávamos serem sólidas afinal não o são. É como se Trump tivesse desmistificado a América. Há uma mística da América, que também vem do seu poder cultural. Vemos todos aqueles filmes sobre a América, sempre apresentada como poderosa e boa. Há aquele sentido de que a América é o tipo bom. Mesmo quando conheces a política externa dos EUA, tendes a pensar que a América é o bom da fita.


Pergunta - Trump alterou essa narrativa?

Resposta - Trump virou isso completamente de pernas para o ar. Agora percebo que é possível ao Governo americano apoiar alguém que é responsável pela morte e afastamento de um jornalista que é residente nos EUA. Desculpe, mas isto é o tipo de coisas que não consigo superar. Não consigo superar que um homem que tem a Carta Verde, paga impostos nos EUA, não só é morto como é descartado. E percebemos que o seu Governo tem o petróleo e o dinheiro necessário.

Talvez eu esteja a ver agora a América de que muitos dos meus amigos mais radicais me falavam. Temos um Presidente que não tem nenhum senso, nenhuma visão, que não acredita em nada. Nada disto é normal.
Às vezes, preocupa-me verificar que a imprensa nos EUA usa os mesmos padrões para com Trump que usava para com George W. Bush ou Obama, mas é preciso perceber que temos no poder uma pessoa instável. É algo de completamente diferente.

Quando ele chegou ao poder, eu e muitas outras pessoas ficámos chocadas. Depressa fiquei muito preocupada ao ver a cobertura feita pela imprensa. Ele mente. Mas é o Presidente dos EUA, e pelo livro de estilo do jornalismo norte-americano, vindo da Columbia School of Journalism, ou o que seja, os presidentes não mentem, ou pelo menos daquela maneira. Ninguém sabe o que fazer. Ele mente, queixam-se, mas dizem que não há provas para o demonstrar. Mas que raio? 



Pergunta - Donald Trump torna o mundo mais perigoso?

Resposta - Há duas coisas que me deixam verdadeiramente triste e desconfortável. Não é só o facto de este homem instável ser o mais poderoso do mundo, com todas as consequências que isso pode ter para o mundo, e para sentir essas consequências nem é preciso ser americano.
Mas é também o facto de a sua própria gente não saber como lidar com ele. Todo o mundo sabe que está a lidar com alguém completamente instável. Isto é como ter um rei louco.
Tudo isto faz-me pensar em quanto poder tem um Presidente dos EUA, apesar de ostensivamente dever haver um sistema em que os três braços do poder se controlam uns aos outros.

Mas não é assim. Porque um homem assim instável pode acordar um dia de manhã e decidir que quer entrar em guerra com a Coreia do Norte. Isso está a acontecer. A China é má, mas no dia seguinte a China já é boa. A Coreia do Norte é terrível, mas no dia seguinte está a dizer o contrário, ou então está a dizer para irem almoçar e estarem preparados para atacar o Irão. Umas horas depois estará a dizer: "Não, não, não façam isso".
Não percebo como é que se pode ter tanto poder sem que algo de potencialmente horrível aconteça. Isso assusta-me muito.
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Entrevista conduzida por Valdemar Cruz e publicada na Revista E, do jornal Expresso (Lisboa, Portugal) - Edição n.º 2455, de 16-Novembro-2019, pág. E/61.