sábado, 4 de janeiro de 2020

DRAMA NA FAMÍLIA REAL - As conspirações contra D. João II, rei de Portugal (3)


Cidade de Setúbal, sul de Portugal,
onde se desenrolou a última parte deste drama familiar

Continuação de:
1.ª parte - aqui
 2.ª parte - aqui 
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A conspiração do duque de Viseu

No dia que se seguiu à execução do duque de Bragança, D. João II mandou chamar o duque de Viseu, D. Diogo, irmão da rainha D. Leonor (além de cunhado, o jovem era seu primo direito). O rei sabia que ele andara metido na conspiração dos Braganças e que o finado duque, bastante mais velho e experiente, o dominara por completo nos últimos tempos, arrastando-o por maus e perigosos caminhos.
Em atenção à sua esposa, o monarca resolveu - tal como fizera com o duque de Bragança - conceder uma derradeira oportunidade a D. Diogo. Foi assim que, na presença da rainha, lhe falou com paternal severidade, admoestando-o pelo seu procedimento, mas dizendo-lhe compreender que fora apenas devido à sua juventude e falta de ponderação que agira daquele modo. Portanto, concluiu o monarca, tudo seria esquecido e perdoado, bastando que D. Diogo procedesse doravante segundo as regras de lealdade que eram devidas ao soberano.

D. Diogo ouviu, calado, a reprimenda e o perdão. Calado ouviu e em silêncio continuou quando flectiu o joelho para beijar a mão de D. João. E, o que não era de bom augúrio, foi ainda mudo que abandonou os aposentos de D. Leonor onde a cena decorrera. Foi a rainha, e só  a rainha, quem deu mostras de reconhecimento, agradecendo ao poderoso marido o ter poupado a vida e a liberdade do seu jovem irmão.

É de admitir que as palavras do rei penetraram por um dos ouvidos do duque de Viseu e que logo saíram pelo outro. D. Diogo era um rapaz simpático e de elegantes maneiras - mas era também, e sobretudo, fraco, insensato e vaidoso. Supunha-se fadado para cumprir um grande destino (talvez, mesmo, subindo ao trono), e alguma da nobreza de que se fazia rodear alimentava-lhe as ilusões cobrindo-o de lisonjas. Havia entre esses nobres quem suspirasse pelo retorno  dos bons tempos de D. Afonso V, pai do actual rei, sempre pródigo para com eles. D. Diogo, sensível aos elogios e fácil de convencer, afigurava-se-lhes mil vezes preferível ao monarca severo e avaro que lhes coubera em sorte…

Não obstante o trágico fim do duque de Bragança, tudo indica que as actividades conspiratórias não chegaram a ser interrompidas. Desta vez, porém, centravam-se em torno da figura de D. Diogo, a quem andavam a convencer de que poderia, de facto, ser rei de Portugal. Para isso, é claro, teriam que dar sumiço a dois empecilhos: D. João II e o seu legítimo sucessor, D. Afonso, que contava oito anos de idade em 1483. Ou seja: era necessário avançar para o regicídio. O pequeno D. Afonso seria mantido como reizinho por uns tempos, mas não tardaria a ter destino idêntico ao do pai.

Numa altura em que a corte estacionou por algum tempo em Santarém, os conspiradores multiplicaram os encontros. Vinham de noite, a ocultas,  meter-se na casa onde se hospedava D. Diogo, e ali discutiam o que - e como - se havia de fazer. O bispo de Évora, D. Garcia de Meneses, era um dos mais empenhados. Mas, como mais tarde se provou, havia outros participantes nesses sinistros conciliábulos: Fernão da Silveira, filho do falecido barão de Alvito; D. Guterre Coutinho, comendador de Sesimbra; D. Álvaro de Ataíde, irmão do conde de Atouguia, que comparecia acompanhado pelo filho, D. Pedro; D. Lopo de Albuquerque, conde de Penamacor, com o seu irmão Pero de Albuquerque; e muitos outros… 

Rei D. João II
(a inscrição do retrato refere, erradamente, tratar-se de D. João IV)

Segundo se depreende do processo, estes conspiradores comportavam-se desastradamente e com uma imprudência suicida. Falavam de mais e, acima de tudo, falavam com quem não deviam. Foi o caso, por exemplo, do bispo de Évora, D. Garcia de Meneses, que mantinha uma relação íntima com uma tal Margarida Tinoco. Descuidado, o bispo acabou por eleger como confidente um irmão da amante, Diogo Tinoco, que se apressou a procurar um camareiro do rei, Antão de Faria, para lhe dar conta do que se preparava. Faria tratou de levar Tinoco a D. João II, e o delator logo pôs tudo em pratos limpos: os conspiradores planeavam a morte do rei e a do seu filho, após o que sentariam o duque de Viseu no trono. O monarca recompensou generosamente Diogo Tinoco e encarregou-o de prosseguir as tarefas de espionagem.
Houve outras denúncias, algumas das quais provindas da nobreza. Um dos avisos mais sérios veio de um fidalgo de antiga linhagem, D. Vasco Coutinho. Este não morria de amores pelo monarca, e, desejoso de melhorar a sua situação material, pensara até em ir viver para o estrangeiro. Foi nessa altura que um seu irmão, o conspirador D. Guterre Coutinho, o aconselhou a não sair do país e lhe garantiu que melhores dias estavam para vir em Portugal. Quando D. Vasco, intrigado, quis saber mais, D. Guterre não só deu a entender que a morte do rei estava iminente, como revelou ao irmão todos os pormenores da conspiração. 

Não se sabe ao certo porquê, mas parece que D. Guterre logo se arrependeu da inconfidência: a partir de então, ele e os restantes conspiradores passaram a exercer estreitíssima vigilância sobre D. Vasco, temerosos de que  este os denunciasse. Tinham razão. Ainda que não gostasse do monarca, D. Vasco Coutinho debatia-se com sérios problemas de consciência: uma coisa era o desafecto que nutria por D. João; outra, muito diferente, era permitir, com o seu silêncio, que o assassinassem. No entanto, estreitamente vigiado, via-se impossibilitado de chegar à fala com o soberano.

Os conspiradores tinham planeado liquidar o rei no dia 20 de Agosto de 1484, uma sexta-feira, quando ele voltasse ao seu paço de Setúbal depois de uma caçada nas matas vizinhas de Alcácer do Sal. Durante a viagem de regresso, efectuada de barco, D. Vasco Coutinho conseguiu finalmente aproximar-se de D. João II. E, sem que os restantes passageiros dessem por isso, começou a murmurar ao ouvido do rei o plano a que tivera acesso. O regicídio, informou, teria lugar à chegada, nas praias de Setúbal. Estava previsto que D. Diogo, duque de Viseu, caísse com duzentas lanças sobre a guarda do monarca, enquanto este, indefeso, seria morto no barco pelo bispo de Évora e seus cúmplices.

D. Vasco disse ainda a D. João que os conspiradores se achavam na disposição de se retirarem para as suas terras se não o conseguissem assassinar naquele dia ou nos dias seguintes. Eles tinham uma data limite para executar o plano: era o dia 23 de Agosto, segunda-feira. Se até essa altura o rei não estivesse morto, recolheriam às suas fortalezas para erguerem os pendões da revolta e mergulharem o país numa guerra civil sangrenta.
O rei, que fingia dormitar com o balanço da embarcação, não precisou de ouvir mais. Simulou despertar e anunciou que desejava fazer por terra o resto da viagem até Setúbal. Não só inutilizava, desse modo, o plano conspiratório para esse dia, como estava já na posse dos elementos de que necessitava para agir.

Morte de D. Diogo, duque de Viseu

D. João II actuou, como era seu timbre, de modo fulminante. Desta vez, e não obstante as ligações de sangue, não haveria lugar a perdão. Na noite de sábado, de 21 para 22 de Agosto, mandou vir ao paço de Setúbal o seu primo e cunhado D. Diogo, duque de Viseu, entretanto recolhido em Palmela. Ainda frustrado pelo falhanço da véspera, o duque deve ter-se sentido apreensivo com a súbita convocatória, mas, sem outro remédio, viajou até Setúbal. À chegada, foi chamado a um compartimento interior, normalmente utilizado como guarda-roupa, e aí deu de caras com o rei. Este achava-se acompanhado de D. Pedro de Eça, alcaide de Moura, de Lopo Mendes do Rio e, ainda, de Diogo de Azambuja, capitão que se distinguira na Guiné.

Segundo a versão mais corrente do episódio, D. João II não perdeu tempo. Dirigindo-se com severidade ao primo e cunhado, segurou-o por um braço e perguntou-lhe sombriamente: Duque, que faríeis vós a quem vos quissesse matar? O pobre D. Diogo deve ter ficado petrificado e, provavelmente, terá pressentido  o fim. Todavia, sem possibilidade de se esquivar, respondeu ao monarca: Matá-lo-ia. D. João II voltou, uma vez mais, à carga. Exibindo uma das cartas comprometedoras apanhadas aos conspiradores, perguntou ao duque se a assinatura que nela constava era a sua. Apavorado, D. Diogo disse que sim. E não houve tempo para mais interrogatórios. O rei soltou uma derradeira frase de condenação - Pois o que vós a mim ordenáveis, em vós se cumpre! - e logo, de punhal em riste, investiu sobre o cunhado ferindo-o por três vezes.  Diz-se que D. Pedro de Eça agarrou a vítima pelos cabelos e lhe deu o golpe final, enquanto Diogo de Azambuja se terá limitado a lançar um reposteiro sobre o cadáver.

Nessa mesma noite, o monarca mandou chamar Manuel, irmão de D. Diogo - ainda um jovenzito de quinze anos -, e explicou-lhe o que sucedera - e porque tivera de ser assim. Mais lhe prometeu que, em caso de morte do seu herdeiro D. Afonso - e não havendo mais descendentes legítimos -, seria a ele, D. Manuel, que caberia subir ao trono quando D. João II se finasse. O rei terá provavelmente dito isto como descargo de consciência, estando muito longe de imaginar que os fados se cumpririam tal como nesta sua promessa. Com efeito, D. Afonso perderia a vida, acidentalmente, junto às margens do rio Tejo e D. Manuel acabaria como rei de Portugal daí a onze anos (1495).

Túmulo de D. João II no mosteiro da Batalha
(distrito de Leiria, Beira Litoral, centro de Portugal)

Depois disto, D. João II tratou dos restantes conspiradores. Ainda naquela noite foram presos os principais implicados, acabando quase todos executados. O bispo de Évora, D. Garcia de Meneses, talvez o maior responsável, depois do duque de Bragança, pelos maus caminhos por onde se metera D. Diogo, teve direito a tratamento especial. Encerrado numa cisterna vazia do castelo de Palmela, perto de Setúbal, regalou-se durante uns tempos com a comida trazida da mesa real. Mas, um dia, foram encontrá-lo sem vida, com um livro na mão - provavelmente envenenado.

D. Guterre Coutinho foi também condenado, mas, a pedido do irmão, D. Vasco, não foi executado publicamente: prenderam-no na torre de Avis e ali acabou por morrer, insinuando os cronistas que não foi de morte natural.
Outros condenados foram D. Fernando de Meneses (irmão do bispo de Évora), Pero de Albuquerque e D. Pedro de Ataíde. D. Álvaro de Ataíde pôde atravessar a fronteira, colocando-se a salvo. Fernão da Silveira conseguiu igualmente fugir para Castela (de onde escreveu uma carta insultuosa ao monarca português) e, daí, para França - onde findou os seus dias assassinado por um aventureiro catalão a soldo de D. João II. O conde de Penamacor andou em fuga no estrangeiro durante sete anos, até que D. João II conseguiu convencer o rei de Inglaterra a encerrá-lo na Torre de Londres, mas não a extraditá-lo.

Quanto aos irmãos do falecido duque de Bragança, o chanceler D. Álvaro foi o único que sobreviveu muito tempo. O conde de Faro morrera em Sevilha, no ano de 1483, e houve quem falasse de veneno. Quanto ao marquês de Montemor, que continuou a conspirar contra o rei de Portugal do outro lado da fronteira, foi executado em Abrantes - mas só em efígie… Arranjaram um boneco vestido como ele e, no cadafalso, cortaram-lhe a cabeça, espirrando sangue artificial. Diz-se que o marquês ficou psicologicamente muitíssimo abalado quando recebeu notícia disto - tanto que morreu passado pouco tempo.

D. João II, ao centralizar, já sem oposição significativa,  o poder real nas suas mãos, achava-se agora livre para a sua grande missão na vida - preparar a notável expansão portuguesa pelo mundo.  Foi devido à sua persistência que Portugal celebrou com Castela o Tratado de Tordesilhas (ano de 1494), em que os dois países dividiram entre si as terras descobertas ou por descobrir fora da Europa.
O astucioso traçado de uma linha vertical para ocidente - muito para ocidente de Portugal... - incluía uma considerável porção do que viria a ser mais tarde o território do Brasil (Pedro Álvares Cabral só ali chegaria em 1500, mas é bastante provável que os Portugueses já tivessem conhecimento da região).
A insistência de D. João II na deslocação acentuada dessa linha implicou possivelmente que os Brasileiros falem hoje a formosa língua portuguesa - e não o agreste idioma castelhano dos seus muitos vizinhos...

FIM DA 3.ª e ÚLTIMA PARTE

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Elementos Adicionais: 

1 - Retrato de D. João II pelo historiador Oliveira Martins - aqui

2 - Programa do Prof. José Hermano Saraiva sobre D. João II (na Radiotelevisão Portuguesa):


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