sábado, 28 de dezembro de 2019

DRAMA NA FAMÍLIA REAL - As conspirações contra D. João II, rei de Portugal (2)

Iluminura do "Livro dos Copos".
Pensa-se que a figura representa D. João II.

Continuação da 1.ª Parte - aqui 

A Conspiração do Duque de Bragança

João Afonso, vedor da fazenda do duque de Bragança - e incumbido por este de recolher em Vila Viçosa os documentos justificativos das suas posses, honras e privilégios -, parece ter encarado as ordens do amo com descuido e displicência. Com efeito, em vez de tratar ele próprio do assunto, encarregou um filho de o fazer.
Munido da chave do cofre secreto do duque, o rapaz viu-se perante pilhas de documentos pouco ou nada organizados, o que lhe fez antever a dificuldade da tarefa que tinha entre mãos. Lembrou-se então de solicitar auxílio a um escrivão da Casa de Bragança, Lopo de Figueiredo, que acedeu prestimosamente ao pedido.

Lopo de Figueiredo, que jamais tivera acesso àquele cofre, foi analisando em pormenor os documentos. E, de repente, sobressaltou-se: entre a papelada havia originais e rascunhos de cartas trocadas entre o duque de Bragança e os reis de Castela (Isabel e Fernando), em termos tais que o escrivão logo suspeitou de traição para com o seu rei.
O duque prometia lealdade aos monarcas castelhanos e garantia-lhes que seria, na corte portuguesa, um fiel e empenhado defensor dos seus interesses. A correspondência parecia ter-se iniciado em 1480, portanto ainda antes da subida de D. João II ao trono, e prolongava-se até à actualidade.
A Lopo de Figueiredo tudo aquilo pareceu tão estranho como suspeito, sobretudo se se pensar que Portugal saíra muito recentemente de uma guerra com Castela (a que o Tratado das Alcáçovas pusera termo, em 1479).

Lopo de Figueiredo arranjou maneira de retirar dissimuladamente as cartas sem que o filho do vedor João Afonso se apercebesse disso. Depois de as examinar mais detidamente em casa, resolveu levá-las ao conhecimento de D. João II. O rei analisou os documentos e chamou o seu camareiro Antão de Faria para que os copiasse imediatamente. Depois ordenou a Figueiredo que os devolvesse ao cofre de onde haviam saído. O escrivão assim fez nos dias seguintes, em que continuou a "ajudar" o filho do vedor na sua tarefa. Durante esse espaço de tempo, demonstrou um refinado talento para a espionagem: efectuou novas descobertas de material suspeito e apressou-se a levá-lo a D. João II.

O rei português, valendo-se dos préstimos de Lopo de Figueiredo e das investigações, mais amplas, dos seus serviços secretos, não tardou a ter diante dos olhos um quadro bastante credível da conspiração em curso. Ela envolvia, para além dos Braganças, outros vultos importantes da nobreza. O próprio irmão da rainha, D. Diogo, duque de Viseu, parece ter tido conhecimento do que se passava, desconhecendo-se, porém, nessa altura, qual o grau do seu envolvimento.
Há quem defenda que nem todos os irmãos do duque de Bragança (ainda que sabedores do que se passava) se achavam na disposição de trair o rei, embora nenhum deles lhe fosse especialmente dedicado. Mas não restam quaisquer dúvidas em relação a um deles, o marquês de Montemor, que chegou a escrever aos monarcas castelhanos para que lhe enviassem um exército de 4000 lanças para derrubar D. João II e colocá-los, a eles, no trono português.
Prudentes, Isabel de Castela e Fernando de Aragão respondiam com cautelas e evasivas a estes convites. Conheciam a têmpera de D. João II e não desejavam comprometer-se irremediavelmente numa aventura de consequências imprevisíveis.

D. Fernando, 3.º Duque de Bragança

Antes da consumação da tragédia, o rei de Portugal levou a cabo uma iniciativa - aparentemente sincera - para fazer parar pacificamente as manobras dos seus inimigos. Nos princípios de 1483, em Almeirim, chamou à parte o duque de Bragança e fez-lhe um longo discurso sobre a sua importância - dele, duque - para a sustentação da Coroa e sobre os deveres de lealdade que isso acarretava. Ele era o braço direito do rei, disse D. João, e devia comportar-se como tal. Segundo os cronistas, o monarca não foi inteiramente claro sobre os factos de que já tinha conhecimento, limitando-se a aludir, vagamente, a alguns modos e maneiras que o duque vinha adoptando para com Castela.

Foi um aviso, e um aviso sério, mas o duque não o entendeu assim. Convencido de que os papéis comprometedores se mantinham a bom recato no cofre de Vila Viçosa - que ele supunha inviolável - olhou despreocupadamente para o rei e respondeu-lhe que ninguém, mais do que ele, tinha a noção dos seus deveres de súbdito fiel. E deste modo se separaram, diz-se que amáveis e sorridentes, para seguirem os seus caminhos: um prosseguiria com as maquinações conspiratórias; o outro continuaria, com os seus espiões e delatores, a preparar o momento da investida final.

D. Fernando, duque de Bragança, incorreu a seguir, com os seus irmãos, num erro de avaliação fatal. Numa reunião que tiveram em Vimioso, os quatro concluíram que aquelas palavras do rei só poderiam significar que ele temia o poder da Casa de Bragança, bem como as relações que esta conseguira estabelecer com Castela. Num outro encontro, próximo de Évora, comprometeram-se a auxiliar-se uns aos outros contra qualquer inimigo - especialmente o rei.
Na sombra, D. João II ia tendo notícia, por delações várias, destes encontros e combinações. Mas continuava a esperar o momento propício. Durante largo espaço de tempo, ele não se achou em condições de agir, pois receava pela sorte do seu único filho legítimo, o herdeiro do trono.

Com efeito, na sequência do Tratado das Alcáçovas, o pequeno Afonso fora entregue, juntamente com uma filha dos reis de Castela, como penhor de que a paz seria mantida entre os dois reinos (foram as chamadas Terçarias de Moura, porque era em Moura, Alentejo, longe dos pais, que as crianças se encontravam).
Compreende-se, por isso, que o rei português tenha feito tudo para anular aquelas Terçarias e para ter de novo o herdeiro na sua companhia. Quando isso ocorreu, D. João II actuou de modo fulminante. No dia 30 de Maio de 1483, aproveitando uma visita que o duque de Bragança lhe fizera em Évora, ordenou a sua detenção. O preso, estupefacto, foi, todavia, tratado com respeito, continuando a gozar das regalias devidas à sua elevada condição. Mas sabia que estava perdido. Quando Aires da Silva, um dos camareiros do rei, lhe disse, para o consolar, que tudo acabaria em bem, o duque respondeu-lhe sombriamente: Senhor Aires da Silva, um homem como eu não se prende para soltar.

Praça do Giraldo, em Évora, Portugal.
Local da execução do duque de Bragança.

Na noite desse mesmo dia foram enviados oficiais do rei às vinte e cinco localidades fortificadas pertencentes ao duque de Bragança, e todos os respectivos alcaides acataram sem resistência a ordem de rendição. Simultaneamente, expediram-se ordens de prisão contra dois dos irmãos do duque - o marquês de Montemor e o conde de Faro -, mas ambos arranjaram forma de se escapar para Castela. O outro irmão - o chanceler D. Álvaro - foi deixado em liberdade.
Assustada com a detenção do marido, a jovem duquesa de Bragança (D. Isabel, que era irmã da rainha D. Leonor, esposa de D. João II) tratou de mandar os três filhos pequenos para Castela, onde, tal como sucedeu com os outros fugitivos, foram recebidos de braços abertos pela família real.

O duque de Bragança foi julgado por um tribunal, em Évora, segundo os processos legais em uso. Foram convocados os juízes mais competentes do reino. Dois doutores de leis representaram o rei, e outros dois encarregaram-se da defesa do preso. Mas a acusação, contida em vinte e dois artigos, revelou-se esmagadora, oferecendo escassa margem de manobra à defesa. Perante a leitura da acusação, o duque mostrou alguma perturbação ao ouvir pronunciar em voz alta coisas que ele supunha ocultas e seguras no cofre de Vila Viçosa. De qualquer modo, ele jamais negou, durante o processo, qualquer das acusações - e, logicamente, nunca se afirmou inocente. Por fim, chegou-se à sentença: D. Fernando foi condenado a morrer degolado na praça da cidade de Évora, perdendo todos os seus bens patrimoniais em favor da Coroa.

No dia 20 de Junho de 1483, viveu-se o derradeiro acto do drama. O duque de Bragança foi conduzido a uma casa, na praça da cidade, de onde partia uma ponte de madeira que dava acesso a um cadafalso coberto de panos negros. O condenado aparentava serenidade e conformação. Almoçou figos e vinho, dormiu um pouco e, ao despertar, ditou as últimas vontades.
Vieram então buscá-lo para o conduzirem ao terrível fim. Puseram-lhe uma capa negra pelas costas, amarraram-lhe os dedos ao cinto com uma fita e guiaram-no, pela ponte de madeira, até ao cadafalso.

Na praça apinhada de gente soou então a proclamação da sentença (Justiça que manda fazer nosso senhor, El-Rei…). 
O carrasco - um vulto mascarado e vestido de luto pesado - pediu respeitosamente perdão ao duque e ajudou-o a pôr-se em posição no cepo. Depois, tirou um machado brilhante de sob a capa e, de um só golpe, decepou a cabeça do condenado.
Conta-se que o rei, que aguardava no seu paço de Évora, caiu de joelhos quando ouviu dobrar a finados o sino da igreja. Rezemos pela alma do duque, terá ele dito a alguns cortesãos que o acompanhavam. Conservou-se muito tempo ajoelhado e, enquanto rezava, dizem alguns que o viram chorar.
Mas D. João II não conseguira ainda livrar-se de todos os seus inimigos.

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(Conclui em 4 de Janeiro de 2020 - 3.ª Parte - ver aqui)

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