sábado, 19 de setembro de 2020

Filipa de Lancaster, Rainha de Portugal - A Mãe da "Ínclita Geração" (1359-1415)

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Filipa de Lancaster (1359-1415)

Nota Prévia - A inglesa Filipa de Lancaster foi filha de Blanche de Lancaster e de John de Gaunt, duque de Lancaster (filho do rei inglês Edward III).
Nasceu em 1359 e faleceu em 1415.
Casou em 1387 com D. João I, rei de Portugal, fundador da 2.ª Dinastia (a de Avis).

Filipa foi mãe da Ínclita Geração:

- D. Duarte (sucessor de João I),
- Infante D. Henrique (alma dos Descobrimentos Portugueses),
- D. Pedro (regente, após a morte do irmão Duarte),
- D. João (avô da rainha Isabel, a Católica, de Castela),
- D. Fernando (o Infante Santo, que morreu prisioneiro dos Muçulmanos em Tânger)
- e D. Isabel (que casaria com Filipe, o Bom, duque da Borgonha).

Faleceu de peste, às vésperas da partida do marido e dos filhos para o ataque a Ceuta, no Norte de África, que marcou o início da expansão ultramarina portuguesa (1415).

Júlio Dantas (1876-1962) traçou desta notável rainha de Portugal o seguinte retrato:

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“Reflexiva, serena, cheia de pudores e de escrúpulos, decerto feia, a julgar pela estátua do túmulo e pelo silêncio de Fernão Lopes, Filipa de Lancaster entrou na corte portuguesa em circunstâncias que deviam ter ferido o seu natural orgulho de mulher.

D. João I, comprometido já pela letra dum contrato, demorava propositadamente, sob todos os pretextos, a realização do seu casamento. Carácter torcido, espírito interesseiro, tortuoso, cheio de cautela e de simulações, ele reconsiderava e desculpava-se com o facto de ser cavaleiro professo e de não poder contrair matrimónio sem dispensa da Cúria Romana.

Mas o Duque de Lancaster, mais prático, cortou todas as hesitações por uma resolução imprevista: mandou a filha para o Porto, onde estava o rei, acompanhada do bispo de Acres e do confessor.

Ali se conservou a noiva ainda muitos dias, sem que o rei procurasse ao menos vê-la. Por fim, lá se resolveu: trocaram as jóias e casaram.
Os princípios não podiam considerar-se auspiciosos.
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D. João I, rei de Portugal, fundador da dinastia de Avis
(1357-1433)

Mas, passado pouco tempo, tudo mudou.
Essa pobre mulher de quase trinta anos, sem prestígio e sem beleza, amortalhada em grandes dobras hirtas de pano de oiro, atravessando o paço sempre de olhos baixos, cheia de doçura e de tranquilidade, mas possuindo a terrível energia de certas criaturas aparentemente passivas, dominava inteira e absolutamente o rei.
Algum tempo ainda – e estaria também dominada a Corte.

Foi uma conquista palmo a palmo, feita com um singular poder de sugestão, de infiltração, sem exaltações, sem violências, não perdendo um momento a sua impassibilidade, as suas atitudes de figura gótica, os seus movimentos sóbrios, a sua doçura incomparável.
Bastava um volver daqueles olhos azuis e frigidíssimos: adivinhavam-na.

A maior força de Filipa estava no seu exemplo, na sua fundamental e indestrutível virtude. Quase insensivelmente, a corte de D. Fernando (o rei anterior, meio irmão de João I) converteu-se na corte de Filipa de Lancaster – uma corte severa, casta, metódica, onde não se casava por amor mas sim por ordem da rainha, e onde os negócios do sentimento se regulavam à inglesa, simplesmente, praticamente.

Antes dela, já D. Pedro I (pai de João I) pretendera moralizar – mas moralizara à bruta, fazendo justiça de epiléptico, gaguejando impropérios contra as alcoviteiras, enforcando, azorragando bispos, ensanguentando as suas próprias mãos. Passado o primeiro momento de terror, ele tinha de novo em volta de si a mesma corte de devassos, e – pior ainda – era ele próprio o mais devasso de todos.
Um desgraçado como D. Pedro não moraliza: quando muito, assassina.

Filipa de Lancaster, não. Tinha por si a força do seu exemplo e da sua virtude. Os seus processos eram, pelo menos aparentemente, mais suaves. Sempre cheia de doçura, de serenidade, os olhos baixos, o simbólico pilriteiro de oiro bordado no oral de seda.

Não demolia, edificava; não mandava matar, mandava casar.
Quando menos o esperava, um fidalgo solteiro, com moradia no Paço, recebia ordem terminante da rainha: “prepare-se para casar amanhã”.
Não sabia como, não sabia com quem – mas obedecia.
No dia seguinte, estavam casados.


Casamento de D. João I com D. Filipa de Lancaster
(Porto - Portugal - 1387)

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Ninguém se insurgia, ninguém arriscava uma palavra.

E, não obstante, D. Filipa cometia a maior das violências; ia de encontro ao que há de mais íntimo, de mais sagrado no sentimento humano; de encontro à corrente emancipadora das novelas do Ciclo Bretão, que exaltavam, com Tristão e Isolda, a liberdade do amor; de encontro às próprias tradições; de encontro ao que desde antiga data se achava expresso nas leis do reino.

Uma velha lei de Afonso II estabelecia que nem ele nem os seus sucessores poderiam constranger alguém ao casamento.
A legislação era clara.

A rainha sabia bem tudo isto, consultara sobre o caso todos os capelos vermelhos da corte, o seu companheiro e mestre Roberto Paíno, o seu confessor, os seus frades.

As opiniões dividiam-se, as consultas discordavam, folheavam-se cânones, invocavam-se doutores da Igreja – e, entretanto, Filipa de Lancaster, fixando nos bispos e nos prelados os seus olhos azuis impassíveis, continuava a mandar casar, sistematicamente, inflexivelmente – como D. Pedro mandava matar.
E a moralidade voltou – e a revolução fez-se.

Sentia-se, dia a dia, a influência dessa prodigiosa criatura sobre os costumes e sobre o modo de viver na corte e fora dela.

Túmulo de D. João I e de D. Filipa de Lancaster
(Mosteiro da Batalha - Portugal)

Os fidalgos passaram a ouvir missa, a jejuar, a confessar-se, deixaram-se de freiras e de judias, nunca mais se jogou nas varandas do Paço, nunca mais se viu um escudeiro bêbedo.

Dentro de poucos anos, a grave princesa normanda, a despeito da sua placidez, da sua impassibilidade, da sua candura, do seu ar de figura primitiva, com os olhos baixos, as mãos cruzadas, a roupa em grandes dobras solenes de pano de oiro, aparentemente frágil, passiva, insignificante -, tinha edificado uma corte nova sobre aquela ruína de adultérios, de infanticídios, de incestos e de violações que era a sociedade portuguesa no fim do século XIV.
A honra desse renascimento pertence-lhe exclusivamente a ela." (*)
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Mosteiro da Batalha - Portugal

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(*) - Júlio Dantas, Portugal (1876-1962).

Extraído do livro: Outros Tempos - Inquéritos Médicos às Genealogias Reais Portuguesas - Avis e Bragança, publicado em 1909 pela Editora Portugal-Brasil.
Júlio Dantas foi sócio efectivo da Academia das Ciências de Lisboa e membro da Academia Brasileira de Letras.

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