quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Portugal - Pátria Mestiça



"Cada vez há mais estrangeiros a pedir a nacionalidade portuguesa.

Brancos, pretos, amarelos, castanhos, entre o loiro e o germânico, entre o glabro e o felpudo, eis uma sublevação de cores e de fácies; um bulício de idiomas que noivam o nosso idioma para exprimir a dor e o riso, a infância e a paixão, a lembrança e o sonho.

Tocaram no batente da casa comum à procura, afinal, do que comum é ao homem: um pouco de felicidade.
E deitam-se no mesmo leito onde, outrora, suevos e visigodos, fenícios e romanos, árabes e celtas procriaram os miscigenados que todos nós somos.

A sintaxe da nossa ascendência possui qualquer coisa de genial.
Não foi, somente, a delimitação do território que construiu uma pátria e moldou uma língua.
Também não foi, apenas, o ferro do montante que marcou uma identidade.

O que definiu o nosso destino foi a argila de um particular nativismo, nascido na cama do amor, no suor dos corpos, na festa do sexo.
Nascemos do prazer.

Saímos portugueses desse almofariz de raças, no entreacto de guerras e de confrontos políticos.
A negação da nossa mestiçagem configurará o assassínio da nossa identidade, e atribui a quem a pratica o estofo de um canalha.

Assim como o ódio exposto, arrogantemente, em placard, demonstra algo de doentio.

Somos uma nação de heterónimos, cheios de coragens e de cobardias, de mares e de corpos, de credos e de superstições.
Um pisar de caminhos antigos puxa-nos as pernas para o imponderável.
Fluxos de muitos sangues fazem pulsar o modo de como aqui estamos.




Há um relatório ("Inter Lusitanos") endereçado ao imperador Nero por Políbio Garbus, poeta e procônsul romano, o qual nos retrata como gente estranha, imputando fraqueza de espírito a uma nossa particularidade: a indiferenciação fundamental dos indivíduos.
E adianta: o desdém pelas regras criou nos Lusitanos uma relativa igualdade de raças.

Para um patrício, educado numa sociedade extremamente hierarquizada, este modelo estava desprovido de lógica social, política e filosófica.
As coisas prosseguiram séculos atrás de séculos.

Quando D. Manuel I manda proceder à matança de judeus, num domingo de Pascoela, a 19 de Abril de 1506, liquida a cultura de afectos e de livre partilha dos saberes até então simplificada no reconhecimento da alteridade.

Mas a História não pára o tempo que dentro de si acalenta.

Foi-nos legado um bragal aberto ao mundo, entre intimidades, solidões, angústias e despedidas.

Eis porque precisamos de todos os que nos procuram, porque sempre procurámos todos aqueles de que precisamos."


(Baptista-Bastos - Diário de Notícias - Lisboa, Portugal - Edição de 17 de Abril de 2007)

2 comentários:

Jose Ferrolho disse...

D. Manuel mandou proceder à matança de judeus???...

Cavaleiro da Torre disse...

José Ferrolho: claro que D. Manuel I, o rei português, não teve qualquer responsabilidade no massacre de judeus em Abril de 1506. Tratou-se neste artigo, obviamente, de um erro ou deficiente informação por parte do brilhante cronista que foi Baptista-Bastos. Ao contrário do que ele afirma, D. Manuel I foi até muito severo no tratamento do caso: ordenou investigações rigorosas que conduziram a castigos duríssimos dos principais responsáveis (enforcamentos, mutilações, etc.). Publicámos em 15 de Janeiro de 2015, aqui na "Torre da História Ibérica", a versão que o historiador Alexandre Herculano forneceu sobre o episódio, da qual se conclui que o monarca assumiu um procedimento exemplar (ver em: https://torredahistoriaiberica.blogspot.com/2019/04/do-fanatismo-e-da-intolerancia-o.html).