"(...) É durante esta odisseia que vai produzir-se um tremendo embate entre os Bóeres e as tribos bantas.
Contra a opinião dos que preferiam os caminhos do Norte, alguns milhares de pioneiros, chefiados por Piet Retief, espicaçaram as juntas de bois rumo a leste. Tiveram o cuidado de tornear os domínios dos Xhosas, o perigoso caldeirão onde havia mais de meio século fervilhavam mortíferas guerras de fronteira.
Efectuaram um desvio por nordeste, a golpes de tenacidade, através das cadeias montanhosas do Drakensberg. Foi literalmente à força de braços que fizeram transpor aos carroções e aos animais os obstáculos dos maciços rochosos e o vazio apavorante dos abismos.
Desta maneira se foram acercando, sem se darem conta, de um torvelinho humano onde se repercutiam ainda as ondas de choque da notável aventura expansionista dos Zulus, guiados por Chaka.
Este famoso soberano negro, que conduzira os destinos do seu povo, no Natal, entre 1816 e 1828, tinha forjado a partir da sua tribo insignificante uma destrutiva máquina de guerra e com ela talhara um poderoso império.
À frente de guerreiros descalços, munidos de escudos enormes e de zagaias curtas que obrigavam ao corpo-a-corpo, Chaka espalhara acções de conquista e extermínio entre os povos vizinhos. Atacou a norte, a oeste e, também, a sul, na direcção das terras onde os Xhosas prosseguiam as suas disputas com os bóeres fronteiriços.
A consolidação do império ficou a dever-se à sua genialidade e à bravura dos seus guerreiros, submetidos a uma disciplina espartana, treinados até à exaustão e de energias espevitadas por forçados períodos de castidade.
O rolo compressor do expansionismo zulu ocasionou milhares de mortos e a fuga espavorida de legiões de sobreviventes, que, no frenesi do recuo, disseminavam a devastação e o luto por onde quer que passassem. Ao redemoinho destas massas humanas deslocadas, pelejando ardorosamente pela sobrevivência, deu-se o nome de mfecane. Teve como resultado, para além do trágico cortejo de vítimas, o desmoronamento de velhos reinos e a emergência de novas e esperançosas nações.
Até a colónia portuguesa de Moçambique, situada para norte, à beira do Índico, não se furtaria ao gigantesco abalo, sofrendo a invasão de um exército de zulus comandados por um dissidente de Chaka - Sochangane, ou Manicusse. Deste cabo-de-guerra africano descenderia um neto não menos famoso, Gungunhana, filho de Muzila, muito celebrado pelos Portugueses nas suas coloridas crónicas de guerra do fim do século, em Moçambique.
Foram territórios em parte desembaraçados de gente que os Bóeres, possuídos de optimismo, cruzaram nos começos do Grande Trek. Mas tratava-se de um despovoamento passageiro, provocado pelas fugas aos massacres. Com a paz, produzir-se-ia o refluxo e o consequente choque entre brancos e africanos. Também os dois mil bóeres de Piet Retief se deixaram embalar por doces ilusões, quando, em Outubro de 1837, transpostas enfim as penedias do Drakensberg, poisaram os olhos extasiados nos campos fecundos e floridos do Natal, contíguos ao Índico.
Com o momentâneo eclipse da ameaça zulu principiou a desvanecer-se o turbilhão do mfecane e dos morticínios a ele associados. Os Bóeres aproveitaram a maré e, em 1839, proclamaram a República do Natal, convencidos de que os portões da terra prometida rodavam enfim nos gonzos para lhes franquearem a entrada. Pura quimera. Ainda mal haviam saboreado o triunfo sobre Dingane e já tinham de novo à sua frente, como num sonho mau, aqueles persistentes Ingleses de que andavam fugidos. (...)" (*)
Souberam que algumas dezenas de aventureiros e comerciantes ingleses se agitavam já na costa e perceberam que tinham acabado de desembocar no coração do império zulu.
Chaka fora assassinado em 1828 por Dingane, seu meio-irmão. Este, molemente afundado na velha poltrona que lhe servia de trono e reconfortado pelos mimos de uma centena de concubinas, dirigia de Umgungundhlovu - o Lugar do Elefante - os destinos do seu temível povo de guerreiros.
Dingane, o Grande Elefante, perante quem os visitantes se rojavam de joelhos, acolheu jovialmente Piet Retief, assim que este chegou acompanhado de um comando de sessenta bóeres. O rei africano nem sequer pestanejou quando os estrangeiros lhe estenderam uma vaga papeleta para que ele lhe apusesse o seu sinal. Não lhe ia decerto pela cabeça que, com aquele displicente rabisco, os seus interlocutores se atrevessem a intitular-se proprietários de uma parcela das suas terras. Mesmo que assim fosse, Dingane, posto de sobreaviso quanto à iminente chegada de alguns milhares de brancos, guardava dentro de si a chave que o libertaria daquela embrulhada.
Assim, a 6 de Fevereiro de 1838 convidou Piet Retief e os seus homens para celebrarem o acordo com generosas libações de cerveja local, enquanto os guerreiros tratavam de os homenagear com danças altivas. Os Bóeres, desarmados, sorvendo com placidez o fumo dos cachimbos, seguiam prazenteiros as evoluções dos dançarinos. Isto durou até ao instante em que o dissimulado soberano, deixando tombar a máscara da cortesia, desatou aos berros: Matem os feiticeiros!
Os guerreiros zulus caíram em fúria sobre os brancos desprevenidos, massacraram-nos até ao último e abandonaram os corpos ensanguentados à voracidade dos abutres.
Era seu propósito infligir aos intrusos uma lição mestra, tão aterrorizadora que os convencesse a debandar, de uma vez por todas, dos seus domínios. Soltou os guerreiros pelos vales e colinas do território, na peugada das famílias bóeres desacauteladas. Perto de trezentos calvinistas - homens, mulheres e crianças -, juntamente com duas centenas de servos hotentotes, foram deste modo chacinados.
Depois da matança, e tal como calculara Dingane, alguns dos brancos decidiram tomar a direcção do Norte, para lá do rio Vaal, à procura de refúgios menos conturbados. A maior parte deles, porém, vigorosamente espicaçados pela determinação das mulheres, entre as quais sobressaía a viúva de Piet Retief, optaram por resistir. Isso trouxe-lhes, até quase ao final do ano, um nunca mais acabar de sobressaltos. Flagelados pelas investidas zulus, passavam dias a fio entrincheirados nos seus laagers.
Os laagers consistiam numa espécie de fortalezas ambulantes formadas por carroções dispostos em círculo, com todos os interstícios vulneráveis atravancados de arbustos espinhosos. Os pioneiros desfechavam desses sólidos abrigos um fogo nutrido sobre os assaltantes e, em ocasiões propícias, montavam a cavalo e desferiam rápidos contra-ataques.
Em Novembro de 1838, senhor de todos os trunfos, o Grande Elefante parecia ter a partida ganha. Naquelas horas de agonia os Bóeres foram vendo desaparecer os seus chefes mais carismáticos. Depois de Piet Retief calhou a vez a Uys, abatido numa emboscada com vários companheiros, e a Maritz, que sucumbiu à doença. Potgieter, que jamais concordara com o malfadado desvio para o Natal, acabou por partir com os apaniguados até à relativa segurança do Vaal.
Em Novembro de 1838, senhor de todos os trunfos, o Grande Elefante parecia ter a partida ganha. Naquelas horas de agonia os Bóeres foram vendo desaparecer os seus chefes mais carismáticos. Depois de Piet Retief calhou a vez a Uys, abatido numa emboscada com vários companheiros, e a Maritz, que sucumbiu à doença. Potgieter, que jamais concordara com o malfadado desvio para o Natal, acabou por partir com os apaniguados até à relativa segurança do Vaal.
Enquanto Dingane se aprestava para o ataque decisivo, operou-se uma reviravolta providencial no destino daquela gente: Andries Pretorius, um abastado proprietário do Cabo que resolvera juntar-se ao êxodo, chegou com o seu comboio de carroções às terras dos Zulus.
Robusto, lúcido e ousado, Pretorius foi eleito comandante dos pioneiros bóeres do Natal. Ordenou que todas as noites se formassem laagers e, bom psicólogo, pressentindo o choque final, manipulou com astúcia o misticismo reinante: convocou o seu meio milhar de combatentes e fê-los jurar que, em caso de triunfo, construiriam um templo comemorativo e passariam a guardar um dia anual de acção de graças. Assim fortalecidos, acolheram-se todos ao laager de sessenta carroções, nas vizinhanças de um estreito curso de água, e esperaram.
Milhares de zulus entoaram cânticos de guerra e lançaram-se sobre os Bóeres. Estes receberam-nos de corações abrasados de fé, com as suas preces, os seus salmos e, como é óbvio, com o fogo das carabinas, sublinhado pelo estampido de algumas salvas de canhão.
Uma e outra vez retrocederam os assaltantes, para logo retomarem a ofensiva. Os mais destemidos conseguiram transpor a barreira de fogo e trepar aos toldos dos carroções, pulando para o interior do círculo defensivo. Aqui se feriu um selvático combate à zagaiada e à machadada, em que o próprio Pretorius escapou à morte por um fio.
Três horas após o início das hostilidades, o exército zulu achava-se exausto e em retirada. Os cadáveres de três mil guerreiros cobriam o solo, contra perdas insignificantes dos defensores, e as águas do riacho adquiriram por instantes a pavorosa tonalidade do sangue das vítimas. Por tal facto, os Bóeres aludiriam daí em diante a este evento como a Batalha do Rio do Sangue.
No arrebatamento da vitória, um numeroso comando calvinista saiu em perseguição do exército inimigo destroçado, fustigando-o ao longo de quilómetros. Dingane, com o orgulho de rastos, deixou aos inimigos Umgungundhlovu em cinzas, onde, não obstante, os Bóeres arranjaram maneira de recuperar os despojos de Piet Retief e o texto do acordo celebrado com o Grande Elefante. Chegaria em breve o tempo de neste se cumprir a espécie de maldição que há muito pairava sobre o destino dos soberanos zulus. Assassino do grande Chaka, que fora, por sua vez, proscrito na infância pelo pai, Dingane acabaria traído e derrotado pouco mais tarde por seu irmão Mpande, que um missionário descreveria como um verdadeiro cavalheiro banto. Posto em fuga, o Grande Elefante seria assassinado na Suazilândia.
Com o momentâneo eclipse da ameaça zulu principiou a desvanecer-se o turbilhão do mfecane e dos morticínios a ele associados. Os Bóeres aproveitaram a maré e, em 1839, proclamaram a República do Natal, convencidos de que os portões da terra prometida rodavam enfim nos gonzos para lhes franquearem a entrada. Pura quimera. Ainda mal haviam saboreado o triunfo sobre Dingane e já tinham de novo à sua frente, como num sonho mau, aqueles persistentes Ingleses de que andavam fugidos. (...)" (*)
(*) - José Bento Duarte - Senhores do Sol e do Vento - Histórias Verídicas de Portugueses, Angolanos e Outros Africanos - Editorial Estampa - Lisboa - 1999
NOTA IMPORTANTE
FOI RECENTEMENTE LANÇADA pela editora Perfil Criativo (Autores.Club) a 3.ª edição desta obra, revista e reestruturada pelo autor (Maio de 2022):
Pode aceder a mais informações nos links abaixo:
1 – APRESENTAÇÃO GERAL DO LIVRO ---- Clicar em:
Senhores do Sol e do Vento | José Bento Duarte | Angola (autores.club)
2 – APRESENTAÇÃO COM OPINIÕES DE VÁRIOS CRÍTICOS ---- Clicar em:
Senhores do Sol e do Vento – AUTORES.club
(3.ª edição) (Perfil Criativo - AUTORES.club) |
Sem comentários:
Enviar um comentário