quinta-feira, 26 de julho de 2007

Iberismo (Ibéria: capital Lisboa)




Transposto de O António Maria:


Ibéria: capital Lisboa


"Não sou profeta, mas Portugal acabará por integrar-se na Espanha" - José Saramago in Diário de Notícias online, 15.07.2007

Não fora o homem estar eterna e agradecidamente enamorado de uma linda sevilhana chamada Pilar del Rio, que muitíssima importância teve para o êxito internacional do escritor ribatejano, e o assunto do seu reiterado iberismo mereceria, de facto, extenso debate, em vez da urticária que atacou imediatamente alguns arautos profissionais da portugalidade. No entanto, o "sentido de oportunidade" da sua entrevista ao Diário de Notícias, fazendo-a coincidir com a visita do rei de Espanha a Portugal no âmbito da presidência portuguesa da União Europeia, teve o esperado condão de excitar os espíritos fracos de ambos os lados da fronteira.

O El País excita-se sempre nestas ocasiões e descobre, espantado, que Portugal existe (e continua a ser apetecível), e o Manuel Alegre (que parece ter-se esquecido dos seus mais recentes compromissos com o movimento de cidadãos que desencadeou, e sobretudo com parte importante da base militante e simpatizante do PS) fez previsivelmente ouvir a sua voz adamastórica: "Ele (Saramago) tem a responsabilidade de ter ganho o Nobel da Literatura com a língua portuguesa".


Saramago regressa às "portadas" dos jornais e televisões, e à netosfera, com uma questão típica do século 19: o iberismo. Homens de uma bem mais notável craveira intelectual que Saramago, refiro-me a Miguel de Unamuno, Antero de Quental, Teófilo Braga e António Sérgio, ou mesmo a escritores seus contemporâneos, como Miguel Torga, António Lobo Antunes e Eduardo Lourenço, sonharam ou sonham igualmente com formas mais ou menos evoluídas de iberismo. O já desaparecido José Rodrigues Miguéis, num dos seus deliciosos bilhetes postais publicados no extinto Diário Popular, falava, mais limitadamente, de uma nova quimera que baptizou com o nome Portugalícia.


Em suma, se durante tantos séculos fomos aliados dos ingleses, para nos defendermos dos castelhanos, depois da vergonhosa Conferência de Berlim (1884-1885) e do ultimato inglês a Portugal, rejeitando o Mapa cor-de-rosa (com que Portugal pretendia assegurar uma boa presença na partilha colonial do continente africano então em curso pelas principais potências europeias), tal ideal estratégico chegara irremediavelmente ao fim. Por outro lado, a decadência mais geral e profunda dos povos peninsulares, verberada por Miguel de Unamuno, tornar-se-ia uma realidade cada vez mais pesada de consequências, tanto para os povos ibéricos como para os dois estados que os protagonizam.

A Espanha deixou entrar Napoleão no seu território a pretexto de obrigar Portugal a cumprir o bloqueio contra os ingleses, a decadente corte lusitana, em consequência desta invasão francesa, fugiu para o Brasil. Mais tarde, a derrota espanhola de 1898, na disputa com os Estados Unidos pelo controlo do continente americano, mergulharia este país num declínio económico e político de que só sairia após a morte de Franco. Perdidos os impérios coloniais espanhol e português, findas as ditaduras oportunistas que emergiram da crise finissecular em ambos os países, criada a União Europeia, nada mais natural do que repensar as relações entre os vários povos ibéricos, entre as várias nações históricas da península e entre os dois estados que há muitos séculos protagonizam as suas alegrias e as suas tristezas.

Tudo isto pode e deve ser feito, com tempo, com cautela, com transparência e sobretudo com elasticidade. Mas daí a alimentarem-se ilusões sobre uma nova união ibérica vai um passo de gigante demasiado improvável. A menos que a capital dessa união seja Lisboa, claro!Post scriptum: Há um argumento falacioso, muito bem montado por alguns estrategas do iberismo castelhano, expresso aliás num recente artigo de Santiago Petschen, que convém desmontar a tempo de evitar excessivos optimismos face à utopia de dissolver o secular bicefalismo geo-estratégico da jangada ibérica.
Petschen resume-o de forma fina e sedutora:

"Há alguns anos, depois de uma exposição que li no Instituto de Defesa Nacional de Lisboa, num português macarrónico, dialoguei com os militares sobre as relações entre os espanhóis e os portugueses e surgiram algumas queixas. Perguntei então: estão de mal com os galegos? A resposta imediata foi: não! Estão de mal com os andaluzes? Também não. Mal com os catalães? De maneira nenhuma. Mal com os bascos? Absolutamente, não. E continuei: os estremenhos, os aragoneses, inclusive os manchegos e os madrilenos. Para com todos os mencionados mostraram os dialogantes a sua simpatia. Só apareceu um cliché, resquício de irredutibilidade, o dos castelhanos velhos. Disse-lhes então: os senhores não têm nada a temer. Portugal e Castela a Velha contam com um número parecido de quilómetros quadrados. Mas sobre a mesma extensão encontram-se, em Portugal, dez milhões de habitantes e em Castela a Velha pouco mais de dois milhões. A estatística, tão favorável a Portugal, produziu no auditório desconhecedor do dado uma surpresa. Dissipou-se, com isto, uma percepção errónea." - "O iberismo", Santiago Petschen, Prof. catedrático de Relações Internacionais na Univ. Complutense de Madrid, in DN online
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Como é evidente, o problema do poder não se mede hoje em dia pelo critério demográfico, particularmente se estão em causa escalas tão exíguas. O que conta hoje e no futuro próximo são as grandes concentrações urbanas (Madrid, Lisboa-Porto, Barcelona-Valencia) e os sectores-regiões económico-financeiros, logísticos, tecnológicos, de serviços e político-militares, que as mesmas representam e controlam. Neste sentido, seria imperdoável tolerar que a ingenuidade prevalecesse sobre o realismo dos jogos de estratégia em curso. Madrid pretende hegemonizar radialmente a península ibérica - e para isso, tudo tem feito, no sentido de transformar a capital espanhola numa super-metrópole política e financeira. Lisboa, com o Porto e Barcelona (e Bilbao), não estarão jamais dispostos a sucumbir a esta estratégia, e por isso continuarão a desenvolver esforços para consolidar, sob todos os pontos de vista, os aneis atlântico e mediterrânico, de que a sobrevivência estratégica da península afinal depende.


A União Europeia irá passar nas próximas décadas por duras provas à sua consistência estratégica e à sua governabilidade interna, sobretudo por causa das questões energéticas, ambientais, mas também das que respeitam à imediata questão do alargamento. Deverão a Turquia e Marrocos integrar-se na União Europeia, como pretende a Alemanha e vários estados da União (entre eles, Portugal e Espanha), ou, pelo contrário, formar com o resto do Magrebe uma União Mediterrânica, como quer Sarkozi? Se os EUA atacarem o Irão, e a Rússia sair em defesa deste, que fará a Europa? Qual Europa? Portugal é um estado independente há 868 anos; a Espanha é um reino unificado e independente há 538 anos. Vamos pois deixar, para já, as coisas como estão, e um dia, quando a Europa for o que promete, voltemos então a discutir a organização política da ibéria. "

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