segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Os que foram... (2)



"Aos poucos, as fotografias tornam-se ilegíveis.
Quem vai identificar estas pessoas, quem se lembrará delas?
Já não reconheço muitos dos que encontro nas molduras ou nos álbuns de família. Ou então conheço-os de uma única imagem, a que está à vista.
Alguns deles pertenceram durante décadas a uma pequena categoria, “os mortos”; mas agora já há muitos mortos, só há pouco tempo me apercebi de que eram tantos. I had not thought death had undone so many (*), escreveu o Eliot.

De alguns familiares ainda vivos quando nasci, não guardei memória alguma ou tenho uma memória vaguíssima (o meu avô paterno, um tio materno com quem estou numa fotografia de que gosto muito); mas de entre aqueles de quem me lembro, que devastação.

Aos poucos, e depois de repente, as minhas recordações antigas são recordações de gente que morreu. Os meus avós. A minha madrinha, irmã do meu avô. A meia-irmã da minha avó. O meu tio (…).


Lembro-me de salas de estar e de jantar cheias destas pessoas, umas no quotidiano, outras nas férias, nas festas, gente das fotografias que conheci muito bem, ou não tão bem, de quem guardo histórias, gestos, expressões, memórias que não ficam, desaparecem eles e elas, depois as histórias, depois aqueles que deles e delas se lembravam.
Porque com o tempo acaba-se a distância de segurança, a ideia tranquilizadora e intolerável de que morrerão duas gerações antes de morrer a nossa.

Do tempo dos avós, já não temos ninguém. Da geração dos pais estão vivas sete pessoas (sete ao todo, dos dois lados, como é possível?). Mas também perdemos três dos meus primos rapazes, pouco mais velhos do que eu. E sabemos que não sabemos o dia nem a hora.

A morte dos outros é mais difícil do que a nossa, porque vivemos a morte deles e não viveremos a nossa. E porque a morte dos outros significa o desmantelamento do nosso passado, a inexistência do nosso passado, do qual deixa de haver prova indiscutível.


Ficam imagens, objectos, detritos, coisas em gavetas que nada dirão aos vindouros. E os nossos mortos fazem-se não apenas pó, mas nevoeiro, figuras extintas, indistintas, irrecuperáveis.

Enquanto isso, talvez por isso, mantemos vivos os vivos, como numa fotografia deste verão que os meus primos me mandaram: as quatro irmãs, uma das quais minha mãe, na casa dos meus avós. A fotografia garante a veracidade da nossa vida através da veracidade da vida delas. É o contrário das fotografias dos mortos, não apenas por estarem as quatro vivas, mas porque, estando vivas, tornam mais sólido e mais imaginariamente eterno o nosso mundo, as nossas memórias, a comunidade que faz de nós irmãos e primos.

Nenhum fotografado sobrevive: nem as pessoas desta fotografia nem nós que a enviámos uns aos outros com uma alegria feroz e assustada; mas é a família que nos faz, mesmo quando nos desfaz. Somos feitos à imagem desta imagem fugaz." (**)




…………………...



(*) Eu não tinha pensado que a morte extinguira tantos.
(**) “À Imagem” – Crónica de Pedro Mexia na E – Revista do jornal Expresso – Edição 2445 – 7-Setembro-2019 – pág. 106 - Lisboa – Portugal.

(Ilustrações da responsabilidade da Torre da História Ibérica)

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