sábado, 7 de fevereiro de 2009

Aberturas de Grandes Livros - "A Guerra de África em 1895" (António Ennes - Portugal)

 

“Saímos de Lisboa, no Sud-Express, a 8 de Dezembro, no fim de um cintilante dia em que o sol emprestara galas e alegrias primaveris à festa da padroeira do reino, e a 12 à noite largámos de Marselha no Iraouaddy, das Méssageries Maritimes, navegando mansamente dentro duma imensa redoma de luar azulado.
Por cima da casaria da cidade, escura e ponteada de luzinhas, faiscava a branca Vénus; o ar estava macio e límpido, o mar chapinhava compassadamente no costado do navio. Mas o Iraouaddy contrastava com aquele cenário de bonança e paz, porque levava o enorme bojo cheio de guerra.

Connosco, que íamos abrir uma campanha em Moçambique, tinham embarcado oficiais e soldados franceses, incumbidos dos primeiros preparativos da expedição a Madagáscar; o alteroso navio era, pois, um repto mandado pela Europa à África, e muitos dos seus passageiros, arautos ou mantenedores desse repto, devem ter olhado ansiosos, ao distanciarem-se de terra, para o negro vulto sobranceiro de Notre-Dâme-de-la-Garde, pedindo nesse olhar de despedida à Mãe de misericórdia que os guardasse dos perigos ignotos que iam afrontar.

Quantos terão sido ouvidos? Quantos estarão hoje vivos, desses nossos joviais companheiros, que se desenfastiavam do mar improvisando cafés-concertos, em que um escotilhão servia de palco, sobre o qual os veteranos requeimados do Tonquim vozeavam hinos patrióticos, e os gaiatos de Paris promovidos a guerreiros sublinhavam cançonetas escabrosas?

Foram corteses connosco, essas predestinadas vítimas da biliosa e da disenteria. No dia de Ano Bom, já no mar das Índias, deram um espectáculo de gala no convés enfeitado a capricho, e o cortinado, corrido a meia nau, que fazia fundo à cena, era formado pelo estandarte tricolor tendo suspensas à direita a bandeira portuguesa e à esquerda a da Rússia.
Champagne em honra de Portugal, trocaram connosco votos efusivos pela fortuna das armas que todos íamos levar ao mundo negro, e dois dias depois, em Mayotte, quando passámos para bordo da Afonso de Albuquerque, apinharam-se nas amuradas para se despedir de nós agitando os kepis, acenando com os lenços, gritando saudações. Bon voyage! Bonne chance! (…)”.

A Guerra de África em 1895 - António Ennes (1848-1901) (Publicado por Edições Gama, Lisboa, 1945)

Aos interessados: foi recentemente reeditado pela Prefácio, Lisboa (€ 32,00).
Também disponível na Biblioteca Nacional de Lisboa (Cota --- H.G. 17660 V.)

Sem comentários: