quarta-feira, 14 de julho de 2021

A "Volta ao Mundo", de Ferreira de Castro (4) - Em Istambul, na Turquia (entre sepulturas abandonadas, paredões milenares e memórias sinistras...)


Reveja as anteriores "Volta ao Mundo", de Ferreira de Castro (aqui 1aqui 2 e aqui 3)


Istambul (antiga Constantinopla)


“Volvemos à Praça Bajazed e daqui partimos para os últimos bairros da cidade. Não fora a arquitectura dos templos, dir-se-ia que transitávamos em certos lugarejos ibéricos, com as mesmas gentes, os mesmos trajes, as mesmas expressões de vida simples e pobre.

Passamos por entre rústicas casitas, ruas de humildes famílias e de cabras – e as velhotas que tomam sol à porta, sobre as lajes, vão-nos apontando o que buscamos. Atingimos, assim, nesta espécie de aldeia, metida fraternalmente na cidade, a mesquita Kahriye, pequenina, graciosa igreja de há milénios, mais velha do que Santa Sofia, tão velha que ignora a sua verdadeira idade e tão modesta em tamanho quão grande é o seu valor.

Ela constitui um dos mais importantes monumentos que nos deixou a arte bizantina. Tem apenas uma nave e um corredor em sua volta, tudo minúsculo; mas os mosaicos que nas paredes se vêem são dos mais belos que existem, pela beleza ingénua, cheia de ternura, que as figuras apresentam.

Mesquita Kahriye

Fica a mesquita Kahriye perto da porta de Andrinópola, e, para um lado e outro, estendem-se, a perder de vista, as célebres muralhas de Constantinopla, que defendiam a cidade pelo lado de terra.
Constituem um dos mais impressionantes espectáculos de Istambul estes remotos paredões duplos e ameiados, longos de sete quilómetros, semi-derruídos aqui, intactos mais além, parece correrem por um solo selvagem, até se fundirem na linha do horizonte e se perderem no infinito. Eles dão, na sua velhice, uma profunda impressão de grandeza decrépita, de orgulho abatido. Vêem-se, ainda, arcos de portas, ameias dispersas e velhas torres que se erguem, mutiladas, fantasmais, sobre os amuralhados.

Em certos sítios, os pobres fincaram as suas choupanas junto das vetustas pedras protectoras e vivem familiarmente, um pouco promiscuamente, nos lugares onde tiniam, outrora, as armas dos guerreiros.

Ao longo da muralha segue um enorme fosso, hoje ocupado por alfaces e tomateiros, e, nos terrenos vizinhos, alargam-se vastíssimos cemitérios, com cabras e ovelhas comendo a erva das sepulturas. São as necrópoles actuais, mas, pelo abandono, parecem de há milhentos anos. Nenhuma cerca as veda.


Quando entramos numa delas, o coveiro acaba de levantar a pá e a enxada de uma tumba recém-fechada. E, seguido por várias mulheres, desaparece, ficando apenas, junto da terra revolvida, um homem envergando uma espécie de balandrau. Esse homem tem uma atitude rígida, olha para longe, sempre na mesma direcção, e fala sozinho. Recomenda o morto a Allah. E repete, sempre monotonamente, as últimas palavras. Ninguém o acompanha, ninguém. Está sozinho junto da nova sepultura, a soltar o seu cantochão, enquanto, ao longe, entre as campas, brincam crianças.

Em frente dele, uma velha pastoreia a sua ovelha no cemitério. Sentou-se sobre uma lápide tombada e olha para o homem com indiferença. Parece que, para ela, aquilo não tem importância alguma. Deve estar habituada a vir, todos os dias, com a ovelha, a esta necrópole, até que lhe chegue a vez de vir definitivamente – e a cena já não a impressiona. O homem do balandrau acaba a encomendação e parte também. De hoje em diante, ou depois de colocada a lápide vertical, o morto acabará abandonado para sempre.

Aproximamo-nos da terra remexida. Este corpo humano desconhecido, que repousa sob os nossos pés, dá-nos uma emoção intensa, uma ânsia de solidariedade perante o destino inexorável, como se o quiséssemos compensar da sua morte, do seu abandono, de tudo quanto nós sabemos ser inútil e que persiste na nossa alma como a mais trágica impotência. Ignoramos quem ele foi – homem ou mulher, velho ou novo – mas dir-se-á que um instinto da espécie pretende libertar da lei fatal todos os outros, através deste ser ignorado.

Castelo das Sete Torres

Vamos seguindo ao longo das muralhas. No seu extremo, já à beira do Mármara, expõe-se uma das mais célebres fortalezas orientais – o Castelo das Sete Torres. Em volta de curta esplanada, os antigos bastiões mantêm-se quase todos de pé, embora esbeiçados em certos passos. Existem ainda, porém, grande parte das ameias e as torres pretéritas. Cá fora, desenha-se a Porta Dourada, que também foi famosa, pois através dela passavam, em sua fulgurância, os cortejos dos imperadores bizantinos.

Construída por Teodoro, o Grande, há cerca de dezasseis séculos, os turcos, quando tomaram Constantinopla, taparam-na, para evitar que, segundo uma profecia, passassem por essa porta os futuros conquistadores da cidade. Hoje, só existem duas pequenas entradas laterais, mas vêem-se perfeitamente as pedras que entulham, por completo, a velha Porta Dourada.

Dentro do Castelo das Sete Torres, que serviu de prisão de Estado, encontram-se sinistras galerias e escadas estreitíssimas que dão para outras galerias mais sinistras ainda. Ao longo dos corredores abrem-se lôbregas celas. Todas estas húmidas paredes viram crueldades sem nome. Para aqui enviavam os sultões os embaixadores dos povos com quem andavam em guerra e, mais tarde, eram aqui metidos os próprios sultões que os janízaros destronavam. A esta espécie de Bastilha vinham também parar os grão-vizires e outras altas personagens da Turquia. Decapitavam-nos, depois, e expunham-nos sobre as ameias.


Tinham-se inventado as mais estranhas torturas. Está ainda aberto um poço onde os prisioneiros viam lançar as cabeças daqueles que os antecediam na morte. Conhecem-se os nomes de milhares de figuras que foram aqui assassinadas; mas muitas das execuções eram feitas em segredo e o número das vítimas é, por isso, incalculável.

Contudo, desta trágica masmorra, das suas remotíssimas ameias, frui-se um panorama deslumbrante. Abrange-se parte da grande muralha que cerca Istambul e os isolados paredões que restam das primitivas muralhas bizantinas, à beira-mar. E vislumbram-se, ao longe, a cidade das cúpulas e minaretes e, em frente, o Mármara, com as suas velas brancas.

Em baixo, nas patorras do castelo, vêem-se campas seculares. Entre elas verdejam alfaces tenras, que o fúnebre hortelão arranca, lava e vende mais adiante, na paragem do carro eléctrico, aos turcos que as vão comendo, regaladamente, pelas ruas fora…”

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