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Nota Prévia
Os Portugueses começaram a construir cedo, por volta de 1482, os alicerces daquilo que mais tarde seria a sua grande colónia de Angola, na costa sudoeste da África. Nesse tempo, reinando em Portugal D. João II, os navios de Diogo Cão deram com a embocadura do rio Zaire e as tripulações entraram em contacto com os habitantes do reino do Congo (os Bacongos), que os receberam sem o menor sinal de hostilidade.
Os Portugueses chegaram pouco depois ao reino do Ndongo, um pouco mais a sul, e movimentaram-se em torno da área litoral onde actualmente se localiza Luanda, a capital. Estavam na terra dos Ambundos. Entretanto, o negócio da escravatura viera já manchar o que começara por ser um encontro pacífico e festivo entre povos diferentes.
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No tempo do capitão-mor Paulo Dias de Novais (neto do navegador português Bartolomeu Dias e fundador da cidade de Luanda) passara cerca de um século sobre a viagem pioneira de Diogo Cão. Os Portugueses deparavam, agora, com a resistência militar do senhor do Ndongo, Ngola Kiluanje.
Nas guerras que se seguiram, contavam com vários trunfos: exércitos treinados, bem armados, e uma ambição insaciável pelos filões de prata que supunham enterrados nas encostas de Cambambe.
E tinham ainda do seu lado aquilo que constituiu, porventura, a mais poderosa ponta-de-lança do seu avanço para o interior do território nesta fase inicial da colonização - contingentes destemidos e determinados de padres jesuítas.
Estamos no ano de 1585…
“(...) A meio do ano de 1585 o rei Ngola Kiluanje acedeu ao pedido de um súbdito audacioso, Ndala Kitunga, que se lhe ofereceu para conduzir um exército do Ndongo contra as forças do português Novais.
Kitunga era um ambundo cristianizado que, por razões ignoradas, resolvera desligar-se dos protectores europeus. Kiluanje colocou à sua disposição um efectivo numeroso e, além do armamento tradicional, forneceu-lhe pólvora e armas de fogo. Depois lançou-o no encalço do inimigo.
Movendo-se para ocidente, Kitunga esbarrou com o exército português na região da Ilamba, acima do Cuanza. Os Lusitanos, comandados pelo capitão André Ferreira Pereira, contavam perto de centena e meia de soldados europeus e dez mil frecheiros negros, arregimentados entre os povos recentemente vencidos.
O combate deu-se a 25 de Agosto, com os contendores envolvidos por espessos lençóis de nevoeiro. Em situação de inferioridade numérica, os Portugueses fizeram uso de todos os trunfos. Através da cerração, fustigaram os esquadrões inimigos com disparos de artilharia, arremessaram-lhes cargas de cavalaria avassaladoras e puseram em campo a violência brutal dos seus veteranos.
Mas guardavam na manga uma surpresa especial.
Os Ambundos viram de repente brotar da brancura opaca do nevoeiro alguns vultos de pêlo eriçado e fauces espumantes de raiva: eram matilhas de cães bravos, presumivelmente trazidas pelos invasores das ásperas serranias portuguesas para terror dos adversários africanos.
Embora se entregassem à luta com indómita coragem - três vezes se viram desbaratados, outras tantas tornaram à refrega -, os homens de Ngola Kiluanje sofreram um desaire esmagador.
A mortandade atingiu tais proporções que os Portugueses temeram que os seus relatos fossem colocados em dúvida no bastião de Luanda. Trataram por isso de recolher uma cruenta prova do seu triunfo: foi assim que expediram para a retaguarda uma infinidade de vasilhas repletas de narizes dos inimigos tombados em combate.
Segundo os cronistas lusos, desaparecera na batalha a fina flor da fidalguia angolana, tendo sucumbido vários parentes e homens de confiança de Ngola Kiluanje.
Quanto ao temerário Ndala Kitunga, pagou cara a ousadia. Caído nas mãos dos Portugueses, foi escrupulosamente confessado e encomendado a Deus por um religioso, após o que o confiaram ao carrasco a fim de ser decapitado e lançado às chamas de uma fogueira para exemplo de quem ficava.
Uma vez inauguradas as hostilidades, jamais deixaram os conquistadores de contar com um apoio muito peculiar - o dos padres jesuítas.
Com efeito, estes homens perseverantes mantiveram-se sempre por perto de Novais e das suas tropas, tratando sem desfalecimentos do seu negócio da cristandade.
Com efeito, estes homens perseverantes mantiveram-se sempre por perto de Novais e das suas tropas, tratando sem desfalecimentos do seu negócio da cristandade.
Às vezes não hesitavam em embrenhar-se nos perigosos trilhos da guerra, como na altura em que o recrudescimento da resistência ambunda fez afluir a Luanda muitos dos portugueses dispersos pelo mato.
Prevenindo o desastre, o padre Baltasar Barreira desceu apaixonadamente à liça, exortando os timoratos a pegarem em armas e a cerrarem fileiras ao lado dos seus irmãos cercados em Macunde pelos Ambundos.
Mas o padre não se limitou aos sermões.
Metendo-se pelas margens do Cuanza acima, arrastou consigo uma legião de homens galvanizados, armados até aos dentes e providos de abundantes mantimentos, levando até aos sitiados um miraculoso balão de oxigénio.
Acolhido com júbilo no reduto ao som de flautas e charamelas, Barreira propiciou com a sua iniciativa uma bem sucedida ofensiva portuguesa.
Anos mais tarde, seria um seu correligionário, o padre Afonso, quem transportaria até ao próprio Paulo de Novais, refugiado na fortaleza de Massangano, um decisivo auxílio de última hora.
O capitão-mor soube mostrar-se reconhecido para com estes preciosos aliados, tornando-os beneficiários de uma copiosa série de doações em terras e rendimentos. E, também, em filões de prata - reais ou imaginários.
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Dissipada a feroz exaltação das batalhas, e em caso de êxito, os Portugueses revelavam-se geralmente tolerantes para com os vencidos. Isto, como é evidente, desde que estes aceitassem de boa mente a sua lei.
Os jesuítas desempenharam um papel crucial no delicado processo de aproximação. Marchavam, imperturbáveis, na peugada dos destacamentos em operações, e penetravam, de crucifixos em punho, nos povoados submetidos. Compareciam logo depois da passagem dos veteranos de Novais, das matilhas enraivecidas, dos cascos esmagadores da cavalaria, do susto dos arcabuzes e das peças de artilharia.
Com a visita dos padres, os Ambundos adquiriam consciência da outra face do invasor. Recebiam com um misto de reverência e curiosidade supersticiosa esses homens estranhos, que lhes ofereciam o bálsamo das suas palavras aliciantes, compassivas e cordatas.
Porém, como não tardaram a compreender, a brandura dos religiosos podia desvanecer-se num abrir e fechar de olhos. Bastava que eles pressentissem nas aldeias a presença de feiticeiros, muito considerados e temidos pelos Ambundos. Nessas ocasiões, possuídos de incontrolável excitação, os padres afadigavam-se em devassas minuciosas, na pista dos ídolos, amuletos e demais utensílios das práticas de magia.
Quando descobertos, tais apetrechos acabavam nas chamas de piras gigantescas.
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Os jesuítas achavam-se piamente convencidos de que os feiticeiros, esses seres reservados e imperscrutáveis, com olhos de verruma, mantinham tenebrosas alianças com o demónio - o Pai das Maldades, como eles diziam. Relatavam achados arrepiantes.
Um dia tinham dado com uma idosa e encarquilhada criatura apregoadamente capaz de comandar a chuva e a doença com os seus expedientes mágicos. Embora se tratasse na realidade de um homem, maléficos desígnios haviam-no condenado a viver como mulher. Apertado por aqueles tenazes evangelizadores, o mago cedeu e mudou de condição, acabando rendido às excelências da virilidade.
De outra vez, os jesuítas desvendaram o enigma de uma velha cabra, utilizada pelo seu proprietário, o ladino Manicafanze, em abomináveis exercícios de bruxaria. A instâncias dos padres, e após inúmeras prédicas e missas de desagravo, o bicho findou sem glória os seus dias satânicos, devorado pelo povo num festivo banquete.
As artes de sedução dos jesuítas mostravam-se muitas vezes irresistíveis, mesmo quando exibidas diante de homens poderosos que se haviam batido com valentia contra os invasores. Isso ficou demonstrado de modo exemplar no caso do nosso conhecido soba de Songa.
Derrotado pelos Portugueses, este chefe da Quissama tornou-se alvo das desveladas atenções dos padres. O senhor de Songa, tal como sucedera nos tempos antigos com inúmeros fidalgos do Congo, deixou-se arrebatar pela oratória transbordante de promessas daqueles sábios interlocutores. Eles pareciam deveras empenhados em franquear-lhe a entrada no mundo fascinante e intangível de que guardavam o segredo.
Para Songa, como para grande parte dos seus conterrâneos, importava sobretudo ascender a esse espaço rico de influências mágicas e de espíritos invencíveis. Ele pressentia a parcialidade dos entes sobrenaturais dos brancos, sempre inclinados a socorrerem as hostes que chegavam do mar para assolarem as margens do Cuanza. Mal o sentiram vacilar à beira da conversão, os jesuítas aprontaram-lhe, de combinação com as autoridades militares, uma pomposa festa de baptismo.
Songa foi conduzido com um séquito imponente até Macunde, onde o capitão-mor Novais, que ele escolhera para padrinho, o recebeu com afabilidade, rodeado de muitos dos comandantes da conquista.
O cortejo, abrilhantado por músicos portugueses, desfilou com majestade até um templo improvisado, revestido de sedas verdes e coberto de ramos de palmeira. Para admiração e regozijo dos seus, Songa apresentou-se sumptuosamente enfarpelado à europeia. Trajava roupeta de cetim cinzento, capa de racha, gorra de seda e botas cor-de-laranja.
Num gesto de cortesia, o chefe africano seleccionou para seu nome de baptismo o de Paulo de Novais. Este proferiu um discurso emocionado, congratulando-se com a conversão. Honrou depois o senhor de Songa com o título de capitão-mor do povo da região e com o privilégio de lhe ser permitido sentar-se em alcatifa diante de qualquer autoridade portuguesa.
O soba sentiu-se feliz e recompensado. Nos dias imediatos os padres não tiveram mãos a medir com a multidão de ambundos que, tocados pelo gesto do seu senhor, acorriam a fazer-se igualmente cristãos.
Com os progressos da conquista e as consequentes cerimónias religiosas, começaram a acumular-se as aparições nos céus do Ndongo. Esses sinais extraordinários obtinham a sisuda confirmação de um sem-número de brancos e negros.
Falava-se de cruzes deslumbrantes a emergirem de entre os novelos algodoados das nuvens. Provocava especial assombro a visão de uma mulher de semblante grave, amparada por um ancião de barbas esvoaçantes e alvas. Particularidade perturbadora: o velho comparecia armado de uma fulgurante espada de fogo.
Os ambundos convertidos exultavam. Para seu deleite, no tempo das aparições ocorriam também chuvadas providenciais, autênticas bênçãos para as sementeiras. Tanto mais que as terras dos idólatras, ainda arredios às palavras macias dos venerandos sacerdotes, jaziam ressequidas, gretadas e estéreis.
Apesar destes sucessos, Paulo Dias de Novais acabaria por sucumbir, enclausurado em Massangano, sob a inclemência do clima e a erosão dos golpes da resistência ambunda. Sobrecarregado de dívidas, gasto pelas desilusões, precocemente envelhecido, findou os seus dias neste mundo a 9 de Maio de 1589. Vira desaparecer, engolidos pelo turbilhão dos combates, muitos dos seus companheiros de armas, sem que se materializassem os sonhos da prata ou de uma apoteótica entrada em Kabassa.
A crua realidade é que Novais se mostrara incapaz de cumprir uma parcela substancial das obrigações impostas pelo malogrado rei D. Sebastião. Isto conduziu a uma relevante transformação política. De facto, com o desaparecimento do capitão-mor, a carta de doação tornou-se letra morta e a Coroa espanhola (que entretanto se apoderara de Portugal) decidiu enveredar por uma diferente alternativa de colonização, assumindo directamente a responsabilidade da orientação e do financiamento da empresa.
Em meados de 1592 chegou a Luanda o primeiro governador designado na época da ocupação espanhola de Portugal. Tratava-se de Francisco de Almeida. Inaugurou uma extensa lista de quase duas centenas de homens que, durante perto de quatro séculos, conduziriam os destinos da colónia com sorte, empenho e talento muito diferenciados.
Neste ocaso do século XVI a situação dos Portugueses no território, não sendo brilhante, permitia-lhes a concretização dos objectivos mais imediatos. Detinham uma sólida retaguarda no litoral e guarneciam alguns postos avançados nas terras contíguas ao Cuanza.
Era o bastante para que o sistema funcionasse: a mão-de-obra escrava continuava a deslizar dos sertões para os navios ancorados junto à costa.
O Ndongo conservava, entretanto, a sua independência (...)". (*)
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(*) - José Bento Duarte - Senhores do Sol e do Vento - Histórias Verídicas de Portugueses, Angolanos e Outros Africanos (pág. 45-48) - Editorial Estampa - Lisboa - Portugal - 1999.
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