Pequenas e grandes histórias da História e mensagens mais ou menos amenas sobre vidas, causas, culturas, quotidianos, pensamentos, experiências, mundo...
São os Açores no talhe e feição muito semelhantes aos Gaviões, ainda que maiores de corpo, em cuja grandeza excedem a todas aquelas aves que de rapina se sustentam (deixando à parte a Águia, que esta a todas se avantaja na grandeza).
De suas propriedades tratarei adiante.
Criam os Açores seus filhos em muitas partes do universo, em serras e lugares montosos, cheios de grandes bosques e arvoredos.
Nestes fazem seus ninhos; criam uma vez no ano.
Em Maio começam a fabricar seu ninho; põem de três até cinco ovos; os primas (fêmeas) estão sempre sobre eles, os treçós (machos) em todo o tempo que a fêmea está chocando lhe trazem de comer perdizes, pombas, e às vezes láparos e rolas.
Quando lhes trazem a caça que tomam, pousam em certa árvore, que para isso tem perto, e chama a prima (fêmea) com piados, a qual se levanta e vem voando; em chegando perto larga o treçó (macho) o que lhe traz para comer; ela antes que chegue a terra o toma.
O treçó (macho) em largando a caça se vai voando tão apressadamente que parece temer a prima (fêmea), a qual, em comendo, se torna aos ovos, e neles está mais tempo a tirar os filhos que as galinhas.
Tirados (os filhos) se deixa estar alguns dias até eles estarem enxutos da humidade do ovo e cobertos de penugem.
Se a mãe sente que a quentura do sol enfada aos filhos, enrama o ninho e os ampara com as asas estendidas.
Tem cuidado de lhes dar de comer a miúdo.
Neste nosso tempo vieram a acabar os Açores nestas partes, (pois) que chegou a ser tão excessivo o preço que por cada um em pequeno se dava, que os homens cobiçosos que os tomavam, em achando o ninho o guardavam, para que outros lho não furtassem.
(Certa) vez aconteceu que uns (homens) escondidos esperaram que aqueles que os guardavam fossem buscar de comer e entretanto lho furtaram.
E vieram a tomar aos pobres pássaros os ovos, e os deitaram a outras aves.
A mim me contou um destes (homens), que mos costumava vender, que subindo a uma árvore a tomar os ovos de um Açor, o prima (fêmea) e o treçó (macho) se levantaram e se meteram mui alto no céu, e julgou que daquela vez passavam a África, e nunca mais criaram naquela serra vermelha, onde isto aconteceu.
Pode muito bem ser.
Em muitas partes de Espanha se tomam Açores em pequenos, como em Navarra, e na terra dos Gélves, nas Astúrias, e em Galiza; e de quaisquer partes que à mão vierem Açores em pequenos os criaram como fica dito no capítulo que trata da criação dos Gaviões, e os cure com a mesma arte, notando que, sendo os Açores já de quatro betas (listas de cor nas penas) lhes deitarão rolas e pombinhos de mão, a cada Açor conforme a idade que tiver e se desenvolver voando (…) (*)
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(*) - Arte da Caça de Altanaria (por Diogo Fernandes Ferreira)
A obra foi publicada no ano de 1616, ao tempo do domínio espanhol de Portugal (1580-1640).
Teve reedição em 1899, na Biblioteca de Clássicos Portugueses, cujo Director Literário foi Luciano Cordeiro.
Esta edição ficou a dever-se a: Escriptorio - Rua dos Retrozeiros, 147 - Lisboa - Portugal.
"(...) Aves de rapina são aquelas que se mantêm de aves vivas que elas voando caçam para sua comida.
Destas há vários géneros e diferentes sortes de plumagens.
As estimadas dos grandes senhores são Falcões e Açores, Gaviões e Esmerilhões e Ogeas.
Estas são as mais limpas e nobres, e delas usam os príncipes em sua caça, as quais se avantajam a todas as aves do céu na ligeireza do voar, no atrevimento do ânimo e na força que têm na presa das mãos, nas quais têm tanta que apertando muitas vezes o Açor com suas mãos a do caçador por cima da luva, o constrange a lhe doer o braço sem poder menear os dedos.
A Natureza, que nada fez sem causa, criou estas para passatempo dos príncipes, pelo que as dotou e fez diferentes de todas as mais aves; com os dedos das mãos da banda de baixo lhes criou uns nós nervosos como verrugas, da cor dos mesmos dedos, e a cada um deles os deu conforme o seu tamanho, o que fez para que assim tivessem força para sustentarem aquelas prisões de que aí ferrassem e se lhe não fossem.
Estas de tal maneira têm aferradas as ralés que tomam, que é necessário engenho e muita força para lhes tirar a presa.
Estes nós que digo só os têm os Falcões, Açores e Esmerilhões, Ogeas e as Águias - as quais se mantêm de aves que elas por sua ponta da asa voando no ar alcançam e prendem, e todas as mais aves carecem deles.
Pelo que advirto ao caçador que for buscar Açores a terras estranhas se lembre do que a Natureza se não esqueceu, porque já aconteceu algumas vezes trazerem a vender, em lugar de Açores, tartaranhas e bilhafres, que em pequenos são bem semelhantes no rosto e plumagem e mais feições aos Açores, e só nas mãos diferem, (pois) que carecem dos nós que digo, e aconteceu haver engano.
As aves que acima digo nobres se cevam (alimentam) duas vezes ao dia, e sempre buscam aves de novo de que comam, e se alguma coisa lhes sobeja pela manhã, não curam de tornar a ela à tarde; só os Gaviões algumas vezes o fazem, que como são aves pequenas e lhes acontece caçarem perdizes e pombas, e lhes sobeja muita comida, por não tornarem a trabalhar de novo, buscando aves de que se cevem (alimentem), tornam a comer o sobejo.
As Águias, a quem todas as aves temem, também caçam aves vivas, e como são aves grandes e pesadas o seu modo de caçar é diferente, porque estas voando à tira não poderão alcançar ave alguma, e para o poderem fazer se levantam às voltas, pondo-se nas nuvens; de lá descem às aves que por baixo passam com as asas fechadas, rompendo com o peso da sua grandeza a densidade do ar mais depressa que todas as aves, e assim fazem sua presa no que hão-de comer.
Muitas vezes erram o lanço, e assim frustradas, constrangidas da fome, descem a tomar a lebre e o coelho, e ás vezes o cordeiro novo; muitas vezes a acharão comendo em cão morto.
Outras aves há de rapina, como bilhafres, altaformas, cabisalvas e assorenhas, as quais tomam algumas vezes aves vivas que comem, mas ordinariamente se mantêm de bichos da terra.
Os corvos e milhanos e brita-ossos e abutres também comem aves e são contadas com as de rapina, mas seu próprio mantimento são carniças. (…)" (*)
(*) Arte da Caça de Altanaria (por Diogo Fernandes Ferreira). A obra foi publicada no ano de 1616, ao tempo do domínio espanhol de Portugal (1580-1640).
Teve reedição em 1899, na Biblioteca de Clássicos Portugueses, cujo Director Literário foi Luciano Cordeiro.
Esta edição ficou a dever-se a: Escriptorio - Rua dos Retrozeiros, 147, Lisboa, Portugal.
... interpretando uma das suas mais famosas criações (Como é grande o meu amor por você).Tanto ela como os acompanhantes estiveram à altura do celebérrimo cantor. Reparem como a guitarra e o sotaque portugueses se aliam às mil maravilhas com as sonoridades musicais das terras irmãs de Vera Cruz...
Os acompanhantes de Raquel:
André Dias - Bárbara Duarte - Bernardo Viana
Carla Santos - Daniel Pinto - Francisca Fins - Ricardo Mendes
... e, já agora, comparem com o original brasileiro:
Claro que eram presos políticos, como - lembrando o caso português - se escreveu aqui. Porém, ainda que fora da prisão, continuarão com os direitos cívicos e políticos gravemente limitados.
A direita espanhola, eterna e doentiamente saudosa da velha Castela imperial, promete reagir à bruta, como de costume. Reacção de escassa inteligência: não conseguem perceber que a procissão não passou ainda do adro e que os tempos não são já propícios aos adeptos das antigas leis "da enxovia e do garrote".
Esperemos para ver, com especial atenção aos Catalães: muitos deles anunciam-se dispostos a ceifar grilhões, da mesma maneira que usam ceifar as espigas cor de ouro da sua bem-amada terra natal...
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Primeiro avistamento da Polinésia
"Na noite de 29 para 30 de Julho, nova e estranha atmosfera pairava sobre a "Kon-Tiki". Era talvez o alarido ensurdecedor das aves marítimas sobre nós, como para mostrar que, breve, teríamos novidades.
A algazarra das aves era vibrante e terrestre, depois do surdo rangido de cordas sem vida, única coisa que ouvíramos, além do estridor do mar, durante os três meses de navegação.
Às seis horas, Bengt desceu da ponta do mastro, acordou Herman e deitou-se. Quando Herman marinhou pelo mastro rangedor e oscilante, o dia começava a raiar. Dez minutos depois tornava a descer pela escada de corda e puxava-me pela perna: Saia e venha ver a sua ilha!
Tinha o rosto radiante. Pus-me em pé de um salto, no que fui imitado por Bengt, que ainda não pegara no sono. Um atrás do outro, amontoámo-nos no lugar mais alto que pudemos atingir, no ponto em que os mastros se cruzavam.
Terra! Uma ilha! Devorámo-la avidamente com os olhos e acordámos os outros, que, estremunhados, saíram de roldão e olharam para todos os lados como se pensassem que a proa da jangada ia já abicar a uma praia. Barulhentas aves marinhas formavam uma ponte, através do céu, na direcção da ilha distante, que tomava a cor do ouro com a aproximação do sol e a plena luz do dia.
No entanto, na nossa posição actual, o vento não nos permitia colocar a jangada no rumo da ilha. A região que ficava em redor do arquipélago de Tuamotu estava cheia de fortes correntes oceânicas que se ramificavam em vários sentidos e nos impediam o acesso a terra.
Às seis e meia, o sol emergiu do mar e subiu directamente, como acontece nos trópicos. A ilha ficava distante algumas milhas marítimas e, de longe, parecia uma faixa de floresta que se estendia no horizonte. Pelos nossos mapas, tratava-se da ilha de Puka-puka, posto avançado do arquipélago de Tuamotu.
Todos nos sentimos cheios de uma satisfação plena e tranquila por havermos, de facto, alcançado a Polinésia, mas a essa satisfação vinha misturar-se ligeiro e momentâneo desencantamento pela irremediável situação de apenas podermos ver a ilha, que permanecia como uma miragem, enquanto prosseguíamos o nosso longo cruzeiro para oeste.
A ilha começara agora a diminuir e a ficar à nossa retaguarda, de modo que recebíamos dela ligeiros sopros de aragem. Durante uns quinze minutos, eu e Herman, agarrados à ponta do mastro, deixámos o cheiro quente de folhagem e verdura coar-se pelas nossas narinas.
Aquilo era a Polinésia, aquele rico cheiro de terra seca após noventa e três dias de água salgada e no meio das ondas.
Às oito e meia, Puka-puka afundou-se no mar atrás de nós, mas até às onze horas pudemos ver uma esgarçada lista azul acima do horizonte, a leste. Depois, também isto desapareceu, e uma nuvem alta, elevando-se quase imóvel para o céu, era o único indício que se tinha da situação de Puka-puka.
Desembarque na ilha deserta de Raroia (Polinésia)
(7 de Agosto de 1947)
No extremo sul estava uma ilha comprida, toda coberta de coqueiros. E logo acima de nós, ao norte, ficava outra ilha de coqueiros, mas consideravelmente menor. Achava-se no interior do recife, com os cimos das palmeiras erguendo-se para o céu e com as praias de areia alvíssima estendendo-se até se perderem na plácida lagoa. A ilha toda parecia um verde açafate de flores, um pedacinho onde se concentrara o Paraíso.
Foi essa ilha que escolhemos.
A "Kon-Tiki" permanecia à distância, no recife, recebendo o esguicho das ondas. Era uma embarcação naufragada, mas era-o com muita honra. Tudo o que estivera por cima do convés achava-se esfacelado, mas os nove troncos de madeira de balsa da floresta de Quivedo, no Equador, estavam intactos. Tinham-nos salvado a vida.
A carga que o mar tomara para si fora pouca, e não se perdeu nenhuma da que havíamos depositado no interior da cabina.
Relanceei um último olhar pela "Kon-Tiki". Fui andando a vau até à ilha. A certa distância lobriguei Knut, dirigindo-se também para terra e transportando sob o braço uma miniatura da "Kon-Tiki" que fizera, com muito trabalho, durante a viagem.
Pouco depois passámos por Bengt. Com um galo na testa e água salgada a gotejar da barba, vinha curvado, arrastando um caixote que oscilava diante dele cada vez que, lá de fora, os vagalhões enviavam uma corrente para o interior da lagoa. Com orgulho, levantou a tampa. Era o caixote da cozinha, e dentro dele iam o "Primus" e demais utensílios em boa ordem.
Nunca esquecerei a caminhada, através do recife, em demanda da ilha paradisíaca, que se fazia maior à medida que nos aproximávamos. Quando alcancei a praia cheia de sol, tirei os sapatos e pus os pés, nus, sobre a areia quente e seca. Causou-me um prazer intenso ver cada vestígio deixado por mim na arenosa praia virgem que ia dar aos coqueiros. Não tardou que me achasse debaixo deles e fui assim andando na direcção do centro da ilha.
Cocos verdes pendiam dos ramos e algumas moitas densas encobriam flores alvíssimas de perfume tão suave e sedutor que quase me sentia desfalecer. No interior da ilha, duas andorinhas do mar, mansíssimas, voavam quase sobre os meus ombros. Eram tão brancas e leves como farrapos de nuvens. Pequenos lagartos passavam rápidos perto dos meus pés, e os habitantes mais importantes da ilha eram grandes caranguejos bernardos eremitas, vermelhos cor de sangue, que se moviam pesadamente em todas as direcções.
Sentia-me verdadeiramente esmagado. Caí de joelhos e enterrei os dedos na areia quente e seca.
A viagem estava terminada."
O fim da viagem. Caminhando pelo recife em direcção à ilha de Raroia.
Os seis expedicionários, depois de recuperarem a "Kon-Tiki"
A rota de 8000 kms da "Kon-Tiki", entre Callao (Peru) e Raroia (Polinésia)
NOTA
As fotos a preto e branco foram tiradas pelos expedicionários. Algumas foram obtidas do exterior da jangada, a partir do bote de borracha auxiliar.
As fotos coloridas foram extraídas do filme norueguês "Kon-Tiki", realizado em 2012 por Joachim Ronning e Espen Sandberg. O actor Pal Sverre Valheim Hagen interpretou o papel de Thor Heyerdahl. Existe edição portuguesa do filme.
Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para nos salvar.
Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.
Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.
Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.
.
II
Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado.
Há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado.
Há um homem rico que se mata
Porque hoje é sábado.
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado.
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado.
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado.
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado.
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado.
Há um grande espírito de porco
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado.
Há criancinhas que não comem
Porque hoje é sábado.
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado.
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado.
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado.
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado.
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado.
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado.
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado.
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado.
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado.
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado.
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado.
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado.
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado.
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado.
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado.
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado.
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado.
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado.
Há a comemoração fantástica
Porque hoje é sábado.
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado.
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado.
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado.
Miriam evoca os tristes dias do "apartheid" na África do Sul. As crianças das "townships" (áreas urbanas reservadas a negros, mestiços e não-brancos, em geral) sobressaltavam-se quando as viaturas da polícia evoluíam nas proximidades. Nessa altura, chamavam pelas mães e pediam-lhes que não se deixassem apanhar pelas autoridades. "Khawuleza, mama" (Apressa-te, mamã), diziam elas...
Khawuleza Mama
(Apressa-te, mamã)
Saiba mais sobre o "apartheid" na África do Sul - aqui
"Não decorrera ainda muito tempo de viagem quando o primeiro tubarão nos visitou. Depois, as visitas tornaram-se uma ocorrência quase quotidiana. As mais das vezes seguiam na nossa esteira, logo atrás do remo de direcção, ali permanecendo sem tugir nem mugir, passando furtivamente de estibordo para bombordo e, vez por outra, dando uma rabanada mansa para acompanhar o plácido avanço da jangada.
Se o mar estava encapelado, as ondas eram capazes de erguer o peixe bem acima do nosso nível. Tínhamos então uma vista directa, lateral, do tubarão - como se este se achasse encerrado numa redoma de vidro -, quando ele nadava no nosso rumo, com porte majestoso, e precedido da sua escolta de peixes-pilotos, bem à frente das suas mandíbulas.
Por alguns segundos, parecia que não só o tubarão mas também os seus companheiros iriam entrar a bordo, mas a jangada inclinava-se, graciosamente, para sotavento, erguia-se sobre a crista das ondas e baixava do outro lado.
Na realidade, tínhamos grande respeito pelos tubarões, devido à sua fama e à sua aparência assustadora. Havia uma força indomável naquele corpo aerodinâmico, um grande feixe de músculos de aço, com os olhinhos verdes de gato e as imensas mandíbulas.
Quando o timoneiro gritava tubarão a estibordo! ou tubarão a bombordo!, costumávamos sair à procura de arpões e fateixas e postávamo-nos ao longo da beira da jangada. O nosso respeito pelo animal crescia quando víamos as fateixas vergar como esparguetes ao baterem contra a lixa do dorso do peixe, ao passo que as pontas dos arpões se rompiam no aceso da batalha, durante a qual a água fervia ao redor de nós e o animal lograva soltar-se e lá se ia embora.
Para salvar a ponta do nosso último arpão, amarrámos, num feixe, os nossos maiores anzóis e escondemo-los no interior da carcaça de um dourado. Atirámos o isco ao mar com infinitas precauções, depois de havermos amarrado algumas linhas de aço no parapeito da jangada.
O tubarão aproximou-se, confiado e vagaroso, e ao mesmo tempo que levantava o focinho acima da água, abriu de golpe as grandes mandíbulas em forma de crescente e fez resvalar por elas dentro o dourado inteiro.
Houve então uma batalha durante a qual o tubarão vergastava a água espumante, mas nós segurávamos a corda com muita firmeza, e a custo arrastámos o animal até aos toros posteriores, onde abriu a boca como para nos intimidar com as filas paralelas de uns dentes que pareciam serrotes.
Então aproveitámos uma onda mais forte para fazer o tubarão deslizar, suspendendo-o pela extremidade mais baixa dos toros, escorregadia por causa das algas, e, depois de laçar com uma corda a barbatana caudal, puxámo-lo facilmente para bordo. Na cartilagem do nosso primeiro tubarão achámos a ponta do arpão. Estava tudo terminado.
O monstro
Estávamos a 24 de Maio e vogávamos num mar calmo. Era quase meio-dia e acabávamos de deitar à água as tripas de dois grandes dourados que tínhamos pescado de manhã cedo. Eu dava um refrescante mergulho junto à proa, preso à ponte por uma corda, quando avistei um grosso peixe pardo que vinha na minha direcção. De um pulo, galguei a beira da jangada e sentei-me ao sol quente observando o peixe que passava tranquilamente, quando ouvi um formidável berro de Knut: Tubarão!
Como quase diariamente víamos, sem tamanho estardalhaço, tubarões nadando ao lado da jangada, compreendemos que se devia tratar de um novo espécime e reunimo-nos todos na popa para o observar.
Avistámos a cabeça de um verdadeiro monstro marinho, tão descomunal e horroroso que o próprio Neptuno, surgindo com o seu tridente dos abismos do oceano, não nos faria impressão maior. A cabeça era larga e chata como a de uma rã, com dois olhinhos de cada lado e uma mandíbula de sapo, de 1,20 m ou 1,50 m de largura, e com longas franjas a penderem-lhe dos cantos da boca. Atrás da cabeça, estendia-se um enorme corpo terminando em comprido e fino rabo com uma pontuda barbatana caudal erecta, a provar que aquele monstro não era nenhuma espécie de baleia.
Tratava-se, na realidade, de um tubarão-gigante [tubarão-baleia], o maior peixe hoje conhecido no mundo. Possui, em média, 15 m de comprimento e, segundo os zoólogos, chega a pesar 15 toneladas. Mas dizem que alguns espécimes podem atingir os 20 m.
O monstro era tão grande que, quando começou a nadar descrevendo círculos, em redor de nós e sob a jangada, a sua cabeça podia ser vista de um lado enquanto a cauda inteira avultava do outro. Repetidas vezes descreveu círculos cada vez menores sob a jangada, enquanto nós aguardávamos o que podia acontecer. Ao sair da outra banda, deslizou lentamente sob o remo de direcção e ergueu-o no ar, enquanto a pá do remo resvalou ao longo do seu dorso.
Não havia indício de que o tubarão-gigante pensasse em nos deixar; fazia círculos e mais círculos e seguia-nos como um cão fiel, perto da jangada. Afinal, aquilo afigurou-se demasiado irritante para Erik, que estava de pé empunhando um arpão de 2,40 m. Quando o tubarão-gigante veio deslizando vagarosamente na direcção dele, Erik, com toda a sua força gigantesca, arremessou o arpão que foi cravar-se na cabeça cartilaginosa do animal. Então, repentinamente, o plácido lorpa transformou-se numa montanha de músculos de aço.
Ouvimos um ruído sibilante quando a linha do arpão passou violentamente sobre a beira da jangada, e vimos um cascatear de água quando o monstro ergueu alto a cabeça para logo depois mergulhar nos abismos. Os três homens que se achavam mais perto foram atirados de pernas para o ar, e dois deles ficaram esfolados e queimados pela linha que fendia o ar. A linha grossa, com resistência suficiente para amarrar um bote, partiu-se como um pedaço de cordel, e uns segundos depois um arpão quebrado surgiu à tona da água a mais de 180 metros de distância. Ficámos longo tempo à espera de que o monstro voltasse como um submarino furioso; mas nunca mais vimos nenhum vestígio dele."