quarta-feira, 23 de junho de 2021

THOR HEYERDHAL e a espantosa viagem da jangada "KON-TIKI" (4.ª Parte - A chegada)

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Primeiro avistamento da Polinésia
 

"Na noite de 29 para 30 de Julho, nova e estranha atmosfera pairava sobre a "Kon-Tiki". Era talvez o alarido ensurdecedor das aves marítimas sobre nós, como para mostrar que, breve, teríamos novidades.
A algazarra das aves era vibrante e terrestre, depois do surdo rangido de cordas sem vida, única coisa que ouvíramos, além do estridor do mar, durante os três meses de navegação.
 
Às seis horas, Bengt desceu da ponta do mastro, acordou Herman e deitou-se. Quando Herman marinhou pelo mastro rangedor e oscilante, o dia começava a raiar. Dez minutos depois tornava a descer pela escada de corda e puxava-me pela perna: Saia e venha ver a sua ilha!
Tinha o rosto radiante. Pus-me em pé de um salto, no que fui imitado por Bengt, que ainda não pegara no sono. Um atrás do outro, amontoámo-nos no lugar mais alto que pudemos atingir, no ponto em que os mastros se cruzavam.
 
Terra! Uma ilha! Devorámo-la avidamente com os olhos e acordámos os outros, que, estremunhados, saíram de roldão e olharam para todos os lados como se pensassem que a proa da jangada ia já abicar a uma praia. Barulhentas aves marinhas formavam uma ponte, através do céu, na direcção da ilha distante, que tomava a cor do ouro com a aproximação do sol e a plena luz do dia.
 
No entanto, na nossa posição actual,  o vento não nos permitia colocar a jangada no rumo da ilha. A região que ficava em redor do arquipélago de Tuamotu estava cheia de fortes correntes oceânicas que se ramificavam em vários sentidos e nos impediam o acesso a terra.

Às seis e meia, o sol emergiu do mar e subiu directamente, como acontece nos trópicos. A ilha ficava distante algumas milhas marítimas e, de longe, parecia uma faixa de floresta que se estendia no horizonte. Pelos nossos mapas, tratava-se da ilha de Puka-puka, posto avançado do arquipélago de Tuamotu.
 
Todos nos sentimos cheios de uma satisfação plena e tranquila por havermos, de facto, alcançado a Polinésia, mas a essa satisfação vinha misturar-se ligeiro e momentâneo desencantamento pela irremediável situação de apenas podermos ver a ilha, que permanecia como uma miragem, enquanto prosseguíamos o nosso longo cruzeiro para oeste.
 
A ilha começara agora a diminuir e a ficar à nossa retaguarda, de modo que recebíamos dela ligeiros sopros de aragem. Durante uns quinze minutos, eu e Herman, agarrados à ponta do mastro, deixámos o cheiro quente de folhagem e verdura coar-se pelas nossas narinas.
Aquilo era a Polinésia, aquele rico cheiro de terra seca após noventa e três dias de água salgada e no meio das ondas.
 
Às oito e meia, Puka-puka afundou-se no mar atrás de nós, mas até às onze horas pudemos ver uma esgarçada lista azul acima do horizonte, a leste. Depois, também isto desapareceu, e uma nuvem alta, elevando-se quase imóvel para o céu, era o único indício que se tinha da situação de Puka-puka.
 


 

Desembarque na ilha deserta de Raroia (Polinésia)
(7 de Agosto de 1947)

 
No extremo sul estava uma ilha comprida, toda coberta de coqueiros. E logo acima de nós, ao norte, ficava outra ilha de coqueiros, mas consideravelmente menor. Achava-se no interior do recife, com os cimos das palmeiras erguendo-se para o céu e com as praias de areia alvíssima estendendo-se até se perderem na plácida lagoa. A ilha toda parecia um verde açafate de flores, um pedacinho onde se concentrara o Paraíso.
Foi essa ilha que escolhemos.
 
A "Kon-Tiki" permanecia à distância, no recife, recebendo o esguicho das ondas. Era uma embarcação naufragada, mas era-o com muita honra. Tudo o que estivera por cima do convés achava-se esfacelado, mas os nove troncos de madeira de balsa da floresta de Quivedo, no Equador, estavam intactos. Tinham-nos salvado a vida.
A carga que o mar tomara para si fora pouca, e não se perdeu nenhuma da que havíamos depositado no interior da cabina.
 
Relanceei um último olhar pela "Kon-Tiki". Fui andando a vau até à ilha. A certa distância lobriguei Knut, dirigindo-se também para terra e transportando sob o braço uma miniatura da "Kon-Tiki" que fizera, com muito trabalho, durante a viagem.

Pouco depois passámos por Bengt. Com um galo na testa e água salgada a gotejar da barba, vinha curvado, arrastando um caixote que oscilava diante dele cada vez que, lá de fora, os vagalhões enviavam uma corrente para o interior da lagoa. Com orgulho, levantou a tampa. Era o caixote da cozinha, e dentro dele iam o "Primus" e demais utensílios em boa ordem.
 
Nunca esquecerei a caminhada, através do recife, em demanda da ilha paradisíaca, que se fazia maior à medida que nos aproximávamos. Quando alcancei a praia cheia de sol, tirei os sapatos e pus os pés, nus, sobre a areia quente e seca. Causou-me um prazer intenso ver cada vestígio deixado por mim na arenosa praia virgem que ia dar aos coqueiros. Não tardou que me achasse debaixo deles e fui assim andando na direcção do centro da ilha.
 
Cocos verdes pendiam dos ramos e algumas moitas densas encobriam flores alvíssimas de perfume tão suave e sedutor que quase me sentia desfalecer. No interior da ilha, duas andorinhas do mar, mansíssimas, voavam quase sobre os meus ombros. Eram tão brancas e leves como farrapos de nuvens. Pequenos lagartos passavam rápidos perto dos meus pés, e os habitantes mais importantes da ilha eram grandes caranguejos bernardos eremitas, vermelhos cor de sangue, que se moviam pesadamente em todas as direcções.
Sentia-me verdadeiramente esmagado. Caí de joelhos e enterrei os dedos na areia quente e seca.
A viagem estava terminada."

 
O fim da viagem. Caminhando pelo recife em direcção à ilha de Raroia.

 

 
Os seis expedicionários, depois de recuperarem a "Kon-Tiki"
 
 
A rota de 8000 kms da "Kon-Tiki", entre Callao (Peru) e Raroia (Polinésia)


NOTA
 
As fotos a preto e branco foram tiradas pelos expedicionários. Algumas foram obtidas do exterior da jangada, a partir do bote de borracha auxiliar.
 
As fotos coloridas foram extraídas do filme norueguês "Kon-Tiki", realizado em 2012 por Joachim Ronning e Espen Sandberg. O actor Pal Sverre Valheim Hagen interpretou o papel de Thor Heyerdahl. Existe edição portuguesa do filme.

Da trilha sonora de "Kon-Tiki"
(Compositor: Johan Söderqvist):

 
 
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