9 de Junho de 2019 - 2.ª Parte (ver: O "rei de Penamacor")
16 de Junho de 2019 - 3.ª Parte (ver: O "rei da Ericeira")
23 de Junho de 2019 - 4.ª Parte (ver: O Pasteleiro de Madrigal)
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O "rei de Veneza"
Em Junho de 1598, na cidade de Veneza, espalhou-se o boato de que andava por ali um indivíduo que se fazia passar pelo rei D. Sebastião de Portugal, oficialmente dado como morto, em 1578, na batalha de Alcácer-Quibir.
Nesse tempo, habitavam em Veneza muitos exilados portugueses, na maioria antigos oponentes de Felipe II de Espanha quando este resolvera avançar para o trono lusitano. Apesar das versões contraditórias que corriam sobre aquele "D. Sebastião", alguns deles acreditaram no boato. E essa crença sairia reforçada pela acção infatigável de um seu compatriota, D. João de Castro, que apareceu a garantir que, dessa vez, era verdade: estavam, de facto, perante o rei português, miraculosamente escapado, vinte anos antes, dos mortíferos areais marroquinos.
D. João de Castro pertencia a uma ilustre família de fidalgos portugueses. Seu pai, Álvaro de Castro, fora superintendente das finanças de D. Sebastião. Seu avô, também chamado João de Castro, desempenhara as altíssimas funções de vice-rei da Índia sob domínio português.
Educado na universidade de Évora, tinha feito as Humanidades e seguido os cursos de Teologia. Nos estudos a que se dedicou, desenvolveu grande interesse por histórias extraordinárias e maravilhosas, que procurava apresentar e interpretar com base em metodologias engenhosas, inventivas mas, por vezes, confusas. Uma das suas actividades favoritas consistia no estudo dos escritos e profecias que afirmavam a sobrevivência de D. Sebastião e anunciavam o seu regresso para salvar Portugal das garras espanholas. Em 1597, profetizara, ele próprio, que o rei faria a sua aparição no ano seguinte - e os acontecimentos de Veneza vieram dar-lhe aparente razão. Lúcio de Azevedo, que o qualifica como "maníaco de boa fé", reconhece-o como "o S. Paulo da religião sebastianista". Não é pois de admirar que se tenha transformado numa das personagens centrais deste drama.
D. João de Castro terá falado com alguns dos que acompanharam o rei na jornada fatídica de Marrocos. A partir desses contactos, abalançou-se a escrever a história dos dias vividos por "D. Sebastião" depois do recontro de Alcácer-Quibir. E assim surgiu o relato que alimentaria durante anos a imaginação e as ilusões de muitos portugueses.
Segundo Castro, o rei conseguira evadir-se do campo de batalha, em companhia de vários fidalgos portugueses, nos instantes que se seguiram ao desastre militar. Chegados ao litoral marroquino, apoderaram-se de uma embarcação e logo navegaram até às costas do Algarve. Mas o rei, que sofria mais com a vergonha da derrota do que com a perda do trono, perdera a vontade de reinar. Desse modo, refugiando-se no anonimato, pôs-se a percorrer o mundo com os companheiros de fuga. Terá deambulado por diversos países europeus e asiáticos. Terá também combatido os Turcos na Pérsia. Certo dia, um santo homem, um eremita com quem travara conhecimento, disse-lhe ter recebido de Deus a revelação de que era chegado o tempo de ele pôr fim à sua peregrinação para voltar a Portugal e ao trono que por direito lhe pertencia.
Assim, após uma paragem na Sicília, "D. Sebastião" viajara para norte e dera finalmente entrada em Veneza.
D. João de Castro terá falado com alguns dos que acompanharam o rei na jornada fatídica de Marrocos. A partir desses contactos, abalançou-se a escrever a história dos dias vividos por "D. Sebastião" depois do recontro de Alcácer-Quibir. E assim surgiu o relato que alimentaria durante anos a imaginação e as ilusões de muitos portugueses.
Segundo Castro, o rei conseguira evadir-se do campo de batalha, em companhia de vários fidalgos portugueses, nos instantes que se seguiram ao desastre militar. Chegados ao litoral marroquino, apoderaram-se de uma embarcação e logo navegaram até às costas do Algarve. Mas o rei, que sofria mais com a vergonha da derrota do que com a perda do trono, perdera a vontade de reinar. Desse modo, refugiando-se no anonimato, pôs-se a percorrer o mundo com os companheiros de fuga. Terá deambulado por diversos países europeus e asiáticos. Terá também combatido os Turcos na Pérsia. Certo dia, um santo homem, um eremita com quem travara conhecimento, disse-lhe ter recebido de Deus a revelação de que era chegado o tempo de ele pôr fim à sua peregrinação para voltar a Portugal e ao trono que por direito lhe pertencia.
Assim, após uma paragem na Sicília, "D. Sebastião" viajara para norte e dera finalmente entrada em Veneza.
Porém, o embaixador de Espanha na República de Veneza, D. Iñigo López de Mendoza, não dormia. Conhecedor dos boatos que corriam, pôs-se em campo e em breve julgou ter apurado a verdadeira nacionalidade do estranho indivíduo. Após informar o seu novo rei acerca da situação (Felipe II falecera em 13 de Setembro de 1598, tendo-lhe sucedido o filho, Felipe III), apresentou-se às autoridades venezianas a 27 de Outubro e solicitou-lhes que agissem contra aquele que ele classificava como descarado impostor. Sensíveis aos seus argumentos, os venezianos ordenaram ao pretenso "D. Sebastião" que abandonasse o território da República no prazo de oito dias.
D. Iñigo supôs ter resolvido o problema. Contudo, como o tempo fosse passando sem que "D. Sebastião" desse sinais de pretender viajar, o embaixador espanhol tratou de insistir. A 7 de Novembro de 1598 dirigiu-se ao palácio ducal e, com base no argumento de que o visado desobedecera ostensivamente à intimação recebida, exigiu a sua prisão. Acrescentou que a morte de D. Sebastião não podia ser posta em causa, depois de todas as diligências que o rei espanhol (à época, Felipe II) e o imperador de Marrocos (Mulei Ahmed) tinham levado a cabo sobre o assunto.
D. Iñigo de Mendoza sustentava que o pretenso monarca nem sequer era português, mas sim calabrês. Aliás, reforçava, ele não só não exibia parecenças físicas com o verdadeiro D. Sebastião, como mal falava a língua portuguesa. E o embaixador rematou dizendo que não era a primeira vez que tais imposturas se produziam e que todas tinham tido grandes semelhanças com a conduta deste "calabrês".
A reclamação do embaixador espanhol foi tomada em consideração pelas autoridades de Veneza. No mesmo dia, o Conselho dos Dez (responsável pela segurança da República) decretou a prisão do homem que dizia ser o rei D. Sebastião de Portugal. No entanto, só a 24 de Novembro a ordem foi executada. Um ano depois, em finais de 1599, a misteriosa figura continuava encarcerada nas prisões de Veneza sem que as autoridades tivessem assumido uma decisão definitiva sobre a sua sorte.
Reconhecimento do corpo de D. Sebastião perante Mulei Ahmed, imperador de Marrocos
(Na interpretação imaginária de Caetano da Costa Lima - séc. XIX)
Durante o período em que permaneceu privado da liberdade, o prisioneiro foi sujeito a diversos interrogatórios. O processo havia sido confiado a quatro juízes, aos quais ele sempre afirmou ser, de facto, o monarca português desaparecido em Alcácer-Quibir.
Nesse espaço de tempo, tinha-se verificado um autêntico corrupio de portugueses em torno do cárcere. O preso fora entretanto transferido para uma prisão menos rigorosa, o que lhe possibilitou pôr-se em contacto com alguns dos adeptos. Um deles era um tal frei Crisóstomo, que lhe trazia livros portugueses e notícias do mundo exterior. Sobretudo, mantinha-o informado sobre os esforços que os portugueses que nele acreditavam vinham desenvolvendo para lhe melhorarem a sorte.
Nesse espaço de tempo, tinha-se verificado um autêntico corrupio de portugueses em torno do cárcere. O preso fora entretanto transferido para uma prisão menos rigorosa, o que lhe possibilitou pôr-se em contacto com alguns dos adeptos. Um deles era um tal frei Crisóstomo, que lhe trazia livros portugueses e notícias do mundo exterior. Sobretudo, mantinha-o informado sobre os esforços que os portugueses que nele acreditavam vinham desenvolvendo para lhe melhorarem a sorte.
Alguns daqueles adeptos conseguiram levar o caso a diversos governos europeus, como os da Inglaterra, Países Baixos e França. Por vezes logravam certo êxito, ainda que ambíguo, nas suas diligências. Por exemplo, no dia 1 de Dezembro de 1600, o rei francês, Henrique IV, dirigia-se do seguinte modo ao seu embaixador em Veneza: Desejo também que não negueis assistência a esse pobre prisioneiro que pretendem que seja o rei D. Sebastião, se houver fundamento para o fazer; porque, uma vez que o rei de Espanha favorece abertamente os meus inimigos, devo vingar-me por todos os meios que se me apresentem.
Às dez horas da noite do dia 15 de Dezembro de 1600, após mais de dois anos de reclusão, a sorte do prisioneiro pareceu tomar novo e promissor rumo. Conduzido ao Senado, comunicaram-lhe que seria posto imediatamente em liberdade. Teria no entanto que abandonar a cidade de Veneza nas vinte e quatro horas seguintes e o território da República veneziana em três dias. Caso não cumprisse, seria condenado às galés. A única coisa que se lhe ouviu, depois de lida a sentença, foi a reafirmação de que era, verdadeiramente, D. Sebastião - como era certo Deus estar no céu.
A madrugada imediata foi cheia de movimento e emoções para ele e para os seus partidários. Acolhido na casa onde residia D. João de Castro (que chegara a Veneza em 28 de Julho anterior), foi recebendo a visita dos adeptos - entre outros Rodrigo Marques, frei Crisóstomo, Sebastião Figueira, Manuel Brito de Almeida, Pantaleão Pessoa de Neiva, Francisco António, frei Estêvão de Sampaio e até Cristóvão, um dos filhos de D. António, prior do Crato (que falecera em Paris no ano de 1595).
Frei Estêvão de Sampaio tinha vindo oportunamente a Portugal para se informar acerca de certos sinais e marcas que o verdadeiro D. Sebastião ostentava no seu corpo. Enigmaticamente, alguns deles pareciam estar presentes no corpo do recém-libertado: a mão direita mais comprida do que a esquerda, bem como o braço, a coxa, a perna e o pé do mesmo lado; a falta de um dente no maxilar inferior; as sardas na cara e nas mãos; a verruga no dedo mínimo do pé direito - tão grande que parece um sexto dedo, como escreveu Pantaleão Pessoa.
Havia, no entanto, várias coisas que não pareciam bater certo: o homem estava longe de ostentar a pele branca que caracterizava D. Sebastião (e todas as personagens da Casa de Áustria); os cabelos e a barba eram escuros; e, sobretudo, falava um português imperfeito, pejado de erros grosseiros.
Às dez horas da noite do dia 15 de Dezembro de 1600, após mais de dois anos de reclusão, a sorte do prisioneiro pareceu tomar novo e promissor rumo. Conduzido ao Senado, comunicaram-lhe que seria posto imediatamente em liberdade. Teria no entanto que abandonar a cidade de Veneza nas vinte e quatro horas seguintes e o território da República veneziana em três dias. Caso não cumprisse, seria condenado às galés. A única coisa que se lhe ouviu, depois de lida a sentença, foi a reafirmação de que era, verdadeiramente, D. Sebastião - como era certo Deus estar no céu.
A madrugada imediata foi cheia de movimento e emoções para ele e para os seus partidários. Acolhido na casa onde residia D. João de Castro (que chegara a Veneza em 28 de Julho anterior), foi recebendo a visita dos adeptos - entre outros Rodrigo Marques, frei Crisóstomo, Sebastião Figueira, Manuel Brito de Almeida, Pantaleão Pessoa de Neiva, Francisco António, frei Estêvão de Sampaio e até Cristóvão, um dos filhos de D. António, prior do Crato (que falecera em Paris no ano de 1595).
Frei Estêvão de Sampaio tinha vindo oportunamente a Portugal para se informar acerca de certos sinais e marcas que o verdadeiro D. Sebastião ostentava no seu corpo. Enigmaticamente, alguns deles pareciam estar presentes no corpo do recém-libertado: a mão direita mais comprida do que a esquerda, bem como o braço, a coxa, a perna e o pé do mesmo lado; a falta de um dente no maxilar inferior; as sardas na cara e nas mãos; a verruga no dedo mínimo do pé direito - tão grande que parece um sexto dedo, como escreveu Pantaleão Pessoa.
Havia, no entanto, várias coisas que não pareciam bater certo: o homem estava longe de ostentar a pele branca que caracterizava D. Sebastião (e todas as personagens da Casa de Áustria); os cabelos e a barba eram escuros; e, sobretudo, falava um português imperfeito, pejado de erros grosseiros.
Felipe III de Espanha (1578-1621). Foi o Filipe II de Portugal.
Sucedeu a Felipe II, seu pai, a 13 de Setembro de 1598.
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É provável que a dúvida tenha assaltado o espírito de alguns dos presentes. Mas a emoção do momento e a esperança de poderem finalmente dispor de um campeão anti-espanhol impuseram-se a todos. O próprio frei Estêvão de Sampaio, que estivera várias vezes com D. Sebastião, achou que o indivíduo que tinha diante de si poucas semelhanças apresentava com a imagem que guardava na memória. Mas tinham passado 22 anos sobre o desaparecimento do monarca! Por isso, também ele se lançou aos pés do antigo prisioneiro e o reconheceu como seu rei.
Sem demora, os presentes decidiram tirar "D. Sebastião" de Veneza. A ideia era levá-lo até Florença, depois a Livorno, e embarcar aí para um porto de França.
Ao cair da noite de 16 de Dezembro, o pretenso rei deixou Veneza, disfarçado de monge, na companhia de frei Crisóstomo. A 20 chegavam a Florença, capital do Grão-Ducado da Toscana, e foram instalar-se num convento da Ordem de S. Bernardo. Tencionavam aguardar por alguns portugueses com os quais embarcariam, em Livorno, rumo a Marselha. Desta cidade seguiriam, finalmente, para Paris.
Desgraçadamente para a causa do "rei de Veneza", a espionagem espanhola não abrandara a vigilância e conhecia os passos dos fugitivos na Toscana. Por consequência, o novo embaixador da Espanha em Veneza, D. Francisco de Vera y Aragón, sucessor de D. Iñigo de Mendoza, contactou o representante do Grão-Duque Fernando de Médicis e fez-lhe saber como Felipe III ficaria agradado se eles prendessem o "charlatão calabrês".
Na Toscana, o Grão-Duque percebeu o recado, pois era grande e temível o poder da Espanha imperial. Assim, na noite de 27 ou 28 de Dezembro de 1600, as suas tropas invadiram o convento e deram voz de prisão aos fugitivos. Mas só o pretenso "D. Sebastião" ficaria atrás das grades: temendo a reacção do Papa, o Grão-Duque Fernando ordenou a libertação de frei Crisóstomo.
O Grão-Duque manteve "D. Sebastião" preso, na Toscana, durante quatro meses, apesar dos esforços realizados pelos portugueses de Veneza para que fosse solto. Por fim, cedendo às pressões de Felipe III, Fernando de Médicis mandou entregar o prisioneiro aos espanhóis. Às onze horas da noite de 23 de Abril de 1601, retiraram-no da cela e meteram-no num carro que logo partiu sob forte escolta. Acabaria entregue ao vice-rei espanhol de Nápoles, o conde de Lemos, no dia 1 de Maio.
O Grão-Duque apressou-se a escrever ao rei de Espanha, num tom subserviente, dando-lhe conta da sua acção - entreguei-o [ao preso] conforme a sua ordem, aproveitando esta ocasião para lhe apresentar de todo o meu coração as minhas mais humildes homenagens.
Henrique IV de França, que tinha intercedido pelo prisioneiro junto do Grão-Duque, ficou profundamente desagradado com o gesto de Fernando de Médicis. E conta-se que terá exclamado: Em Florença negoceia-se toda a espécie de mercadorias!
Na Toscana, o Grão-Duque percebeu o recado, pois era grande e temível o poder da Espanha imperial. Assim, na noite de 27 ou 28 de Dezembro de 1600, as suas tropas invadiram o convento e deram voz de prisão aos fugitivos. Mas só o pretenso "D. Sebastião" ficaria atrás das grades: temendo a reacção do Papa, o Grão-Duque Fernando ordenou a libertação de frei Crisóstomo.
O Grão-Duque manteve "D. Sebastião" preso, na Toscana, durante quatro meses, apesar dos esforços realizados pelos portugueses de Veneza para que fosse solto. Por fim, cedendo às pressões de Felipe III, Fernando de Médicis mandou entregar o prisioneiro aos espanhóis. Às onze horas da noite de 23 de Abril de 1601, retiraram-no da cela e meteram-no num carro que logo partiu sob forte escolta. Acabaria entregue ao vice-rei espanhol de Nápoles, o conde de Lemos, no dia 1 de Maio.
O Grão-Duque apressou-se a escrever ao rei de Espanha, num tom subserviente, dando-lhe conta da sua acção - entreguei-o [ao preso] conforme a sua ordem, aproveitando esta ocasião para lhe apresentar de todo o meu coração as minhas mais humildes homenagens.
Henrique IV de França, que tinha intercedido pelo prisioneiro junto do Grão-Duque, ficou profundamente desagradado com o gesto de Fernando de Médicis. E conta-se que terá exclamado: Em Florença negoceia-se toda a espécie de mercadorias!
Muitos portugueses acreditaram durante anos que o rei D. Sebastião
regressaria um dia a Portugal numa manhã mágica de nevoeiro.
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Os espanhóis controlavam finalmente a situação e o conde de Lemos deu início ao processo.
O preso manteve durante muito tempo a sua versão - a de que era o rei de Portugal. E, quando se encerrava um interrogatório, assinava com firmeza: D. Sebastião.
Um dia veio ter com o vice-rei um homem que lhe disse que conhecia o prisioneiro: este nascera na Calábria, chamava-se Marco Túlio Catizone e era casado em Messina com Paula Gallardeta.
Confrontado com o denunciante, o preso pareceu ceder finalmente. Confessou que visitara Veneza uns anos antes e que alguns portugueses lhe tinham dito então que ele se parecia muito com o rei D. Sebastião. Ele tentara esclarecê-los. Mas, quanto mais negava, mais eles insistiam naquela ideia, chegando a beijar-lhe as mãos como se faz a um rei. E teria sido desse modo que acabara por aceitar a qualificação que lhe davam.
Mais tarde, o preso sustentaria que aquelas declarações lhe tinham sido arrancadas à força, versão que D. João de Castro corroboraria nas histórias que punha a correr entre a comunidade portuguesa e que ficariam para a posteridade.
A Espanha, ciosa da unidade ibérica que conquistara, predispôs-se a condenar o incómodo "D. Sebastião". Mas a verdade é que havia comportamentos estranhos - ou pelo menos ambíguos - em relação ao prisioneiro, tratado com extraordinária deferência. Aos domingos e dias de festa saía da cela para assistir à missa e comungar - e, na capela, as pessoas que aí se encontravam ficavam maravilhadas com a sua grande devoção. Quando passava, saudava toda a gente com modos de cavalheiro. Tinha para o servir um criado que lhe preparava a comida na cela. E, abrandada a vigilância, arranjou maneira de comunicar secretamente com os adeptos que, no exterior, continuavam a pugnar pela sua libertação.
O próprio rei espanhol, Felipe III, achou por bem intervir, ordenando expressamente que ele não fosse condenado à morte. Assim, no mês de Maio de 1602, "D. Sebastião", ou Marco Túlio Catizone, viu-se condenado perpetuamente às galés. Dias depois, embarcado na frota de Nápoles para cumprir a pena, foi dispensado de remar.
A frota levantou âncora. Depois de ter feito escala em vários portos mediterrânicos, chegou ao porto de Santa Maria, junto de Sanlúcar de Barrameda, na embocadura do Guadalquivir. Daí em diante, os navios passaram a navegar em acções de vigilância entre os portos vizinhos. Sempre que as galés se detinham, chegavam grupos de curiosos para verem "o falso rei de Portugal", sendo provável que entre eles se achasse um ou outro partidário da realeza do prisioneiro.
Nos começos de 1603, a galera almirante estava no porto de Santa Maria. "D. Sebastião", ou Marco Túlio, achava-se a bordo. Continuava a ser bem tratado: não o obrigavam a envergar o vestuário dos condenados e mantinha a preciosa dispensa de remar.
As liberdades de que o condenado gozava a bordo da galé cedo lhe possibilitaram o contacto com os seus indefectíveis adeptos. Entre os que mais trabalhavam a seu favor contava-se o nosso já conhecido frei Estêvão de Sampaio, que conseguiu aliciar para a causa um outro religioso - frei Boaventura de Santo António, da Ordem de S. Bernardo.
O incansável frei Estêvão teve artes de fazer chegar às mãos do preso uma importante correspondência conspiratória. Aconselhava-o, por exemplo, a dirigir-se a importantes figuras da fidalguia portuguesa em busca de auxílio. "D. Sebastião" seguiu, com zelo, os conselhos do apoiante. Nalguns casos, foi o próprio religioso que lhe forneceu as minutas das cartas para que ele as copiasse.
A audácia dos conspiradores, e o óbvio desleixo que reinava na galé, pareciam não conhecer limites. O condenado chegou a receber secretamente os mensageiros de frei Estêvão, que, para além de o manterem informado acerca do que se passava no exterior, lhe entregaram marmelada trazida de Portugal, a crónica do rei D. João II e alguns volumes de poetas portugueses para o ajudar a passar o tempo.
As facilidades encontradas pelos conspiradores acabaram por levá-los a imprudências. Um dia, "D. Sebastião" resolveu abrir-se com um frade capuchinho genovês, frei Francisco Ansaldo, que o visitou na galé. O frade, mal acabou a conversa, correu a denunciar a trama que se vinha desenvolvendo para fazer evadir o preso.
Dessa vez, Felipe III não contemporizou. A Espanha recorria enfim à violenta firmeza com que sempre tratou de manter a integridade do seu império e, numa perspectiva mais regional, a união ibérica resultante do espírito anexionista do expansionismo castelhano.
"D. Sebastião" foi retirado da galé e conduzido à prisão de Sanlúcar de Barrameda, onde foi torturado. Frei Estêvão de Sampaio e frei Boaventura de Santo António, entretanto caídos nas malhas da justiça, sofreram idêntico tratamento. Como não podia deixar de ser, todos disseram aquilo que os interrogadores quiseram que eles dissessem. No processo ficou então definitivamente estabelecido que o preso não passava de um impostor - o calabrês Marco Túlio Catizone - e que, como tal, deveria morrer.
Em resultado do processo de tortura, recolheram à prisão dezenas de cúmplices dos conspiradores, oportunamente condenados a diversas penas.
No dia 23 de Setembro de 1603, Marco Túlio Catizone foi levado até à praça principal de Sanlúcar de Barrameda, onde começaram por lhe amputar a mão direita. A seguir, enforcaram-no, não sem que ele tivesse apelado à multidão para que mandasse rezar missas em sua intenção.
No mesmo dia foram também enforcados Aníbal Balsamo (calabrês), Fabio Craveta (napolitano) e António Mendes (português).
Outros réus sofreram penas variáveis de chicotadas e de reclusão nas galés.
Cerca de um mês depois, Felipe III confirmou as sentenças de frei Estêvão de Sampaio e de frei Boaventura de Santo António. Foram ambos enforcados, também em Sanlúcar de Barrameda, no dia 20 de Outubro de 1603.
D. João de Castro, provavelmente o maior responsável por toda esta maquinação, salvou-se por entre os pingos da chuva. Vivia ainda em 1628, contando na altura, segundo a sua própria informação, à volta de oitenta anos.Não deixou nunca de trabalhar sobre os temas favoritos. Os seus numerosos escritos, conservados até hoje, não permitem dúvidas acerca das convicções sebastianistas do autor. Certamente acreditou, até ao último suspiro, que o seu rei não estava morto e que um dia regressaria, por entre bafos de nevoeiro mágico, para devolver a liberdade e a felicidade ao seu povo.
O incansável frei Estêvão teve artes de fazer chegar às mãos do preso uma importante correspondência conspiratória. Aconselhava-o, por exemplo, a dirigir-se a importantes figuras da fidalguia portuguesa em busca de auxílio. "D. Sebastião" seguiu, com zelo, os conselhos do apoiante. Nalguns casos, foi o próprio religioso que lhe forneceu as minutas das cartas para que ele as copiasse.
A audácia dos conspiradores, e o óbvio desleixo que reinava na galé, pareciam não conhecer limites. O condenado chegou a receber secretamente os mensageiros de frei Estêvão, que, para além de o manterem informado acerca do que se passava no exterior, lhe entregaram marmelada trazida de Portugal, a crónica do rei D. João II e alguns volumes de poetas portugueses para o ajudar a passar o tempo.
As facilidades encontradas pelos conspiradores acabaram por levá-los a imprudências. Um dia, "D. Sebastião" resolveu abrir-se com um frade capuchinho genovês, frei Francisco Ansaldo, que o visitou na galé. O frade, mal acabou a conversa, correu a denunciar a trama que se vinha desenvolvendo para fazer evadir o preso.
Dessa vez, Felipe III não contemporizou. A Espanha recorria enfim à violenta firmeza com que sempre tratou de manter a integridade do seu império e, numa perspectiva mais regional, a união ibérica resultante do espírito anexionista do expansionismo castelhano.
"D. Sebastião" foi retirado da galé e conduzido à prisão de Sanlúcar de Barrameda, onde foi torturado. Frei Estêvão de Sampaio e frei Boaventura de Santo António, entretanto caídos nas malhas da justiça, sofreram idêntico tratamento. Como não podia deixar de ser, todos disseram aquilo que os interrogadores quiseram que eles dissessem. No processo ficou então definitivamente estabelecido que o preso não passava de um impostor - o calabrês Marco Túlio Catizone - e que, como tal, deveria morrer.
Em resultado do processo de tortura, recolheram à prisão dezenas de cúmplices dos conspiradores, oportunamente condenados a diversas penas.
No dia 23 de Setembro de 1603, Marco Túlio Catizone foi levado até à praça principal de Sanlúcar de Barrameda, onde começaram por lhe amputar a mão direita. A seguir, enforcaram-no, não sem que ele tivesse apelado à multidão para que mandasse rezar missas em sua intenção.
No mesmo dia foram também enforcados Aníbal Balsamo (calabrês), Fabio Craveta (napolitano) e António Mendes (português).
Outros réus sofreram penas variáveis de chicotadas e de reclusão nas galés.
Cerca de um mês depois, Felipe III confirmou as sentenças de frei Estêvão de Sampaio e de frei Boaventura de Santo António. Foram ambos enforcados, também em Sanlúcar de Barrameda, no dia 20 de Outubro de 1603.
D. João de Castro, provavelmente o maior responsável por toda esta maquinação, salvou-se por entre os pingos da chuva. Vivia ainda em 1628, contando na altura, segundo a sua própria informação, à volta de oitenta anos.Não deixou nunca de trabalhar sobre os temas favoritos. Os seus numerosos escritos, conservados até hoje, não permitem dúvidas acerca das convicções sebastianistas do autor. Certamente acreditou, até ao último suspiro, que o seu rei não estava morto e que um dia regressaria, por entre bafos de nevoeiro mágico, para devolver a liberdade e a felicidade ao seu povo.
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J. LÚCIO D'AZEVEDO - A Evolução do Sebastianismo - Publicado no ano de 1918 por Livraria Clássica Editora - Lisboa - Portugal.
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Pode ouvir seguidamente José Cid e o Quarteto 1111 num dos maiores êxitos da música ligeira portuguesa: "A Lenda de El-Rei D. Sebastião" (Vídeo do Arquivo Portugal):