domingo, 30 de junho de 2019

D. Sebastião morreu em Alcácer Quibir? (Os Falsos D. Sebastião) - 5.ª PARTE (Conclusão)



Continuação de:
2 de Junho de 2019 - 1.ª Parte (ver: O Sebastianismo)
9 de Junho de 2019 - 2.ª Parte (ver: O "rei de Penamacor")
16 de Junho de 2019 - 3.ª Parte (ver: O "rei da Ericeira")
23 de Junho de 2019 - 4.ª Parte (ver: O Pasteleiro de Madrigal)

-------------------------------------------

O "rei de Veneza"

Em Junho de 1598, na cidade de Veneza, espalhou-se o boato de que andava por ali um indivíduo que se fazia passar pelo rei D. Sebastião de Portugal, oficialmente dado como morto, em 1578, na batalha de Alcácer-Quibir.
Nesse tempo, habitavam em Veneza muitos exilados portugueses, na maioria antigos oponentes de Felipe II de Espanha quando este resolvera avançar para o trono lusitano. Apesar das versões contraditórias que corriam sobre aquele "D. Sebastião", alguns deles acreditaram no boato. E essa crença sairia reforçada pela acção infatigável de um seu compatriota, D. João de Castro, que apareceu a garantir que, dessa vez, era verdade: estavam, de facto, perante o rei português, miraculosamente escapado, vinte anos antes, dos mortíferos areais marroquinos.

D. João de Castro pertencia a uma ilustre família de fidalgos portugueses. Seu pai, Álvaro de Castro, fora superintendente das finanças de D. Sebastião. Seu avô, também chamado João de Castro, desempenhara as altíssimas funções de vice-rei da Índia sob domínio português.
Educado na universidade de Évora, tinha feito as Humanidades e seguido os cursos de Teologia. Nos estudos a que se dedicou, desenvolveu grande interesse por histórias extraordinárias e maravilhosas, que procurava apresentar e interpretar com base em metodologias engenhosas, inventivas mas, por vezes, confusas. Uma das suas actividades favoritas consistia no estudo dos escritos e profecias que afirmavam a sobrevivência de D. Sebastião e anunciavam o seu regresso para salvar Portugal das garras espanholas. Em 1597, profetizara, ele próprio, que o rei faria a sua aparição no ano seguinte - e os acontecimentos de Veneza vieram dar-lhe aparente razão. Lúcio de Azevedo, que o qualifica como "maníaco de boa fé", reconhece-o como "o S. Paulo da religião sebastianista". Não é pois de admirar que se tenha transformado numa das personagens centrais deste drama.

D. João de Castro terá falado com alguns dos que acompanharam o rei na jornada fatídica de Marrocos. A partir desses contactos, abalançou-se a escrever a história dos dias vividos por "D. Sebastião" depois do recontro de Alcácer-Quibir. E assim surgiu o relato que alimentaria durante anos a imaginação e as ilusões de muitos portugueses.

Segundo Castro, o rei conseguira evadir-se do campo de batalha, em companhia de vários fidalgos portugueses, nos instantes que se seguiram ao desastre militar. Chegados ao litoral marroquino, apoderaram-se de uma embarcação e logo navegaram até às costas do Algarve. Mas o rei, que sofria mais com a vergonha da derrota do que com a perda do trono, perdera a vontade de reinar. Desse modo, refugiando-se no anonimato, pôs-se a percorrer o mundo com os companheiros de fuga. Terá deambulado por diversos países europeus e asiáticos. Terá também combatido os Turcos na Pérsia. Certo dia, um santo homem, um eremita com quem travara conhecimento, disse-lhe ter recebido de Deus a revelação de que era chegado o tempo de ele pôr fim à sua peregrinação para voltar a Portugal e ao trono que por direito lhe pertencia.
Assim, após uma paragem na Sicília, "D. Sebastião" viajara para norte e dera finalmente entrada em Veneza.





Porém, o embaixador de Espanha na República de Veneza, D. Iñigo López de Mendoza, não dormia. Conhecedor dos boatos que corriam, pôs-se em campo e em breve julgou ter apurado a verdadeira nacionalidade do estranho indivíduo. Após informar o seu novo rei acerca da situação (Felipe II falecera em 13 de Setembro de 1598, tendo-lhe sucedido o filho, Felipe III), apresentou-se às autoridades venezianas a 27 de Outubro e solicitou-lhes que agissem contra aquele que ele classificava como descarado impostor. Sensíveis aos seus argumentos, os venezianos ordenaram ao pretenso "D. Sebastião" que abandonasse o território da República no prazo de oito dias.

D. Iñigo supôs ter resolvido o problema. Contudo, como o tempo fosse passando sem que "D. Sebastião" desse sinais de pretender viajar, o embaixador espanhol tratou de insistir. A 7 de Novembro de 1598 dirigiu-se ao palácio ducal e, com base no argumento de que o visado desobedecera ostensivamente à intimação recebida, exigiu a sua prisão. Acrescentou que a morte de D. Sebastião não podia ser posta em causa, depois de todas as diligências que o rei espanhol (à época, Felipe II) e o imperador de Marrocos (Mulei Ahmed) tinham levado a cabo sobre o assunto.
D. Iñigo de Mendoza sustentava que o pretenso monarca nem sequer era português, mas sim calabrês. Aliás, reforçava, ele não só não exibia parecenças físicas com o verdadeiro D. Sebastião, como mal falava a língua portuguesa. E o embaixador rematou dizendo que não era a primeira vez que tais imposturas se produziam e que todas tinham tido grandes semelhanças com a conduta deste "calabrês".

A reclamação do embaixador espanhol foi tomada em consideração pelas autoridades de Veneza. No mesmo dia, o Conselho dos Dez (responsável pela segurança da República) decretou a prisão do homem que dizia ser o rei D. Sebastião de Portugal. No entanto, só a 24 de Novembro a ordem foi executada. Um ano depois, em finais de 1599, a misteriosa figura continuava encarcerada nas prisões de Veneza sem que as autoridades tivessem assumido uma decisão definitiva sobre a sua sorte.

Reconhecimento do corpo de D. Sebastião perante Mulei Ahmed, imperador de Marrocos
(Na interpretação imaginária de Caetano da Costa Lima - séc. XIX)

Durante o período em que permaneceu privado da liberdade, o prisioneiro foi sujeito a diversos interrogatórios. O processo havia sido confiado a quatro juízes, aos quais ele sempre afirmou ser, de facto, o monarca português desaparecido em Alcácer-Quibir.
Nesse espaço de tempo, tinha-se verificado um autêntico corrupio de portugueses em torno do cárcere. O preso fora entretanto transferido para uma prisão menos rigorosa, o que lhe possibilitou pôr-se em contacto com alguns dos adeptos. Um deles era um tal frei Crisóstomo, que lhe trazia livros portugueses e notícias do mundo exterior. Sobretudo, mantinha-o informado sobre os esforços que os portugueses que nele acreditavam vinham desenvolvendo para lhe melhorarem a sorte.
Alguns daqueles adeptos conseguiram levar o caso a diversos governos europeus, como os da Inglaterra, Países Baixos e França. Por vezes logravam certo êxito, ainda que ambíguo, nas suas diligências. Por exemplo, no dia 1 de Dezembro de 1600, o rei francês, Henrique IV, dirigia-se do seguinte modo ao seu embaixador em Veneza: Desejo também que não negueis assistência a esse pobre prisioneiro que pretendem que seja o rei D. Sebastião, se houver fundamento para o fazer; porque, uma vez que o rei de Espanha favorece abertamente os meus inimigos, devo vingar-me por todos os meios que se me apresentem.

Às dez horas da noite do dia 15 de Dezembro de 1600, após mais de dois anos de reclusão, a sorte do prisioneiro pareceu tomar novo e promissor rumo. Conduzido ao Senado, comunicaram-lhe que seria posto imediatamente em liberdade. Teria no entanto que abandonar a cidade de Veneza nas vinte e quatro horas seguintes e o território da República veneziana em três dias. Caso não cumprisse, seria condenado às galés. A única coisa que se lhe ouviu, depois de lida a sentença, foi a reafirmação de que era, verdadeiramente, D. Sebastião - como era certo Deus estar no céu.

A madrugada imediata foi cheia de movimento e emoções para ele e para os seus partidários. Acolhido na casa onde residia D. João de Castro (que chegara a Veneza em 28 de Julho anterior), foi recebendo a visita dos adeptos - entre outros Rodrigo Marques, frei Crisóstomo, Sebastião Figueira, Manuel Brito de Almeida, Pantaleão Pessoa de Neiva, Francisco António, frei Estêvão de Sampaio e até Cristóvão, um dos filhos de D. António, prior do Crato (que falecera em Paris no ano de 1595).
Frei Estêvão de Sampaio tinha vindo oportunamente a Portugal para se informar acerca de certos sinais e marcas que o verdadeiro D. Sebastião ostentava no seu corpo. Enigmaticamente, alguns deles pareciam estar presentes no corpo do recém-libertado: a mão direita mais comprida do que a esquerda, bem como o braço, a coxa, a perna e o pé do mesmo lado; a falta de um dente no maxilar inferior; as sardas na cara e nas mãos; a verruga no dedo mínimo do pé direito - tão grande que parece um sexto dedo, como escreveu Pantaleão Pessoa.
Havia, no entanto, várias coisas que não pareciam bater certo: o homem estava longe de ostentar a pele branca que caracterizava D. Sebastião (e todas as personagens da Casa de Áustria); os cabelos e a barba eram escuros; e, sobretudo, falava um português imperfeito, pejado de erros grosseiros.

Felipe III de Espanha (1578-1621). Foi o Filipe II de Portugal.
Sucedeu a Felipe II, seu pai, a 13 de Setembro de 1598.

É provável que a dúvida tenha assaltado o espírito de alguns dos presentes. Mas a emoção do momento e a esperança de poderem finalmente dispor de um campeão anti-espanhol impuseram-se a todos. O próprio frei Estêvão de Sampaio, que estivera várias vezes com D. Sebastião, achou que o indivíduo que tinha diante de si poucas semelhanças apresentava com a imagem que guardava na memória. Mas tinham passado 22 anos sobre o desaparecimento do monarca! Por isso, também ele se lançou aos pés do antigo prisioneiro e o reconheceu como seu rei.
Sem demora, os presentes decidiram tirar "D. Sebastião" de Veneza. A ideia era levá-lo até Florença, depois a Livorno, e embarcar aí para um porto de França.
Ao cair da noite de 16 de Dezembro, o pretenso rei deixou Veneza, disfarçado de monge, na companhia de frei Crisóstomo. A 20 chegavam a Florença, capital do Grão-Ducado da Toscana, e foram instalar-se num convento da Ordem de S. Bernardo. Tencionavam aguardar por alguns portugueses com os quais embarcariam, em Livorno, rumo a Marselha. Desta cidade seguiriam, finalmente, para Paris.

Desgraçadamente para a causa do "rei de Veneza", a espionagem espanhola não abrandara a vigilância e conhecia os passos dos fugitivos na Toscana. Por consequência, o novo embaixador da Espanha em Veneza, D. Francisco de Vera y Aragón, sucessor de D. Iñigo de Mendoza, contactou o representante do Grão-Duque Fernando de Médicis e fez-lhe saber como Felipe III ficaria agradado se eles prendessem o "charlatão calabrês".
Na Toscana, o Grão-Duque percebeu o recado, pois era grande e temível o poder da Espanha imperial. Assim, na noite de 27 ou 28 de Dezembro de 1600, as suas tropas invadiram o convento e deram voz de prisão aos fugitivos. Mas só o pretenso "D. Sebastião" ficaria atrás das grades: temendo a reacção do Papa, o Grão-Duque Fernando ordenou a libertação de frei Crisóstomo.

O Grão-Duque manteve "D. Sebastião" preso, na Toscana, durante quatro meses, apesar dos esforços realizados pelos portugueses de Veneza para que fosse solto. Por fim, cedendo às pressões de Felipe III, Fernando de Médicis mandou entregar o prisioneiro aos espanhóis. Às onze horas da noite de 23 de Abril de 1601, retiraram-no da cela e meteram-no num carro que logo partiu sob forte escolta. Acabaria entregue ao vice-rei espanhol de Nápoles, o conde de Lemos, no dia 1 de Maio.
O Grão-Duque apressou-se a escrever ao rei de Espanha, num tom subserviente, dando-lhe conta da sua acção - entreguei-o [ao preso] conforme a sua ordem, aproveitando esta ocasião para lhe apresentar de todo o meu coração as minhas mais humildes homenagens.
Henrique IV de França, que tinha intercedido pelo prisioneiro junto do Grão-Duque, ficou profundamente desagradado com o gesto de Fernando de Médicis. E conta-se que terá exclamado: Em Florença negoceia-se toda a espécie de mercadorias!

Muitos portugueses acreditaram durante anos que o rei D. Sebastião
regressaria um dia a Portugal numa manhã mágica de nevoeiro.
Os espanhóis controlavam finalmente a situação e o conde de Lemos deu início ao processo.
O preso manteve durante muito tempo a sua versão - a de que era o rei de Portugal. E, quando se encerrava um interrogatório, assinava com firmeza: D. Sebastião.
Um dia veio ter com o vice-rei um homem que lhe disse que conhecia o prisioneiro: este nascera  na Calábria, chamava-se Marco Túlio Catizone e era casado em Messina com Paula Gallardeta.
Confrontado com o denunciante, o preso pareceu ceder finalmente. Confessou que visitara Veneza uns anos antes e que alguns portugueses lhe tinham dito então que ele se parecia muito com o rei D. Sebastião. Ele tentara esclarecê-los. Mas, quanto mais negava, mais eles insistiam naquela ideia, chegando a beijar-lhe as mãos como se faz a um rei. E teria sido desse modo que acabara por aceitar a qualificação que lhe davam.
Mais tarde, o preso sustentaria que aquelas declarações lhe tinham sido arrancadas à força, versão que D. João de Castro corroboraria nas histórias que punha a correr entre a comunidade portuguesa e que ficariam para a posteridade.

A Espanha, ciosa da unidade ibérica que conquistara, predispôs-se a condenar o incómodo "D. Sebastião". Mas a verdade é que havia comportamentos estranhos - ou pelo menos ambíguos - em relação ao prisioneiro, tratado com extraordinária deferência. Aos domingos e dias de festa saía da cela para assistir à missa e comungar - e, na capela, as pessoas que aí se encontravam ficavam maravilhadas com a sua grande devoção. Quando passava, saudava toda a gente com modos de cavalheiro. Tinha para o servir um criado que lhe preparava a comida na cela. E, abrandada a vigilância, arranjou maneira de comunicar secretamente com os adeptos que, no exterior, continuavam a pugnar pela sua libertação.
O próprio rei espanhol, Felipe III, achou por bem intervir, ordenando expressamente que ele não fosse condenado à morte. Assim, no mês de Maio de 1602, "D. Sebastião", ou Marco Túlio Catizone, viu-se condenado perpetuamente às galés. Dias depois, embarcado na frota de Nápoles para cumprir a pena, foi dispensado de remar.

A frota levantou âncora. Depois de ter feito escala em vários portos mediterrânicos, chegou ao porto de Santa Maria, junto de Sanlúcar de Barrameda, na embocadura do Guadalquivir. Daí em diante, os navios passaram a navegar em acções de vigilância entre os portos vizinhos. Sempre que as galés se detinham, chegavam grupos de curiosos para verem "o falso rei de Portugal", sendo provável que entre eles se achasse um ou outro partidário da realeza do prisioneiro.
Nos começos de 1603, a galera almirante estava no porto de Santa Maria. "D. Sebastião", ou Marco Túlio, achava-se a bordo. Continuava a ser bem tratado: não o obrigavam a envergar o vestuário dos condenados e mantinha a preciosa dispensa de remar.



As liberdades de que o condenado gozava a bordo da galé cedo lhe possibilitaram o contacto com os seus indefectíveis adeptos. Entre os que mais trabalhavam a seu favor contava-se o nosso já conhecido frei Estêvão de Sampaio, que conseguiu aliciar para a causa um outro religioso - frei Boaventura de Santo António, da Ordem de S. Bernardo.
O incansável frei Estêvão teve artes de fazer chegar às mãos do preso uma importante correspondência conspiratória. Aconselhava-o, por exemplo, a dirigir-se a importantes figuras da fidalguia portuguesa em busca de auxílio. "D. Sebastião" seguiu, com zelo, os conselhos do apoiante. Nalguns casos, foi o próprio religioso que lhe forneceu as minutas das cartas para que ele as copiasse.
A audácia dos conspiradores, e o óbvio desleixo que reinava na galé, pareciam não conhecer limites. O condenado chegou a receber secretamente os mensageiros de frei Estêvão, que, para além de o manterem informado acerca do que se passava no exterior, lhe entregaram marmelada trazida de Portugal, a crónica do rei D. João II e alguns volumes de poetas portugueses para o ajudar a passar o tempo.

As facilidades encontradas pelos conspiradores acabaram por levá-los a imprudências. Um dia, "D. Sebastião" resolveu abrir-se com um frade capuchinho genovês, frei Francisco Ansaldo, que o visitou na galé. O frade, mal acabou a conversa, correu a denunciar a trama que se vinha desenvolvendo para fazer evadir o preso.
Dessa vez, Felipe III não contemporizou. A Espanha recorria enfim à violenta firmeza com que sempre tratou de manter a integridade do seu império e, numa perspectiva mais regional, a união ibérica resultante do espírito anexionista do expansionismo castelhano.

"D. Sebastião" foi retirado da galé e conduzido à prisão de Sanlúcar de Barrameda, onde foi torturado. Frei Estêvão de Sampaio e frei Boaventura de Santo António, entretanto caídos nas malhas da justiça, sofreram idêntico tratamento. Como não podia deixar de ser, todos disseram aquilo que os interrogadores quiseram que eles dissessem. No processo ficou então definitivamente estabelecido que o preso não passava de um impostor - o calabrês Marco Túlio Catizone - e que, como tal, deveria morrer.
Em resultado do processo de tortura, recolheram à prisão dezenas de cúmplices dos conspiradores, oportunamente condenados a diversas penas.

No dia 23 de Setembro de 1603, Marco Túlio Catizone foi levado até à praça principal de Sanlúcar de Barrameda, onde começaram por lhe amputar a mão direita. A seguir, enforcaram-no, não sem que ele tivesse apelado à multidão para que mandasse rezar missas em sua intenção.
No mesmo dia foram também enforcados Aníbal Balsamo (calabrês), Fabio Craveta (napolitano) e António Mendes (português).
Outros réus sofreram penas variáveis de chicotadas e de reclusão nas galés.
Cerca de um mês depois, Felipe III confirmou as sentenças de frei Estêvão de Sampaio e de frei Boaventura de Santo António. Foram ambos enforcados, também em Sanlúcar de Barrameda, no dia 20 de Outubro de 1603. 

D. João de Castro, provavelmente o maior responsável por toda esta maquinação, salvou-se por entre os pingos da chuva. Vivia ainda em 1628, contando na altura, segundo a sua própria informação, à volta de oitenta anos.
Não deixou nunca de trabalhar sobre os temas favoritos. Os seus numerosos escritos, conservados até hoje, não permitem dúvidas acerca das convicções sebastianistas do autor. Certamente acreditou, até ao último suspiro, que o seu rei não estava morto e que um dia regressaria, por entre bafos de nevoeiro mágico, para devolver a liberdade e a felicidade ao seu povo.


----------------------------

Fontes principais: MIGUEL D'ANTAS - Les Faux D. Sébastien - Étude sur l'histoire de Portugal - Publicado no ano de 1866 por Chez Auguste Durand, Libraire - Rue Cujas (ancienne Rue des Grès, 7), PARIS - FRANCE

J. LÚCIO D'AZEVEDO - A Evolução do Sebastianismo - Publicado no ano de 1918 por Livraria Clássica Editora - Lisboa - Portugal.
-------------------------

Pode ouvir seguidamente José Cid e o Quarteto 1111 num dos maiores êxitos da música ligeira portuguesa: "A Lenda de El-Rei D. Sebastião" (Vídeo do Arquivo Portugal):

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Um conto exemplar do povo Cuanhama (Sul de Angola)

Angola, com as suas províncias.
O povo Cuanhama, que pertence ao grupo Ambó, vive no sul do país (na província do Cunene, que faz fronteira com a Namíbia).

O conto que abaixo se transcreve pertence a uma recolha efectuada pelo missionário espiritano Carlos Estermann, distinto etnólogo que dedicou a maior parte da sua vida ao estudo dos povos do Sul e, particularmente, do Sudoeste angolano.
Estermann, nascido alemão (na Alsácia, em 1896), chegou a Angola em 1924 e aqui faleceu em 1976.
Deixou uma obra vastíssima, ainda hoje indispensável referencial para qualquer investigador do tema. E ganhou com ela o direito de emparceirar com os mais ilustres espiritanos que o antecederam no Sul de Angola.

Quanto aos contos que apresenta na sua obra, ele faz esta importante prevenção:

O conto popular, tirado do seu ambiente natural (que é o de ser contado e ouvido), perde muito da sua espontaneidade e frescura. Isto é duplamente verdade quando se trata do conto africano. O seu ambiente é a noite, quando, depois do jantar, os habitantes da aldeia se reúnem em conversa amena em volta da fogueira.
Para narrar o conto, destaca-se um indivíduo que, em geral, fala de pé. Pouco a pouco, ele vai-se animando, modula a voz segundo os vários actores que intervêm na história e intercala interjeições - ora lamentosas ora explosivamente admirativas. Gesticula, não só com os braços, mas, conforme as exigências da narrativa, com o corpo todo.
O auditório toma parte activa, ficando às vezes como que electrizado. Manifesta de onde a onde, ruidosamente, a sua aprovação ou desaprovação, sublinha as partes hilariantes com risos estrepitosos e reage entendidamente às frases sarcásticas (…).


Recriado, deste modo, o "ambiente natural" do conto africano, estamos prontos para ouvir a seguinte história cuanhama:

 
O Leão e o Chacal
 
O leão tinha um bode.
O chacal possuía uma cabra.
O chacal foi ao leão e disse:
- Majestade, empresta-me o teu bode para fazer criação com a minha cabra. Quando esta tiver parido, eu virei trazer-te o bode com o respectivo pagamento.
O leão concordou.
Depois de ter ficado coberta, a cabra pariu dois cabritinhos: uma fêmea e um macho. Então, o chacal agarrou o bode e a pequena fêmea e levou-os ao leão, dizendo:
- Cá tens o teu bode e também o pagamento.
O leão perguntou ao chacal: Nasceu só esta cabrita?
- Nasceram dois - respondeu o chacal.
- Então, onde deixaste o outro?
- Um deles, o pequeno macho, ficou para mim, para fazer criação com a mãe.
O rei da floresta, quando ouviu isto, ficou zangado e disse:
- Vai já, já, procurar o outro cabrito, para mo entregares. Tu queres roubar-me? Se o meu bode não tivesse fecundado a tua cabra, teria ela, porventura, tido cabritos? Os dois cabritos são meus, pois o meu bode é que os gerou!
O chacal disse: - Isso não pode ser de maneira nenhuma! Tu queres roubar-me porque és rei! Vamos chamar todos os bichos da floresta para fazer um julgamento e vermos se sou eu que quero roubar-te ou se és tu que me queres roubar a mim.
Disse então o rei da floresta: - O animais da floresta vou mandá-los vir amanhã de manhã cedo. Mas, se eu tiver razão, hei-de acabar com toda a tua raça! 


Quando o chacal se separou do leão, foi à procura do cágado e disse-lhe:
- Amigo cágado, amanhã tenho um julgamento com o senhor da floresta. Vem defender-me. Pedi-lhe emprestado um bode para fecundar a minha cabra. Agora que esta pariu, diz o leão que ambos os cabritos são dele, porque foi o bode que os teve.
- Está bem - respondeu o cágado. - Encontrar-nos-emos amanhã na residência do rei, mas não deixes começar o julgamento sem eu estar presente. 

Na manhã seguinte, todos os animais se dirigiram ao local da reunião. Perguntou então o rei da floresta:
- Estão cá todos?
- Sim, viemos todos.
- Então vamos ao julgamento, para ver se chegamos a uma conclusão - disse o leão.
Disse o chacal: Não, senhor, não pode ser! Ainda falta chegar um.
- Quem é que falta?
- É o cágado.
Ficaram os bichos à espera, até que o sol se ergueu a prumo. O cágado não havia meio de chegar. Alguns impacientaram-se e disseram:
- Façamos o julgamento. Porque ficar à espera de um só? Será ele porventura mais inteligente do que nós?

Ainda não tinham acabado de falar quando o cágado se apresentou. Assim que ele chegou, disse a hiena:
- Ah! Sim! Foi este fedelho que fez de nós seus criados! É este bichinho de casca que pretende ser mais inteligente do que todos nós. Toda a manhã estivemos à tua espera, com o rei da floresta. O que andavas a fazer então? Todos os teus companheiros já vieram muito cedo. Tu és muito malcriado!
- Está calada e não me ralhes - disse o cágado. - Eu tive que fazer em casa porque o meu pai deu à luz!
Os bichos ficaram muito admirados com esta desculpa e perguntaram uns aos outros: - Todos vós que estais aqui presentes: quem é que viu um macho que desse à luz?
Ninguém sabia o que havia de responder ao cágado, ficaram todos embaraçados e disseram: - Nunca vimos um macho que parisse; são só as fêmeas que dão à luz. O teu pai deve ser o único a dar à luz nesta terra!
- Ah, sim? - disse o cágado. - Só o meu pai é que teve filhos? Então a causa do julgamento por que estais reunidos, qual é? Não sois vós que dizeis que o bode teve dois cabritos?
Então os bichos puseram-se de pé, resmungaram e disseram: - Aqui não há uma causa justa!
E assim o leão foi declarado vencido por todos os bichos e o chacal ficou com ambos os cabritos.

………

Nota do padre Carlos Estermann:

O sentido desta fábula é tão claro e a narrativa tão bem encadeada, que dispensa quaisquer comentários. Celebra ela o direito eterno e inviolável dos fracos contra os fortes e, por este lado, apesar da ingenuidade da exposição, emparceira com as obras mais sublimes da literatura mundial. Lembra-nos a "Antígona", de Sófocles, onde se proclamam os direitos não escritos e imutáveis que nenhum tirano poderá impunemente esmagar.


Fonte: Carlos Estermann, Etnografia de Angola (Sudoeste e Centro), Vol. 2, p. 290-291.
Publicado pelo Instituto de Investigação Científica Tropical
Lisboa - 1983

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Era uma Vez na América...


Do excelente Ennio Morricone, uma das mais belas melodias do filme Once Upon a Time in America, realizado em 1984.
E, também, uma das cenas mais tocantes deste grande filme de Sergio Leone.
Tema de Débora:

domingo, 23 de junho de 2019

D. Sebastião morreu em Alcácer-Quibir? (Os Falsos D. Sebastião) - 4.ª PARTE

Continuação de:
2 de Junho de 2019 - 1.ª Parte (ver: O Sebastianismo)
9 de Junho de 2019 - 2.ª Parte (ver: O "rei de Penamacor")
16 de Junho de 2019 - 3.ª Parte (ver: O "rei da Ericeira" )

O Pasteleiro de Madrigal

(ou: História de um Amor Proibido)

Passada quase uma década sobre o episódio do falso D. Sebastião da Ericeira, uma nova e misteriosa personagem fez a sua aparição em Madrigal, província de Ávila, Espanha. Tratava-se de Gabriel de Espinosa, estabelecido como pasteleiro nessa localidade. Pelas suas maneiras distintas, pelas relações sociais que exibia e pelas frequentes visitas de portugueses não tardou a inspirar suspeitas aos agentes de Felipe II de Espanha (agora, também, Filipe I de Portugal).
Gabriel de Espinosa mantinha estreitas relações com um frade agostinho português, frei Miguel dos Santos, desterrado em Espanha devido ao apoio que dera outrora a D. António, prior do Crato (um pretendente ao trono lusitano que opusera forte resistência às pretensões de Felipe II).
Na altura destes acontecimentos, frei Miguel, depois de perdoado pelo monarca espanhol, desempenhava as funções de vigário do convento de Santa Maria la Real, em Madrigal.
Em virtude da sua ligação com o frade, Espinosa conseguiu uma outra e inesperada relação, desta vez com Dona Ana de Áustria, recolhida desde os seis anos de idade naquele mesmo convento de Santa Maria la Real. Frei Miguel, que se tornara no confessor, conselheiro e confidente de Dona Ana, exercia sobre esta uma grande influência.
Convém fixar que Ana de Áustria, à altura com cerca de 25 anos de idade, era filha de D. Juan de Áustria, um meio-irmão de Felipe II que se tornara famoso ao derrotar os Turcos Otomanos na batalha de Lepanto. Era, portanto, sobrinha do poderoso rei de Espanha.
Estranhamente, com a cobertura de frei Miguel dos Santos e a óbvia cumplicidade das religiosas do convento, foram-se tornando frequentes as visitas de Gabriel de Espinosa à ilustre fidalga. Ficavam por regra acompanhados durante as suas longas conversas. Mas conseguiam de vez em quando encontrar-se a sós.
Quanto à aparência física da filha de D. Juan de Áustria, apenas podemos imaginá-la a partir de uma frase que Gabriel de Espinosa soltou, certa ocasião, quando exibia o seu retrato a alguém: "Veja, que senhora tão bela! Não há igual em Espanha!"

D. Juan de Áustria (1545-1578), meio irmão de Felipe II de Espanha
e pai de Dona Ana de Áustria (1569-1629)
Tal como sucedera nos casos anteriores, também sobre Gabriel de Espinosa começaram a correr rumores de que se trataria do rei português D. Sebastião, desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir e agora alegadamente refugiado, sob disfarce de uma profissão modesta, em terras espanholas. Ao que parece, não era ele que o afirmava. Porém, confrontado com os boatos, refugiava-se em evasivas e não os desmentia frontalmente.
Nos primeiros dias de Outubro de 1594, os esbirros de Felipe II, comandados pele alcaide D. Rodrigo de Santillana, acabaram por deitar a mão a Espinosa e fizeram-no recolher à prisão. Na sua posse encontraram alguns objectos inesperados, de que se destacam um anel com o retrato do rei Felipe II, um relógio de ouro e diamantes, um retrato de Dona Ana de Áustria e uma madeixa de cabelos que mais tarde se apuraria terem pertencido à mesma senhora. Interrogado sobre as jóias, Gabriel afirmou tê-las recebido de Dona Ana para as vender.
Aprofundando a investigação, as autoridades não tardaram a apreender algumas cartas em tempos endereçadas ao prisioneiro. Umas provinham de frei Miguel dos Santos. Outras (pelo menos duas) haviam sido escritas por Dona Ana de Áustria. O mais surpreendente é que ambos se dirigiam ao destinatário com respeito reverencial, chegando a tratá-lo por "Majestade".
As cartas de Dona Ana, que ela jamais negou ter escrito, denunciam um grau de relacionamento e de intimidade que se suporiam interditos a quem há tantos anos vegetava entre os muros de um convento.
Alguns extractos mais inflamados dessa correspondência são, para além de intrigantes, incomodativamente pungentes. Mas são, de igual modo, bastante elucidativos:
"Ai de mim, senhor, mal de quem sofre saudade!
O que sinto hoje sinto cada dia, como recordação dos felizes momentos tão deliciosamente passados e que já não existem mais (…). Ai, senhor, como eu suportaria todas as infelicidades que me atormentam para evitar o mínimo de tudo a Vossa Majestade, porque mereceis mais do que todos no mundo.
Possa Aquele que o governa conceder-me o que suplico, a fim de que tantos infortúnios tenham um fim. Sinto cada vez mais o intolerável tormento de estar privada da presença de Vossa Majestade. Uma tal dor não poderá ser suportada por muito tempo sem perder a vida!
Pertenço-vos, senhor, vós já o sabeis.
Estou de tal modo segura de que Vossa Majestade me pertence e que não me esquecerá, que lhe suplico que se distraia e se divirta (…).
Quereria possuir o mundo inteiro para o colocar aos pés de Vossa Majestade. Se eu pertencesse a mim própria, vender-me-ia para ter meio de servir Vossa Majestade, mas para não despojar  o meu senhor do seu próprio bem, farei de outro modo(…).
Adeus meu bem e meu senhor".

Felipe II de Espanha (Filipe I de Portugal)
(1527-1598)
Felipe II sentia-se apreensivo com os surpreendentes desenvolvimentos deste processo, que, através da sua polícia e dos seus magistrados, ele orientava e seguia nos mínimos pormenores. Tudo indiciava que, mais de quinze anos decorridos sobre o desastre de Alcácer-Quibir, pelo menos alguns portugueses continuavam irrequietos e dispostos a sacudir o jugo espanhol.
Por outro lado, o monarca ter-se-á também sentido possuído por enorme e indignada cólera. Primeiro, com a audácia e as liberdades a que se havia permitido aquele enigmático pasteleiro de Madrigal metendo-se com a sua sobrinha; depois, com os arrebatamentos de aparente paixão com que esta correspondera aos avanços do atrevido (numa das cartas apreendidas, a que o rei tivera acesso, ela tratava Gabriel de Espinosa por "minha vida e meu senhor", acrescentando: "Possa Deus conceder-me viver no céu, isto é, a servir o meu senhor e amo o resto dos meus dias, pois desde há muito tempo que a melhor parte de mim mesma é já vossa e que eu em nenhum lugar da terra poderia estar melhor…").
O rei assumiu, portanto, providências imediatas. Expediram-se ordens para que, até ser tomada a decisão final,  fosse endurecida no convento a clausura de Dona Ana de Áustria. Doravante, ficaria fechada na sua cela.
Além disto, frei Miguel dos Santos foi também detido e encarcerado em Medina del Campo, para onde foi também transferido, a 20 de Novembro de 1594, Gabriel de Espinosa.
Finalmente, com o objectivo de arrumar de vez o assunto, Felipe II despachou que ambos - o frade e o pasteleiro - fossem submetidos a tormentos até se resolverem a dizer a verdade.
A tortura permitiu chegar àquela que é, até aos dias de hoje, a versão oficial dos factos e como tal preservada nos arquivos espanhóis.
Assim, frei Miguel dos Santos terá sido o cérebro de uma conjura contra o domínio filipino em Portugal.
Escolhendo Gabriel de Espinosa para a parte essencial do plano, fê-lo passar por D. Sebastião e, valendo-se do grande ascendente que tinha sobre Dona Ana de Áustria, conseguiu convencê-la de que ele era, realmente, o infeliz monarca derrotado - e evadido - do campo de batalha de Alcácer-Quibir.
As artes de sedução do pasteleiro, postas em prática no convento, terão feito o resto - e a sobrinha do rei de Espanha, apaixonada, terá mesmo acedido a desposá-lo.
A ideia, segundo frei Miguel dos Santos, consistia em emprestar maior credibilidade à figura de Gabriel de Espinosa. Juntamente com a esposa (Dona Ana de Áustria, entretanto retirada do convento) o falso D. Sebastião seria apresentado em Portugal. Isto, esperava o frade, levaria o país a levantar-se contra o domínio espanhol.
Uma vez Portugal revoltado, seria chamado D. António, prior do Crato, para levantar o véu da impostura e para, com a ajuda dos seus partidários, reivindicar o trono português (como já fizera, sem sucesso, de armas na mão, durante a crise sucessória de 1580).
O falso D. Sebastião seria então afastado de cena, mas - esclareceu o frade - sem se atentar contra a sua vida.

D. António, prior do Crato, pretendente ao trono português (1531-1595)

A justiça de Felipe II foi implacável e Gabriel de Espinosa e frei Miguel dos Santos acabaram condenados à morte.
A sentença foi lida ao pasteleiro no dia 28 de Julho de 1595. Na véspera da execução, D. Rodrigo de Santillana visitou o condenado, que já tinha recebido os Sacramentos. Achou-o calmo e senhor de si.

No primeiro dia de Agosto, perto das 4 horas da tarde, puseram-lhe a corda ao pescoço e colocaram-no na cesta em que seria levado até à forca.
As ruas de Madrigal estavam pejadas de enorme multidão vinda de todos os lados. O cortejo fúnebre pôs-se em marcha, precedido por religiosos de diversas confrarias. Cada vez que Espinosa ouvia, no pregão, as palavras "traidor ao rei", retorquia: "isso, não!".
Subiu a escada do cadafalso com passo firme. Reconhecendo o alcaide a uma janela que dava para a praça, exclamou em tom de censura: Ah, D. Rodrigo de Santillana!
Logo de seguida, o seu corpo balançava no espaço e tudo havia terminado para ele.

A execução de frei Miguel dos Santos teve lugar bastante mais tarde, a 19 de Outubro de 1595. Chegado ao pé da forca, o frade chamou o escrivão para lhe dizer que morria inocente, que se tinha enganado ao pensar que Espinosa era, de facto, o rei D. Sebastião, mas que nunca tinha conspirado contra Felipe II. Depois subiu resolutamente a escada e, um momento depois, a justiça estava feita.

E Dona Ana de Áustria?

A sobrinha de Felipe II, inconformada com a sua reclusão, dirigiu várias cartas ao régio tio, pretextando que havia sido enganada e pedindo-lhe clemência.
Escreveu ela: Não é certamente de admirar que uma mulher sem experiência, aqui fechada desde os seis anos de idade, seja induzida em erro. Frei Miguel meteu-me coisas na cabeça, assegurando-me que tinha revelações e que Deus pedia para me unir ao rei D. Sebastião. Acreditei no que me dizia, porque toda a gente louvava a sua santidade, a sua instrução e a sua experiência. Um dia trouxe Gabriel de Espinosa consigo e por todos os meios fez-me acreditar que era o rei D. Sebastião.

Felipe II não se comoveu e manteve-se inexorável. O juiz apostólico D. Juan de Llano encarregou-se de ler a Dona Ana a sua sentença. Foi condenada a ser transferida para outro mosteiro (em Ávila), devendo aí ficar durante quatro anos numa cela. Poderia sair para ir à missa nos dias santos, mas sempre acompanhada por duas das mais antigas religiosas. Estas guardiãs teriam de a reconduzir imediatamente à sua cela, sem que lhe fosse permitido falar a ninguém. Deveria jejuar pão e água, todas as sextas-feiras, durante os quatro anos da sua detenção. Foi também proibida de exercer cargos no convento, sendo tratada como simples religiosa, sem qualquer deferência. Finalmente, foi destituída de todas as distinções e honras que Felipe II lhe concedera à nascença.
Sobreviveria, contudo, mais de trinta anos a este tio implacável: despediu-se do mundo, em Burgos, no ano de 1629.

-------------------------------

CONTINUA em 30 de JUNHO de 2019
(5.ª e ÚLTIMA PARTE - O "rei de Veneza" - ver aqui)
----------------------------------------
Fonte principal: MIGUEL D'ANTAS - Les Faux D. Sébastien - Étude sur l'histoire de Portugal - Publicado no ano de 1866 por Chez Auguste Durand, Libraire - Rue Cujas (ancienne Rue des Grès, 7), PARIS - FRANCE

J. LÚCIO D'AZEVEDO - A Evolução do Sebastianismo - Publicado no ano de 1918 por Livraria Clássica Editora - Lisboa - Portugal.