domingo, 23 de junho de 2019

D. Sebastião morreu em Alcácer-Quibir? (Os Falsos D. Sebastião) - 4.ª PARTE

Continuação de:
2 de Junho de 2019 - 1.ª Parte (ver: O Sebastianismo)
9 de Junho de 2019 - 2.ª Parte (ver: O "rei de Penamacor")
16 de Junho de 2019 - 3.ª Parte (ver: O "rei da Ericeira" )

O Pasteleiro de Madrigal

(ou: História de um Amor Proibido)

Passada quase uma década sobre o episódio do falso D. Sebastião da Ericeira, uma nova e misteriosa personagem fez a sua aparição em Madrigal, província de Ávila, Espanha. Tratava-se de Gabriel de Espinosa, estabelecido como pasteleiro nessa localidade. Pelas suas maneiras distintas, pelas relações sociais que exibia e pelas frequentes visitas de portugueses não tardou a inspirar suspeitas aos agentes de Felipe II de Espanha (agora, também, Filipe I de Portugal).
Gabriel de Espinosa mantinha estreitas relações com um frade agostinho português, frei Miguel dos Santos, desterrado em Espanha devido ao apoio que dera outrora a D. António, prior do Crato (um pretendente ao trono lusitano que opusera forte resistência às pretensões de Felipe II).
Na altura destes acontecimentos, frei Miguel, depois de perdoado pelo monarca espanhol, desempenhava as funções de vigário do convento de Santa Maria la Real, em Madrigal.
Em virtude da sua ligação com o frade, Espinosa conseguiu uma outra e inesperada relação, desta vez com Dona Ana de Áustria, recolhida desde os seis anos de idade naquele mesmo convento de Santa Maria la Real. Frei Miguel, que se tornara no confessor, conselheiro e confidente de Dona Ana, exercia sobre esta uma grande influência.
Convém fixar que Ana de Áustria, à altura com cerca de 25 anos de idade, era filha de D. Juan de Áustria, um meio-irmão de Felipe II que se tornara famoso ao derrotar os Turcos Otomanos na batalha de Lepanto. Era, portanto, sobrinha do poderoso rei de Espanha.
Estranhamente, com a cobertura de frei Miguel dos Santos e a óbvia cumplicidade das religiosas do convento, foram-se tornando frequentes as visitas de Gabriel de Espinosa à ilustre fidalga. Ficavam por regra acompanhados durante as suas longas conversas. Mas conseguiam de vez em quando encontrar-se a sós.
Quanto à aparência física da filha de D. Juan de Áustria, apenas podemos imaginá-la a partir de uma frase que Gabriel de Espinosa soltou, certa ocasião, quando exibia o seu retrato a alguém: "Veja, que senhora tão bela! Não há igual em Espanha!"

D. Juan de Áustria (1545-1578), meio irmão de Felipe II de Espanha
e pai de Dona Ana de Áustria (1569-1629)
Tal como sucedera nos casos anteriores, também sobre Gabriel de Espinosa começaram a correr rumores de que se trataria do rei português D. Sebastião, desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir e agora alegadamente refugiado, sob disfarce de uma profissão modesta, em terras espanholas. Ao que parece, não era ele que o afirmava. Porém, confrontado com os boatos, refugiava-se em evasivas e não os desmentia frontalmente.
Nos primeiros dias de Outubro de 1594, os esbirros de Felipe II, comandados pele alcaide D. Rodrigo de Santillana, acabaram por deitar a mão a Espinosa e fizeram-no recolher à prisão. Na sua posse encontraram alguns objectos inesperados, de que se destacam um anel com o retrato do rei Felipe II, um relógio de ouro e diamantes, um retrato de Dona Ana de Áustria e uma madeixa de cabelos que mais tarde se apuraria terem pertencido à mesma senhora. Interrogado sobre as jóias, Gabriel afirmou tê-las recebido de Dona Ana para as vender.
Aprofundando a investigação, as autoridades não tardaram a apreender algumas cartas em tempos endereçadas ao prisioneiro. Umas provinham de frei Miguel dos Santos. Outras (pelo menos duas) haviam sido escritas por Dona Ana de Áustria. O mais surpreendente é que ambos se dirigiam ao destinatário com respeito reverencial, chegando a tratá-lo por "Majestade".
As cartas de Dona Ana, que ela jamais negou ter escrito, denunciam um grau de relacionamento e de intimidade que se suporiam interditos a quem há tantos anos vegetava entre os muros de um convento.
Alguns extractos mais inflamados dessa correspondência são, para além de intrigantes, incomodativamente pungentes. Mas são, de igual modo, bastante elucidativos:
"Ai de mim, senhor, mal de quem sofre saudade!
O que sinto hoje sinto cada dia, como recordação dos felizes momentos tão deliciosamente passados e que já não existem mais (…). Ai, senhor, como eu suportaria todas as infelicidades que me atormentam para evitar o mínimo de tudo a Vossa Majestade, porque mereceis mais do que todos no mundo.
Possa Aquele que o governa conceder-me o que suplico, a fim de que tantos infortúnios tenham um fim. Sinto cada vez mais o intolerável tormento de estar privada da presença de Vossa Majestade. Uma tal dor não poderá ser suportada por muito tempo sem perder a vida!
Pertenço-vos, senhor, vós já o sabeis.
Estou de tal modo segura de que Vossa Majestade me pertence e que não me esquecerá, que lhe suplico que se distraia e se divirta (…).
Quereria possuir o mundo inteiro para o colocar aos pés de Vossa Majestade. Se eu pertencesse a mim própria, vender-me-ia para ter meio de servir Vossa Majestade, mas para não despojar  o meu senhor do seu próprio bem, farei de outro modo(…).
Adeus meu bem e meu senhor".

Felipe II de Espanha (Filipe I de Portugal)
(1527-1598)
Felipe II sentia-se apreensivo com os surpreendentes desenvolvimentos deste processo, que, através da sua polícia e dos seus magistrados, ele orientava e seguia nos mínimos pormenores. Tudo indiciava que, mais de quinze anos decorridos sobre o desastre de Alcácer-Quibir, pelo menos alguns portugueses continuavam irrequietos e dispostos a sacudir o jugo espanhol.
Por outro lado, o monarca ter-se-á também sentido possuído por enorme e indignada cólera. Primeiro, com a audácia e as liberdades a que se havia permitido aquele enigmático pasteleiro de Madrigal metendo-se com a sua sobrinha; depois, com os arrebatamentos de aparente paixão com que esta correspondera aos avanços do atrevido (numa das cartas apreendidas, a que o rei tivera acesso, ela tratava Gabriel de Espinosa por "minha vida e meu senhor", acrescentando: "Possa Deus conceder-me viver no céu, isto é, a servir o meu senhor e amo o resto dos meus dias, pois desde há muito tempo que a melhor parte de mim mesma é já vossa e que eu em nenhum lugar da terra poderia estar melhor…").
O rei assumiu, portanto, providências imediatas. Expediram-se ordens para que, até ser tomada a decisão final,  fosse endurecida no convento a clausura de Dona Ana de Áustria. Doravante, ficaria fechada na sua cela.
Além disto, frei Miguel dos Santos foi também detido e encarcerado em Medina del Campo, para onde foi também transferido, a 20 de Novembro de 1594, Gabriel de Espinosa.
Finalmente, com o objectivo de arrumar de vez o assunto, Felipe II despachou que ambos - o frade e o pasteleiro - fossem submetidos a tormentos até se resolverem a dizer a verdade.
A tortura permitiu chegar àquela que é, até aos dias de hoje, a versão oficial dos factos e como tal preservada nos arquivos espanhóis.
Assim, frei Miguel dos Santos terá sido o cérebro de uma conjura contra o domínio filipino em Portugal.
Escolhendo Gabriel de Espinosa para a parte essencial do plano, fê-lo passar por D. Sebastião e, valendo-se do grande ascendente que tinha sobre Dona Ana de Áustria, conseguiu convencê-la de que ele era, realmente, o infeliz monarca derrotado - e evadido - do campo de batalha de Alcácer-Quibir.
As artes de sedução do pasteleiro, postas em prática no convento, terão feito o resto - e a sobrinha do rei de Espanha, apaixonada, terá mesmo acedido a desposá-lo.
A ideia, segundo frei Miguel dos Santos, consistia em emprestar maior credibilidade à figura de Gabriel de Espinosa. Juntamente com a esposa (Dona Ana de Áustria, entretanto retirada do convento) o falso D. Sebastião seria apresentado em Portugal. Isto, esperava o frade, levaria o país a levantar-se contra o domínio espanhol.
Uma vez Portugal revoltado, seria chamado D. António, prior do Crato, para levantar o véu da impostura e para, com a ajuda dos seus partidários, reivindicar o trono português (como já fizera, sem sucesso, de armas na mão, durante a crise sucessória de 1580).
O falso D. Sebastião seria então afastado de cena, mas - esclareceu o frade - sem se atentar contra a sua vida.

D. António, prior do Crato, pretendente ao trono português (1531-1595)

A justiça de Felipe II foi implacável e Gabriel de Espinosa e frei Miguel dos Santos acabaram condenados à morte.
A sentença foi lida ao pasteleiro no dia 28 de Julho de 1595. Na véspera da execução, D. Rodrigo de Santillana visitou o condenado, que já tinha recebido os Sacramentos. Achou-o calmo e senhor de si.

No primeiro dia de Agosto, perto das 4 horas da tarde, puseram-lhe a corda ao pescoço e colocaram-no na cesta em que seria levado até à forca.
As ruas de Madrigal estavam pejadas de enorme multidão vinda de todos os lados. O cortejo fúnebre pôs-se em marcha, precedido por religiosos de diversas confrarias. Cada vez que Espinosa ouvia, no pregão, as palavras "traidor ao rei", retorquia: "isso, não!".
Subiu a escada do cadafalso com passo firme. Reconhecendo o alcaide a uma janela que dava para a praça, exclamou em tom de censura: Ah, D. Rodrigo de Santillana!
Logo de seguida, o seu corpo balançava no espaço e tudo havia terminado para ele.

A execução de frei Miguel dos Santos teve lugar bastante mais tarde, a 19 de Outubro de 1595. Chegado ao pé da forca, o frade chamou o escrivão para lhe dizer que morria inocente, que se tinha enganado ao pensar que Espinosa era, de facto, o rei D. Sebastião, mas que nunca tinha conspirado contra Felipe II. Depois subiu resolutamente a escada e, um momento depois, a justiça estava feita.

E Dona Ana de Áustria?

A sobrinha de Felipe II, inconformada com a sua reclusão, dirigiu várias cartas ao régio tio, pretextando que havia sido enganada e pedindo-lhe clemência.
Escreveu ela: Não é certamente de admirar que uma mulher sem experiência, aqui fechada desde os seis anos de idade, seja induzida em erro. Frei Miguel meteu-me coisas na cabeça, assegurando-me que tinha revelações e que Deus pedia para me unir ao rei D. Sebastião. Acreditei no que me dizia, porque toda a gente louvava a sua santidade, a sua instrução e a sua experiência. Um dia trouxe Gabriel de Espinosa consigo e por todos os meios fez-me acreditar que era o rei D. Sebastião.

Felipe II não se comoveu e manteve-se inexorável. O juiz apostólico D. Juan de Llano encarregou-se de ler a Dona Ana a sua sentença. Foi condenada a ser transferida para outro mosteiro (em Ávila), devendo aí ficar durante quatro anos numa cela. Poderia sair para ir à missa nos dias santos, mas sempre acompanhada por duas das mais antigas religiosas. Estas guardiãs teriam de a reconduzir imediatamente à sua cela, sem que lhe fosse permitido falar a ninguém. Deveria jejuar pão e água, todas as sextas-feiras, durante os quatro anos da sua detenção. Foi também proibida de exercer cargos no convento, sendo tratada como simples religiosa, sem qualquer deferência. Finalmente, foi destituída de todas as distinções e honras que Felipe II lhe concedera à nascença.
Sobreviveria, contudo, mais de trinta anos a este tio implacável: despediu-se do mundo, em Burgos, no ano de 1629.

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CONTINUA em 30 de JUNHO de 2019
(5.ª e ÚLTIMA PARTE - O "rei de Veneza" - ver aqui)
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Fonte principal: MIGUEL D'ANTAS - Les Faux D. Sébastien - Étude sur l'histoire de Portugal - Publicado no ano de 1866 por Chez Auguste Durand, Libraire - Rue Cujas (ancienne Rue des Grès, 7), PARIS - FRANCE

J. LÚCIO D'AZEVEDO - A Evolução do Sebastianismo - Publicado no ano de 1918 por Livraria Clássica Editora - Lisboa - Portugal.

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